Conheça um pouco mais sobre Wassily Kandinsky, um dos principais precursores da arte abstrata
Imagine um mundo sem arte abstrata. Um mundo em que a única forma de expressão nas artes visuais é a pintura realista. Tente imaginar um mundo sem os movimentos de vanguarda do início do século XX e todas as transformações que estes movimentos desencadearam na maneira de o ocidente conceber a vida. Esse cenário seria possível se Wassily Kandinsky não tivesse decidido largar a carreira no direito para se tornar artista. Mas como um único homem poderia ter um impacto tão grande na larga via da História da Arte? Ao estudarmos um pouco mais sobre a vida e a obra de Kandinsky, podemos vislumbrar como o artista russo se tornou esse farol brilhante guiando gerações de artistas que o seguiram.
Wassily Kandinsky (Moscou, Rússia, 1866 – 1944) nasceu em uma família de boas condições financeiras na Rússia, na segunda metade do século XIX. Seu pai, um comerciante de chás, e sua mãe, uma musicista, se divorciaram quando Kandinsky ainda era uma criança. A separação fez com que ele fosse viver em Odessa, na Ucrânia, para ser criado por uma tia. Lá, além dos estudos regulares e de aulas de aquarela, ele aprendeu piano e violoncelo. A música sempre esteve presente em sua vida e veio desempenhar grande influência em sua obra, como veremos adiante.
Anos mais tarde, Kandinsky estudou direito na Universidade de Moscou, onde chegou a exercer a profissão durante alguns anos, mesmo período em que se casou com Anya Chemiakin. Sua vida, porém, sofreu uma irreversível mudança de curso quando o ainda advogado Kandinsky visitou uma exposição de pinturas impressionistas. Uma obra em particular o impressionou tão intensamente que Kandinsky mudou definitivamente sua forma de ver o mundo. Era uma das pinturas da série Montes de Feno, de Claude Monet. Foi o primeiro contato do jovem com uma obra não naturalista e fez com que ele se interessasse por artes visuais tão dramaticamente que Kandinsky abandonou a carreira no direito e mudou-se com a esposa para Munique, para estudar pintura na escola do professor Anton Azbè.
Kandinsky era um estudante ávido e em 1901 foi aceito na Academia de Belas Artes de Munique, onde pôde desenvolver ainda mais sua técnica. Além disso, frequentar a academia e participar da fervilhante vida artística local colocou Kandinsky em contato com outros artistas. Junto com alguns desses novos contatos, fundou ainda em 1901 a Sociedade Artística Phalanx (Falange, em tradução livre para o português). A prática e o estudo teórico andaram lado a lado desde o início da carreira do artista. Além de movimentar a cena com debates e experimentações, Kandinsky também passou a lecionar na escola fundada pela sociedade.
Sua participação como professor na escola de pintura da Sociedade Artística Phalanx também proporcionou a Kandinsky o encontro com Gabriele Münter, jovem aluna com quem viria a colaborar artisticamente. A relação dos artistas tornou-se romântica e os dois passaram a viver juntos em 1903, antes mesmo que o divorcio com Anya Chemiakin fosse oficializado.
Colaborações frutíferas e o grupo O Cavaleiro Azul
Entre 1906 e 1907, Kandinsky passou uma temporada na França, onde participou do grupo Tendances Nouvelles (Novas Tendências, em tradução livre), com o qual publicou um conjunto de gravuras. Porém, a colaboração mais significativa da carreira do artista foi o Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), grupo que fundou no início da década de 1910 e contou com participação de artistas como August Macke, Franz Mare, Gabriele Münter e Paul Klee, entre outros. Apesar da vida curta, o grupo causou uma repercussão de proporções gigantescas na História da Arte, sendo considerado um dos precursores do expressionismo alemão, movimento artístico do início do século XX que influenciou as vanguardas artísticas não apenas da Europa, como de todo o mundo, inclusive do Brasil.
Em maio de 1912 o grupo publica a primeira edição do Blaue Reiter Almanack (Almanaque do Cavaleiro Azul), onde são divulgados importantes ensaios de seus fundadores e outros artistas colaboradores, incluindo o compositor Arnold Schoenberg, figura chave na obra de Kandinsky, como veremos a seguir.
Os artistas do grupo procuravam uma arte que pudesse expressar reflexões pessoais sobre a vida e o mundo, preferindo a simplicidade dos meios e a valorização da cor e da mancha cromática na construção das obras. Suas formas eram sintetizadas e geometrizadas, em uma progressiva tendência à abstração.
As composições do grupo também tendiam ao equilíbrio, orientadas por linhas sinuosas e arredondadas, remetendo a ritmos musicais. O Cavaleiro Azul tinha um forte interesse pela arte intuitiva infantil e pela arte primitiva, termo utilizado na época para se referir ao que hoje se denomina como arte rupestre. Também defendiam o potencial das associações psicológicas e simbólicas da cor e da linha na composição. Além destes, a preocupação com os aspectos espirituais da criação artística também era muito presente na mentalidade do grupo.
Do Espiritual na Arte
Neste mesmo período, em 1912, Kandinsky lançou seu primeiro livro, ‘Do Espiritual na Arte’, onde apresentava uma suma de suas ideias estéticas. O ponto de partida de sua concepção artística estava diretamente relacionado com a vida espiritual da humanidade. No livro, o artista comparava o momento espiritual da sociedade a uma pirâmide, sendo a base representativa dos aspectos materiais e o topo representativo dos aspectos espirituais.
Kandinsky argumenta no livro que a base avança lentamente em direção ao cume, isto é, tornando-se menos materialista e mais espiritualizada ao longo do tempo. O artista defendia ainda que poucas pessoas ocupavam o ápice da pirâmide, sendo possível, em alguns momentos da história, que apenas um sujeito se encontrasse ali, mas que, aqueles que se encontrassem no topo da pirâmide seriam responsáveis por fazer avançar culturalmente toda a humanidade.
Kandinsky teve durante toda sua vida uma relação muito próxima com a música. Além da mãe musicista na primeira infância, das aulas de piano e violoncelo quando vivia com a tia, ele tinha uma grande admiração pela música clássica. O artista muitas vezes criava e nomeava seus trabalhos especificamente em resposta à experiência de ouvir peças musicais. Alguns historiadores chegam a defender, inclusive, que ele era sinestésico (sinestesia é uma condição neurológica que faz com que os sentidos se misturem e a pessoa possa enxergar cores em notas musicais, por exemplo).
Nos anos do Cavaleiro Azul, ele conheceu o compositor Arnold Schoenberg, mencionado anteriormente, com quem colaborou intimamente por anos. Schoenberg desenvolveu um método de composição em 12 tons, inspirando Kandinsky em sua teoria cromática. Nesta, Kandinsky propunha que “acordes visuais” eram produzidos a partir de tons que ressonavam uns com os outros, produzindo pinturas que aspiravam ser sinfonias para os olhos.
Todas essas práticas e interesses citados anteriormente foram gradualmente levando Kandinsky na direção da abstração, porém, um elemento em particular teve uma influência maior nesse processo. Tratava-se do contato do artista com a Teosofia e a Antroposofia, doutrinas filosófico-espirituais desenvolvidas por Helena Blavatsky e Rudolf Steiner na virada do século XIX para o século XX. Naquele momento, o mundo ocidental vivia uma mudança de paradigmas sem precedentes.
A modernização das cidades, novas invenções tecnológicas que davam a ver o antes invisível (como o raio laser e as ondas de rádio), as novas práticas espiritualistas que defendiam camadas da existência para além da realidade visível fizeram com que a sensibilidade dos artistas se voltasse para outros aspectos possíveis da arte.
Kandinsky era um assíduo participante das conferências de Steiner, onde em mais de uma oportunidade, o autor se referia ao simbolismo das cores e o efeito que produzia sobre a alma humana. Muito do que Steiner propunha em termos de experiência cromática derivava da ‘Doutrina das Cores’ de Johann Wolfgang Von Goethe, tratado no qual o autor questionava a teoria cromática de Isaac Newton e apresentava uma abordagem muito menos científica e muito mais subjetiva.
Kandinsky também acreditava que a cor era um instrumento capaz de influenciar diretamente na alma. A partir desta época, no início da década de 1910, o estilo do artista já estava se encaminhando para um tipo de abstração que se preocupava justamente com aspectos subjetivos e emocionais. Passou a agrupar suas obras em três categorias:
A obra Composição V, de 1911, durante muitas décadas foi considerada a primeira obra abstrata da história ocidental. O próprio Kandinsky assumia o feito em uma carta escrita em 1936 para o galerista J. B. Neumann, afirmando tratar-se de um quadro histórico. Hoje sabe-se, porém, que Hilma af Klint foi a primeira artista a produzir composições abstratas, anos antes. Curiosamente, também influenciada pelas doutrinas teosófica e antroposófica. Isso não tira, de maneira nenhuma, o mérito de Kandinsky, apenas coloca a história em uma nova perspectiva.
O início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, fez com que Kandinsky retornasse à Rússia, onde administrou programas de arte promovidos pelo governo. Nos anos em que esteve vivendo em seu país natal também contribuiu na criação do Instituto de Cultura Artística de Moscou e do Museu de Cultura Pictórica.
Aqui, Kandinsky já era um nome respeitado, com anos de dedicação à prática artística e ao ensino de arte. Estes fatores fizeram com que o artista fosse convidado, em 1921, para lecionar na Bauhaus, escola alemã dedicada à experimentação de novas concepções artísticas em várias áreas. A Bauhaus foi um grande centro de estudos do modernismo, contribuindo para consolidar a corrente que marcaria a imagem do design do século XX, sob a premissa de que “a forma segue a função”.
Kandinsky aceitou o convite e voltou a viver na Alemanha, desta vez, acompanhado de sua nova esposa, Nina de Andreewsky. Poucos anos depois, em 1926, ainda lecionando na escola, o artista publicou seu segundo livro, ‘Ponto e Linha Sobre o Plano’, onde elabora mais uma vez ensaios sobre suas concepções artísticas.
Kandinsky colaborou com o plano de ensino da Bauhaus até o seu fim, em 1933, quando as tropas nazistas fecharam a escola. A Segunda Guerra Mundial e o avanço do nazismo na Europa representaram uma perda gigantesca para a arte moderna, não apenas com o pilhamento de importantes obras, como também com o fechamento de influentes instituições e iniciativas, como foi o caso da Bauhaus.
Anos finais e o legado do artista
Considerado pelos alemães nazistas como um “artista degenerado”, Kandinsky se mudou, em 1933, com a esposa para Neuilly-sur-Seine, na França, onde permaneceu até o fim de sua vida, em 1944. O artista produziu arte e pensamento crítico até seus últimos anos, fortalecendo sua posição de teórico defensor do abstracionismo.
Kandinsky lecionou por muitos anos, compartilhando seu conhecimento entre seus alunos e publicando livros, artigos, ensaios, peças teatrais e até mesmo poemas. Kandinsky provou que a arte abstrata é dotada de profunda preocupação teórica e filosófica, contribuindo para que a prática fosse respeitada e difundida através das décadas. Por mais que não tenha sido ele o autor da primeira pintura abstrata, sem ele o abstracionismo não teria alcançado as dimensões que tem hoje.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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