Kazimir Severinovich Malevich (Kiev, 1879 – 1935) foi um artista e teórico da vanguarda russa. Seu trabalho pioneiro teve uma profunda influência na arte abstrata no século XX, perdurando ainda hoje na produção de artistas contemporâneos.
Kazimir Malevich, 1912. Autoria desconhecida. Imagem: Art in Context
O início do século XX foi um período de grandes transformações sociais que se refletiram nas artes visuais. Práticas inovadoras propostas por artistas da época influenciam ainda hoje artistas de todo o mundo. Um destes vanguardistas foi o artista russo Kazimir Malevich, inventor do Suprematismo, movimento que defendia a abstração pura através de geometrias radicalmente simples.
Nascido em Kiev, filho de uma família de origem polonesa, Malevich viveu um dos períodos mais turbulentos da história recente da Europa. Em 1917, presenciou a Revolução Russa, movimento engendrado pela massa trabalhadora e camponesa, cansada de condições de vida miseráveis perpetradas pelo regime imperialista.
Simultaneamente, outra grande transformação se dava naquele momento na Europa, a Revolução Industrial. Rapidamente o mundo abandonava modos de vida estabelecidos há séculos para adentrar uma nova era. Regiões inteiras habitadas por pequenos agricultores eram transformadas em zonas industriais. Cidades influentes tinham sua paisagem redesenhada por prédios construídos com novos materiais como aço, vidro e concreto.
Toda a Europa convulsionava com novas visões e possibilidades de vida. Na arte, essas transformações se refletiram nos movimentos de vanguarda que surgiam em diferentes países. Desde o início de sua carreira, Malevich se mostrou ávido a explorar estes estilos diversos, rapidamente assimilando alguns dos mais importantes movimentos da época, como o Impressionismo, o Fauvismo e o Cubismo. Seu estilo pessoal, porém, gradualmente se tornou mais simples rejeitando ideias que ele considerava como supérfluas nestes movimentos.
A ópera futurista Pobeda nad Solntsem (Vitória sobre o Sol), de 1913 na qual trabalhou como cenógrafo, é considerada um ponto de virada em seu trabalho na direção da abstração geométrica radical que desenvolveria nos anos seguintes. No enredo, um grupo de protagonistas quer destruir a razão ao capturar o Sol e rejeitar o tempo cronológico, antevendo a busca que Malevich empreenderia da expressão da forma pura, livre de relações de representação com objetos reais.
Malevich é fortemente associado ao movimento Construtivista. Este foi um movimento artístico concebido pela vanguarda russa durante a Revolução de 1917. Seus criadores defendiam que a sociedade pós-Revolução demandava uma linguagem artística radicalmente nova. Nesse sentido, o Construtivismo pretendia se desfazer da carga emocional subjetiva na criação artística, eventualmente rejeitando a pintura por considerarem se tratar de uma linguagem individualista burguesa.
Os artistas construtivistas se entendiam como os engenheiros de uma nova sociedade, cujas práticas serviriam a um bem social maior. Sua arte seria, nesse sentido, utilitária. Incorporaram na estética das obras a funcionalidade dos novos materiais presentes no dia a dia. Produziam objetos de uso cotidiano, desde móveis e aparatos domésticos, até cartazes de propaganda e toda uma gama de manifestações com fins sociais.
Apesar de Malevich ter, na época, uma estética similar, se valendo de cores primárias, elementos geométricos e arranjos composicionais similares aos dos construtivistas em suas obras, o artista desenvolveu um movimento próprio, o Suprematismo.
Em 1915, Malevich publicou o manifesto Do Cubismo ao Futurismo ao Suprematismo: o Novo Realismo na Pintura, escrito em colaboração com o poeta Vladimir Maiakóvski (1894-1930). Esta publicação sistematizava ideias que o artista explorava desde o início da década de 1910, enquanto buscava desenvolver a base conceitual do Suprematismo.
Através do movimento Suprematista, Malevich pretendia desenvolver uma forma de expressão que estivesse o mais distante possível do foco da representação de um objeto do mundo das formas naturais para que pudesse acessar o que ele denominava como a supremacia do sentimento puro e da espiritualidade. Malevich aprimorou seu estilo ao desenvolver um vocabulário pictórico extremamente simplificado, consistindo de formas geométricas e suas relações umas com as outras, organizadas contra um fundo minimalista.
O artista intencionalmente compunha essas interações entre os elementos pictóricos no espaço da tela de maneira a evitar que pudessem ser comparadas a elementos do real, como edifícios ou outras estruturas arquitetônicas. Diferentemente dos construtivistas, Malevich defendia uma arte livre de finalidades práticas, pois estava interessado na pura visualidade plástica.
É preciso notar, no entanto, que a noção de espiritualidade alcançada através da arte na perspectiva de Malevich é diferente da de seu contemporâneo Wassily Kandinsky (1866-1944). Kandinsky, em seu livro Do Espiritual na Arte (1912), comparava o momento espiritual da sociedade a uma pirâmide, sendo a base representativa dos aspectos materiais e o topo representativo dos aspectos espirituais.
Ele afirmava que seria a função dos artistas fazer avançar a humanidade em direção ao cume desta pirâmide. Já Malevich, tinha sua prática artística inspirada, em parte, por noções apresentadas pelo místico e matemático russo P.D. Ouspensky, que defendia haver por trás do mundo visível um outro mundo, além do que os sentidos humanos têm acesso.
O suprematismo representaria esse mundo não objetivo em sua energia espiritual abstrata. Malevich se dedicava a pesquisar metodicamente a estrutura da imagem na busca de uma “forma absoluta” ou uma “molécula pictórica”, como ele definia em seu manifesto de 1915.
“Eu me transformei no zero da forma e me puxei para fora do lodaçal sem valor da arte acadêmica. Eu destruí o círculo do horizonte e fugi do círculo dos objetos, do anel do horizonte que aprisionou o artista e as formas da natureza. O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva. O rosto da nova arte. O quadrado é o infante real, vivo. É o primeiro passo da criação pura em arte”.
Malevich
O momento chave do nascimento do Suprematismo se deu na exposição coletiva A Última Exposição de Quadros Futuristas 0.10, realizada em dezembro de 1915, em São Petersburgo, na Rússia. O número zero no título significava este novo começo, o ponto de partida do qual surgiria a nova arte. Já o número dez, representava o número de artistas participantes da exposição. Nela, o artista apresentou um conjunto de cerca de cinquenta obras suprematistas em uma sala dedicada somente à sua produção. Tais obras expressavam sua nova proposta pictórica: formas geométricas básicas – quadrado, retângulo, círculo, cruz e triângulo – majoritariamente nas cores primárias, além de preto e branco.
O grande destaque do conjunto foi Quadrado negro, na qual um quadrado em preto sólido habita um fundo branco. O quadro foi exibido numa quina da sala, um pouco mais alto que as demais obras, posição tradicionalmente dedicada aos cânones clássicos. Esta obra representou a pintura abstrata mais radical já produzida até então e traçou uma linha irremediável entre a “nova” e “velha” arte.
Com a chegada de Stalin ao poder na Rússia em 1924, os ideais estéticos mudaram completamente no país, que incorporou o Realismo Socialista, movimento diametralmente oposto ao Suprematismo de Malevich. O artista abandonou sua prática abstrata e passou a produzir obras figurativas, ainda assinando os trabalhos com um quadrado negro. Pouco tempo depois, em 1935, Malevich faleceu em decorrência de problemas de saúde.
No entanto, suas ideias revolucionárias acerca da pintura e sua estética disruptiva já haviam se instaurado no campo das artes e toda uma geração de artistas passou a produzir a partir desse espaço aberto por Malevich. Esse novo pensamento artístico era tão radical que muitos destes artistas precisaram fugir da Europa em decorrência da perseguição política deflagrada pelas guerras e pela ascensão do regime nazista. Nos anos 1950, as ideias do Construtivismo e do Suprematismo chegaram às Américas, influenciando artistas no Brasil e nos Estados Unidos e originando movimentos fundamentais da História da Arte, como o Expressionismo Abstrato americano e o Movimento Neoconcreto Brasileiro.
Artistas chave para as artes no Brasil, como Lygia Clark e Hélio Oiticica descendem diretamente da genealogia artística fundada por Malevich e seguem desenvolvendo estas ideias acerca da arte ainda hoje.
Ao despojar a obra de todo o supérfluo e alcançar o vazio da ausência completa de representação, Malevich libertou a arte da pressão de ser um espelho do mundo. O zero absoluto pictórico de Malevich não foi o fim da pintura, mas o ponto de partida para um novo começo.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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