Tarsila do Amaral tornou-se referência na pintura internacional e nacional, representando a busca por uma arte brasileira autêntica, abordando temáticas e narrativas populares que representam a cultura brasileira. Influente membro do grupo modernista e do movimento antropofágico, a artista criou uma nova forma de retratar a sociedade brasileira no decorrer das suas fases artísticas.
Nascida em uma família de cafeicultores do interior de São Paulo em setembro de 1886, Tarsila do Amaral foi criada sob forte influência intelectual desde a infância, aprendeu piano, a língua francesa e frequentou colégios da elite paulistana. Na adolescência, Tarsila viajou com os seus pais para a Espanha para aperfeiçoar os estudos, onde começa os seus primeiros passos na pintura, copiando obras de arte que viu nos arquivos de sua escola; pintando o seu primeiro quadro em 1904, uma representação do Sagrado Coração de Jesus.
Com a sua atenção voltada em aprimorar a técnica artística, Tarsila começa a estudar modelagem com o escultor William Zadig (1884-1952) e posteriormente pintura a óleo com pintor Pedro Alexandrino (1856-1942), onde conhece a artista Anita Malfatti (1889-1964). Ambos professores eram reconhecidos e respeitados no meio artístico, porém, vinham de uma escola clássica e conservadora, ainda limitada perante as influências que começavam a surgir na Europa. Desta forma, a artista se muda para Paris em 1920 para estudar escultura e pintura na academia Julian. Definida como a sua obra simbólica, a tela “Figura (O Passaporte)”, de 1922, é aceita no Salão Oficial dos Artistas Franceses, inaugurando a sua entrada no campo da arte.
O seu retorno ao Brasil é motivado pela Semana de Arte Moderna, não participando diretamente com as suas obras, mas acompanhando com proximidade o evento. Com o fortalecimento do modernismo brasileiro, Tarsila uniu-se aos artistas que propagavam a vanguarda artística no país; nomeados como “Grupo dos Cinco”, era composto por Anita Malfatti, Menotti Del Picchia (1892-1988), Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954). A proposta do grupo era promover debates sobre a cultura brasileira pela arte, literatura e música, reinterpretando os estilos europeus sob o olhar brasileiro. Em 1926, Tarsila e Oswald casaram em São Paulo, sendo considerados o casal mais influente do modernismo brasileiro.
Buscando uma nova identidade estética, a artista começa a romper com a temática europeia, abordando temáticas que até então não eram evidenciadas pelos artistas brasileiros. A proposta da artista nesta fase, conhecida como Pau-Brasil, era exportar a nova arte brasileira para o mundo com a mesma notoriedade exportadora que ocorreu com a árvore que leva o mesmo nome. Tarsila viaja com Oswald de Andrade pelo interior do Brasil em busca de cenas que representassem as diversas realidades brasileiras, expondo as paisagens rurais, a fauna, a periferia e seus habitantes. Nas obras “Morro da Favela” (1924) e “O vendedor de frutas” (1925), vemos o registro do interior do Brasil que estava intocado pela industrialização.
A temática figurativa abordada por Tarsila neste momento é de comparação: registrando pequenas cidades em que a industrialização não chegou e posteriormente, registrando as mudanças que a modernização causou na capital. Nas duas obras, vemos a influência do fauvismo nas cores vibrantes, atrelados ao cubismo nas formas e com a composição da arte naïf nas cenas; o lúdico e o alegre tornam-se presentes, pois a viagem pelo interior fez a artista relembrar a sua infância no meio rural. Essa fase durou cerca de quatro anos (1924-1928).
Em sua próxima fase artística, ela será definida pelo peso simbólico da obra “Abaporu” (1928), sendo o quadro que inspirou o movimento antropofágico. Com formas anatômicas exacerbadas e composto por cores que remetem a bandeira brasileira, o quadro vem de encontro com a busca da identidade artística nacional.
A origem do nome da obra vem da junção de três palavras do Tupi-Guarani: aba (homem) e pora (gente) e ú (comer), “O homem que come gente”. A inspiração vem dos guerreiros indígenas que comiam os seus inimigos. A proposta de Oswald de Andrade e da artista era fundar um movimento que “engolisse” as influências culturais internacionais, resultando na criação de um novo estilo brasileiro: o movimento Antropofágico. A fase antropofágica durou cerca de dois anos para Tarsila (1928-1930), mas o movimento expandiu-se pela poesia, música e artes, inspirando artistas e escritores nas próximas décadas.
Além de ser considerada o ícone do modernismo brasileiro, a obra antropofágica foi um presente para Oswald, porém, no decorrer das décadas a tela passou por diversos trâmites de circulação no mercado. Em 1995, o Abaporu foi arrematado pelo empresário e colecionador de artes argentino Eduardo Costantini por cerca de 1,5 milhão de dólares (em torno de R$ 7,6 milhões), tornando-se o primeiro quadro brasileiro que ultrapassou a faixa do milhão. Com um extenso acervo pessoal, Costantini fundou o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, o MALBA; doando o seu acervo para o museu, entre elas, o Abaporu. Por ser uma obra fundamental na história da arte brasileira, houve tentativas de negociação por parte do governo federal brasileiro em trazer de volta a obra ao país, mas o empresário afirmou que não venderia a obra nem por muitos milhões de dólares.
Na fase antropofágica, Tarsila abordou temáticas fantásticas que envolviam os seus sonhos, lembranças vividas e o misticismo da natureza, como na obra “Distância”, de 1928. Vemos a representação da caatinga atrelada a uma composição geométrica hipnótica em forma de ondas ecoando pela cena; a artista via a natureza como um ente vivo, folclórico, com os seus mistérios e poderes. Na obra “Composição”, de 1930, uma figura feminina é vista em um campo à noite com quatro formas verdes indefinidas. A sensação de solidão e a predominância do azul bucólico remetem a um momento delicado para a artista, onde sua família foi atingida financeiramente pela crise de 1929.
Na virada da década, Tarsila faz uma exposição em Moscou em 1931. A visita na república soviética influenciou suas novas obras com temas voltados para as causas sociais; período conhecido como a sua fase social (1933). De volta ao Brasil, a artista dedica os seus novos trabalhos para as questões no meio urbano-industrial paulistano, retratando a vida do trabalhador e as mazelas da pobreza.
Na obra “Operários” (1933) vemos um contingente aglutinado de imigrantes e brasileiros com olhares cansados, expondo o conflito que há entre os trabalhadores e a força sufocante da industrialização e urbanização, evidenciada ao fundo da tela. Na obra “Segunda Classe” (1933), é retratado os migrantes chegando em São Paulo, o clima do quadro remete ao desamparo e a tristeza que havia no sertão. Corpos magros, rostos contorcidos e desnutridos representam a fome que assolava o país. Neste período, o direito trabalhista era reduzido, permitindo períodos de trabalho de 15 horas por dia, incluindo mulheres e crianças.
Dos anos 1930 até 1950, a artista revisita as fases Pau-Brasil e Antropofágica, unindo-as em uma fase definida como Neo Pau-Brasil, desenvolvendo novamente obras voltadas para o tema rural e de retratos. Porém, um conjunto de quatro obras chama atenção por mesclar o surrealismo antropofágico com tons e traços mais suaves do impressionismo. “Primavera” de 1946 e “Praia” de 1947, por exemplo, retratam figuras humanas deitadas na praia.
O movimento dos corpos, o entrelaçamento dos braços e pernas avermelhados e o longo cabelo que se funde na perspectiva bucólica ao fundo, pode ser definida como uma fase originalmente distinta das demais fases da artista. Nestas obras é possível ter uma dupla interpretação sobre a proporcionalidade dos corpos, podendo ser humanos agigantados como em Abaporu ou formada pela perspectiva de uma lente grande angular, que distorce o primeiro plano alongando ao infinito.
A mescla dos diversos estilos e experiências vivenciadas pela artista acarretou na sua última fase novos olhares para cenas já retratadas, como a cena vista em sua última obra catalogada “Paisagem com dezesseis casas” (1967), porém, agora representada de forma silenciosa e sem o movimento dos moradores; diferente das obras representadas na fase Pau-Brasil.
Em 2021 foi lançada a animação “Tarsilinha” que narra a aventura da pequena Tarsila em um mundo fantástico inspirado nas obras da artista. Na trama, a pequena Tarsila precisa enfrentar diversos seres exóticos e folclóricos para recuperar a memória perdida de sua mãe. O longa foi premiado no mesmo ano no 10º festival internacional de animação chileno, o Chilemonos.
Mesmo não participando oficialmente da Semana de 22, Tarsila é reconhecida como uma das principais artistas do modernismo brasileiro. Com a comemoração do centenário da semana de arte moderna, as obras da artista voltam à cena em diversas exposições que ocorrem neste ano. Entre elas, a exposição coletiva Modernismo Brasileiro, em cartaz até dia 16 de setembro no Centro Cultural de Capivari, no interior de São Paulo, onde é celebrado o aniversário de Tarsila do Amaral, comemorado no dia 1 de setembro.
Na exposição “Tarsila Popular”, ocorrida em 2019, foi proposto pelos curadores trazer um novo olhar sobre o trabalho da artista. O enfoque foram as temáticas populares que a artista retratou em suas obras, evidenciando os diferentes campos sociais que foram registrados em seus trabalhos. A partir dessas novas abordagens, expande-se a visão da sua trajetória, que ora orbitou entre a legitimação artística internacional e o convívio com a classe intelectual, ora buscando abordar questões sociais brasileiras. A exposição bateu o recorde e tornou-se a mais visitada na história do Masp, com mais de 402 mil visitantes, destronando a exposição sobre o francês Claude Monet, em 1997, com um público contabilizado em 401 mil pessoas.
Carlos Gonçalves é graduando em Jornalismo pela PUC-SP, com pesquisa científica em crítica de arte.
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