As principais instituições culturais do Brasil se organizaram para, este ano, celebrar o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Cada museu e centro cultural que se incumbiu desta tarefa buscou uma forma – através de exposição ou seminário – de revisitar o evento que se tornou um marco da reverberação da arte moderna no país. Alguns exemplos são o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Centro Cultural do Banco do Brasil e o Paço das Artes, entre outros. O que fica logo visível ao olhar esse conjunto de exposições é o fato de que nenhum projeto curatorial que envolve o centenário poderia ocorrer sem um teor crítico de revisão.
Entre todas as exposições que encontraram seu modo de olhar para a famigerada semana, a Contramemória – esta que ocorre no Theatro Municipal de São Paulo, o palco do evento centenário – tem um lugar especial por sua localização e relações traçadas pela curadoria. O projeto curatorial é de Jaime Lauriano, Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro, e conta com cerca de 115 obras de mais de 50 artistas e coletivos. Em visita pela exposição, Schwarcz e Lauriano compartilharam detalhes sobre o projeto, dos motes curatoriais aos artistas e os diálogos dentro e fora do Theatro.
Detalhe da obra de Sol Casal Foto: Larissa Paz.
Hoje, compreendemos que a Semana de 22 se tornou um mito muito maior do que realmente foi quando ocorreu, e seu impacto ganhou corpo por uma construção discursiva de décadas. Tendo isso em vista, a presença de modernistas que protagonizaram a Semana de 22 demonstra que essa exposição busca novas formas de olhar para a contribuição destes, ao invés de apenas reduzi-la.
Anita Malfatti e Di Cavalcanti, por exemplo, estão ao lado de artistas contemporâneos que representam corpos excluídos na exposição que ocorreu no Theatro 100 anos atrás. Esse diálogo ocorre no espaço da forma mais direta possível, evitando qualquer hierarquia. Trata-se de um novo olhar através do compartilhamento do espaço e confronto direto com os contemporâneos em atividade.
“A ideia de ‘contra a memória’ numa palavra só é justamente porque ela quer reelaborar, reler, rever, sem cancelar a Semana de 22″, afirma Schwarcz.
O acervo modernista presente faz parte da coleção do Centro Cultural São Paulo, e tais obras foram inicialmente reunidas por Mário de Andrade, figura emblemática do modernismo e um dos articuladores da Semana de 22.
Retrato de Mário de Andrade pintado por Flávio de Carvalho. Foto: Diogo Barros.
A exposição se inicia pelo salão de entrada no térreo, onde ocorreu a exposição de artes plásticas na Semana de 22, uma parte geralmente pouco mencionada em relação aos espetáculos, a literatura e a música. Estão presentes duas obras de Flávio Cerqueira, escultor paulistano que trabalha com o bronze, material base das estátuas que ornamentam a escadaria do Municipal. Uma delas é Tião, versão contemporânea, brasileira e periférica de São Sebastião, corporificada por Cerqueira em uma escultura de bronze: um garoto negro que recepciona o público e dá o primeiro tom da exposição. No lugar das flechas que marcam a história de São Sebastião, estão marcas de balas.
Além destas, estão obras de Adriana Varejão e Raphael Escobar que, em suma, questionam a própria materialidade da arquitetura daquele edifício e o modo como ela pode ser intimidadora ou receptiva, de acordo com o público que a adentra.
Adriana Varejão. Figura de Convite III, 2005. Foto: Diogo Barros.
Varejão possui uma longa pesquisa em torno da materialidade colonial, e sua obra é inspirada nas figuras de convite, postas nas entradas de locais luxuosos para receber os convidados. Uma obra têxtil de Sonia Gomes, artista mineira baseada em São Paulo, está suspensa no alto na escadaria central, e pode ser vista da entrada do Theatro, assim como de quase todos os pontos da exposição. A materialidade maleável e colorida da obra contrasta fortemente com a sobriedade da arquitetura.
Vista da obra de Sonia Gomes suspensa. Foto: Larissa Paz.
Outra obra que pode ser percebida de todos os lugares da exposição é a gravação sonora da artista indígena Daiara Tukano, um dos destaques na última Bienal de São Paulo. Além da instalação sonora, Tukano produziu pouco antes da exposição ser inaugurada uma obra em papel, com cerca de 200 metros de comprimento, segundo o curador Lauriano. A cobra é composta por uma grande carta escrita à mão, tendo sido instalada na escadaria do Theatro na abertura, e posteriormente realocada para o primeiro andar.
Ao subir as escadas, a exposição vai tomando novas proporções e iniciando as contraposições entre modernos e contemporâneos. É possível iniciar o trajeto por dois lados diferentes, que levam à área expositiva do primeiro andar. Os espelhos e os arcos do Theatro permitem que obras postas em espaços opostos e distantes possam se encontrar em diversos pontos de vista ao longo da visita e assim, como Schwarcz afirma, “o Theatro se tornou moldura”.
A suspensão das obras é feita por uma linha que imita o ouro, dialogando com a arquitetura e respeitando o prédio integralmente tombado, ligando os diversos eixos criados pela curadoria. A respeito das estratégias na expografia, Schwarcz comenta: “A gente criou uma exposição suspensa, para de alguma maneira lidar com essa ideia do patrimônio. Eu sempre brinco que essa exposição é também um exercício de teimosia”.
Vista da exposição. Foto: Larissa Paz.
Lauriano e Schwarcz trabalham juntos em diversos projetos, entre publicações e exposições. Um deles é a Enciclopédia Negra, que possui um livro e uma exposição que ocorreu na Pinacoteca de São Paulo. Este projeto também possui um forte caráter de revisão histórica e um esforço de reposicionamento de determinados recortes sociais e raciais, mas com um foco específico em artistas negros. Sobre quais diferenças e semelhanças entre a Enciclopédia Negra e a Contramemória poderiam ser destacadas, Lauriano afirma:
“[…] a diferença é que lá [na Enciclopédia Negra] estávamos focados nas biografias e nas histórias pessoais e subjetivas que no todo faziam a história do Brasil, e aqui estamos num caminho contrário pensando numa história do todo para chegar nas particularidades. Assim, lá saímos mais do micro para o macro, e aqui do macro para o micro, e por isso aqui incluímos outros, outras e outres pensadores para trabalhar conosco.”
Assim como houve um certo tipo de atualização das linguagens artísticas no Municipal em 1922, a exposição Contramemória traz mídias atuais para o mesmo espaço. Obras em vídeo, instalações sonoras, esculturas feitas de materiais não convencionais e ready mades são alguns exemplos para entendermos como a Contramemória promove uma atualização do que é vanguarda.
As novas possibilidades trazidas pela curadoria se dão além das mídias, e consideram quem está produzindo um imaginário coletivo hoje. Além de artistas visuais que possuem pesquisas individuais, a curadoria convidou coletivos como a PerifaCon, a Frente 3 de Fevereiro e a Mídia Ninja para compor a exposição.
Artistas convidados pela PerifaCon – a convenção de cultura pop da periferia de São Paulo – produziram retratos de artistas e intelectuais modernistas – que tiveram grande contribuição à cultura brasileira como Mário de Andrade, Lélia Gonzalez, Jorge Lafond (Vera Verão), Elza Soares e Dina Di. Esta última foi homenageada pela artista Keyth Felix por seu pioneirismo em ser a primeira mulher reconhecida no rap nacional após se tornar vocalista do grupo Visão de Rua.
Parede com obras comissionadas para artistas da PerifaCon. Foto: Larissa Paz.
Tais presenças reafirmam aquilo que é transformador na arte através de novas mídias, novas linguagens, novas narrativas e modos de se produzir coletivamente. Comprovam, também, que o avanço de lutas sociais como do movimento negro e LGBTIA+ nas últimas décadas afetaram não apenas a sociedade, mas o sistema das artes visuais. Com isso, o contexto social atual possibilita que a presença de artistas negres, trans e indígenas, por exemplo, seja possível em todo tipo de espaço cultural. Esses grupos que foram retratados de formas fetichizadas e distorcidas ao longo de séculos na arte brasileira – incluindo o modernismo -, ocupam agora o protagonismo de suas próprias narrativas.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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