A releitura de obras de arte clássica é um recurso usado para diversos fins; seja no aprendizado de técnicas de desenho e pintura, seja em homenagem ao autor original do trabalho, ou ainda, para fins de revisão de sentidos.
É este último o mais interessante para análise. Sendo a reprodução considerada mera cópia pela maior parte da crítica de arte, a releitura deve se proporcionar como uma forma de ler novamente e a partir de outra perspectiva os motivos indicados em determinado trabalho artístico.
Ao refazer uma cena há a possibilidade de projeção criativa de novos conceitos, novas informações que ressignificam a cena e nos fazem observar e extrair um novo discurso. Cada geração atribui novos significados à arte e precisa retomar todo o contexto histórico para chegar a uma leitura coerente que se compreenda o passado para projetar um novo presente. A releitura se coloca então nesse lugar de intensa projeção de ideias.
O site do museu-casa do artista estadunidense Edward Hopper é um grande exemplo. Adaptou recentemente as imagens ilustrativas do site que são fragmentos da pintura de Hopper e inseriu máscara higiênica nos rostos dos personagens.
A edição das imagens, porém, não foram feitas pelo próprio artista, mas pela equipe do museu. Como uma forma de incentivar a proteção contra o novo coronavírus, a instituição encontrou esta forma inusitada de adaptar os personagens para os novos tempos.
Diferente desta proposta, há uma série de artistas contemporâneos que revisitaram as obras dos artistas clássicos em busca de ampliar os significados e aderir a questões pertinentes aos dias atuais.
O artista urbano Banksy é um ícone da sátira. O seu anonimato é um elemento que contribui para toda a mística e fama da sua narrativa, mas seu trabalho surpreende a todos que observam por tirá-los da zona de conforto e puxar a razão sobre o assunto em questão.
Em “Show Me The Monet” faz uma clara e dura crítica ao consumo e o tratamento dado ao meio ambiente, que se torna secundário em detrimento dos impulsos consumistas.
Quebra toda a harmonia, o sonho e o encantamento despertados pela observação do jardim do artista Claude Monet. Um jardim que faz parte da casa do pintor, foi estrategicamente projetado por ele com flores e um lago semelhante aos lagos japoneses. A perfeição e pureza do espaço da pintura original é arruinada na obra de Banksy e nos traz de volta à realidade da poluição que enfrentamos diariamente. O choque nos obriga a refletir sobre a seriedade da crise ambiental.
O nome é uma referência ao famoso bordão em inglês que significa “mostre-me o dinheiro”, com um trocadilho entre a palavra money (dinheiro) e o Monet, o nome do pintor da obra original.
Artista muralista conhecido mundialmente, Kobra tem uma estética bem marcada pelas cores e formas geométricas. Faz pinturas de personalidades famosas como Michael Jackson, Amy Winehouse e Kurt Cobain e ilustrações em defesa de grupos étnicos, além de algumas cenas divertidas como a de Albert Einstein andando de bicicleta.
Uma das obras mais comentadas foi a releitura de Persistência da Memória de Salvador Dalí. O quadro original foi feito em 1931 e passou a ser o símbolo do movimento surrealista. Os objetos dispostos em uma paisagem de deserto obedecem a uma lei de derretimento e esvaziamento, estando todas alongadas e deformadas. Seguindo a sugestão do título a cena é uma espécie de lembranças e fragmentos distorcidos registrados por nossa memória.
Na releitura de Kobra, o motivo da distorção é outro. Por cima de geleiras derretidas, os objetos acompanham a destruição e o sofrimento do meio ambiente diante das mudanças climáticas e o aquecimento global.
Foi exposta num grande mural de 80m² em prédios da Europa, ganhando grande repercussão internacional.
Mundano, artivista brasileiro fundador do projeto Pimp My Carroça e famoso por seu grafite papo-reto, fez algumas releituras em sua carreira de personagens ícones da história da pintura.
A releitura que mais se destaca é Operários de Tarsila do Amaral. O sentido de consciência social já estava presente no trabalho de Tarsila. A releitura de Mundano, porém, eleva a outro nível a discussão. O material usado é a lama escorrida do rompimento da barragem em Brumadinho, fazendo a obra adquirir incríveis tons terrosos.
Os personagens são mais abrangentes na releitura ao ampliar a diversidade com grupos indígenas, negros e diferentes trabalhadores. Foi pintado na empena de um prédio no centro da cidade de São Paulo e tem tamanho monumental. O tom é de protesto, em entrevista à CBN, Mundano diz:
“Era necessário criar um monumento, uma homenagem. Algo para a gente não esquecer da tragédia”.
Em outras releituras, ele também usa esse recurso como forma de valorização da voz popular. Em O Mestiço, Abaporu e Monalisa, o elemento novo é o alto falante, objeto de forte presença no seu trabalho como símbolo de empoderamento.
Além disso, aos dois retratos foi inserida a tonalidade verde na pele dos personagens, uma marca-chave do grafite socialmente consciente de Mundano. É como se deixássemos de entender o Mestiço e a Monalisa como agentes meramente ilustrativos para então vê-los como cidadãos do mundo que se expressam e manifestam sua individualidade.
Vik Muniz é um artista brasileiro radicado nos Estados Unidos e um dos mais valorizados no mercado de arte internacional.
A utilização de materiais incomuns para a composição da obra é a tônica do seu trabalho. Vê em qualquer elemento cotidiano, a possibilidade para a representação. Na fotografia, também vê o potencial de ampliação dos elementos representados ali.
A “banalização” da imagem é um ponto de reflexão para o artista, que transforma a mera visualização do trabalho artístico em uma descoberta de possibilidades, fragmentos e materiais que ressignificam o mero ato de representar.
As releituras de Monalisa e A Morte de Marat nos obrigam a olhar atentamente uma segunda vez para entender do que são feitos os materiais ali expostos. A reprodução da Monalisa é feita com pasta de amendoim e geleia num rápido movimento de modelagem. A Morte de Marat foi composta com vários elementos como cadeados e chinelos e conforme a observação, novos materiais vão ali aparecendo aos olhos.
É uma maneira de prender a atenção na imagem, um hábito que foi perdido desde o boom dos meios de comunicação que tornaram cada minuto em possibilidade de propaganda, bombardeando nossos olhos com centenas de informações.
Ao se deparar com uma dessas obras de Vik Muniz, percebemos como objetos comuns podem receber diferentes proposições e a troca de perspectiva incentiva uma visão mais consciente e criativa da realidade.
O artista contemporâneo brasileiro Nelson Leirner, que desenvolve uma linguagem conceitual forte também usou da releitura para propor reflexão.
“Quadro a Quadro: Cem Monas”, traz um total de cem imagens da Monalisa, todas revisitadas com adornos modernos e bregas. A ironia e o humor trazido nesses retratos banalizam a imagem sagrada e intacta da Monalisa original.
É uma demonstração sobre as consequências do tratamento midiático dado às imagens atualmente que, de tão alteradas, divulgadas e repetidas, já perdem qualquer tipo de sensibilidade e passam sem reter nossa atenção.
Artista colombiano que criou uma estética característica em seus personagens, se inspirou em diversas pinturas clássicas para compor suas pinturas.
A Monalisa, como sempre referenciada nas releituras por sua fama, novamente aparece aqui, mas com outra proposta: se adequa à estética volumosa dos personagens “Boterianos”.
O artista representa pessoas gordas e objetos em grande escala. Percebemos que atribui volume a praticamente todos os elementos em destaque na pintura, o que concluímos que não é sobre pessoas gordas, mas sobre volume. Essa é a chave do trabalho.
O casal Arnolfini, de Jan Van Eyck, é completamente diferente do original ao serem construídos por Botero.
Trazendo essa segunda leitura para as obras clássicas, o artista ganhou grande repercussão e fama, sendo, nos anos 2001, considerado o artista mais bem pago do mundo.
É comum, como visto, que as releituras sejam feitas a partir de obras clássicas ou muito famosas, cuja essência é perdida a partir da repetição ao longo do tempo. Quando observamos demais uma imagem, ela passa de um lugar de surpresa para um lugar de trivial.
Os artistas, com o olhar aguçado da sua geração, percebem as relações entre a história daquela obra e a sociedade atual. Preenchem as lacunas e encontram em cada cena, a possibilidade de reter novamente a atenção dos observadores para o presente ao subverter a ordem do passado.
A proposta é justamente rever, repensar e, finalmente, “re-ler”.
Victoria Louise é jornalista, formada em Crítica e Curadoria da Arte pela PUC-SP.
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2 Comments
Muito interessante, fresco e motivador. Parabéns.
banky gostei muito porque tem sua arte de rua e seu trabalho de comentários sócias e políticos pode ser encontrados em rua,muros e pontes de cidades pelo mundo todo