O artista plástico que foi pintor, desenhista, professor, mas, sobretudo, um projetista. Nelson Leirner deixou o mundo da arte brasileira órfão no último dia 07 de março após um infarto no Rio de Janeiro.
“Quero provocar o olhar” – suas reflexões marcantes passearam pelo contexto criativo da arte contemporânea durante seus 60 anos de carreira. Nascido em janeiro de 1932, estava envolvido no mundo da arte desde o nascimento – mãe artista e pai diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo – Leirner decidiu que tomaria a profissão de artista como sua principal escolha.O início de sua carreira foi facilitado pela influência dos pais. Sua primeira exposição ganhou texto elaborado pelo presidente da Associação Internacional de Críticos de Arte da época – que não tinha visitado de fato a mostra – e espaço na então considerada melhor galeria da cidade de São Paulo – Galeria São Luís.
Porém, nenhuma carreira pode ser mantida durante 60 anos apenas por influência de poderes. Leirner foi construindo seu espaço, sua vertente de pesquisa e se desligando do estigma que recebeu quando se apresentou como filho de Isai e Felicia Leirner.
Demonstrou, durante sua trajetória, sua maior inquietação: o olhar acomodado e submisso do público que não questiona as normas sociais, econômicas e políticas já cristalizadas.
O artista trabalhou a partir da consciência do seu entorno. Sobre qualquer proposta, seja o afronte à dinâmica do mercado de arte ou ao culto à figura do artista e da obra como fenômeno único e isolado, sempre houve a necessidade de desviciar o olhar, de provocar, instigar e despertar ideias. Suas obras, para além da contemplação estética, vão de encontro à transmissão de suas ideias, ao estranhamento do observador ao sair de sua zona de conforto e ser convidado a participar.
Em 1966, Leirner elabora um trabalho para o 4º Salão de Arte Moderna de Brasília – O Porco Empalhado. Decidiu fazer um trabalho que se deixasse interferir por motivos políticos, já que o período do Brasil na época era de conturbação política mais do que qualquer outro âmbito. O porco na situação de taxidermia era uma posse do artista já antes da realização do trabalho. Decidiu por transformá-lo e colocá-lo dentro de uma jaula apertada construída com madeira e um presunto cru amarrado ao seu pescoço. A situação de um ser enjaulado de maneira a não conseguir se mover, cria a situação de ambiguidad entre vida e morte – o animal pode estar vivo, como pode estar morto. A jaula faz alusão às grades invisíveis e imaginárias que limitam a criatividade e o espírito contemporâneos. O presunto remete ao consumo, ao produto industrializado, e demonstra a escravidão da vida perante o consumo, elemento no qual a sociedade toda está tão envolvida que se deixa sugar todas as possibilidades de visão e perspectiva criativa.
Conceito era uma palavra recorrente nas suas entrevistas. Como projetista, suas obras não se concretizavam no material, mas atingiam seu ápice como arte quando em expressão de seu conceito ao observador. Sua arte não se limitava ao objeto final e, fugindo de qualquer apelo estético, o objeto é responsável apenas por fazer alusão à ideia.
Leitor e apreciador de cinema, encontrava inspirações na absorção das outras produções artísticas. Conseguia encontrar possibilidades dentro de dados prontos, mudava a forma de olhar e de apresentar a ideia, multiplicando e potencializando o significado das obras.
É o exemplo de sua exposição A Nova Revolução Industrial. A mostra, elaborada no início de 2018, se deu como um recorte, uma projeção de uma ideia mais do que a contemplação estética em si. O projeto demonstra a percepção do artista acerca dos objetos e como são demonstradas as novas dinâmicas sociais da atualidade. Questiona o tempo, a tecnologia e as formas atuais de produção e traz, nos objetos, a lembrança do antigo e a consciência do novo.
No trabalho de “Quadro a quadro: cem monas” de 2012, Leirner brinca com cores e formas, e traz a carga de ironia acerca da manipulação das imagens digitais. Quando altera elementos de uma figura clássica, o artista destrói qualquer possibilidade de culto à imagem, já que, a primeira reação do observador é o estranhamento e a mudança de perspectiva com relação à imagem. Observar uma Monalisa com brincos, acessórios femininos contemporâneos e populares, desmistifica toda a aura sacra daquele ícone e ensina a olhar com outros olhos tudo o que se vê ao redor.
Voltamos à máxima do artista acerca do olhar – provocá-lo era seu mote, sair da zona de conforto e não aceitar as informações dadas como estão, mas potencializá-las a partir de novas perspectivas. Assim Nelson Leirner construiu sua carreira nos ensinando a olhar; nos deixou de herança suas obras e agora é responsabilidade do mundo da arte manter sua estrutura forte e, esperamos, ainda posta em questão.
Obras da exposição “Quadro a quadro: cem monas” (Divulgação)
Victoria Louise é formada em Crítica e Curadoria de Arte e Gestão Cultural pela PUC-SP. É fotógrafa independente e colunista da Artsoul.
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