O lançamento do diretor Barry Avrich, Fake Art: Uma História Real incorpora o drama, o suspense e o humor ao contar sobre a maior fraude já documentada na história da arte.
A narrativa caminha cronologicamente sobre a venda de obras de arte falsificadas pela galeria mais respeitada do circuito artístico na época. A Knoedler era a galeria mais antiga no mercado de arte de Nova York, fundada em 1846.
A fraude aconteceu ao longo dos anos 2000, quando Ann Freedman, negociante à frente da galeria, comprou obras falsificadas por um artista chinês. As obras chegaram na galeria através da negociante Glafira Rosales, que arquitetou narrativa e documentação convincentes de precedência das obras para oferecê-las à Knoedler que comprou e aceitou como autênticas, sendo posteriormente processada.
O tom cômico do documentário é despertado pela aparência inacreditável de que uma obra com o nome do artista gravado errado na assinatura fosse aceita como um grande trabalho. É realmente impressionante assistir como a venda aconteceu e como o enredo caminhou para este fim.
O documentário tem estrutura padrão: depoimentos de diversos profissionais que acompanharam o caso, relatando, cada um à sua maneira, as impressões sobre os fatos.
O ponto chave está na contradição dos discursos. Enquanto diversos profissionais afirmam categoricamente que Ann Freedman participou ativamente da fraude, a própria Ann Freedman defendeu a autenticidade das obras e sua inocência, afirmando que foi uma das personagens também enganadas por Glafira Rosales.
Alguns dados sabemos, outros foram deixados em aberto pelo diretor. Segundo Avrich, ele “não é Michael Moore”* e não pretende destruir uma carreira, mas tem intenção de abrir as portas para que o público decida em que acreditar.
É curioso que após tantos ataques recebidos da imprensa, Ann Freedman tenha concordado em prestar o depoimento. Seria compreensível continuar relutante, tendo em vista que todas as evidências levam a deduzir que ela tenha participado ativamente da farsa. Sua participação no documentário foi resultado de um trabalho do diretor que buscou criar confiança com a galerista ao dispor espaço para que ela pudesse contar a sua versão. Freedman traz dados interessantes à tona ao contar que buscou a avaliação de vários especialistas sobre as obras, inclusive o filho de um dos artistas que expressou grande aceitação ao observar o trabalho.
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O documentário abre tanto os caminhos que, ao término, se torna árdua a tarefa de escolher alguma das versões, se assemelhando ao debate sobre Capitu e Bentinho, grandes personagens da literatura brasileira.
O documentário mostra ao público como funciona o processo de legitimação, de compra e de negociação. É um grande mergulho nos processos de análise do mercado que pouco se tem acesso ao visitar as instituições de arte. A procedência da obra, as coleções particulares e galerias pelas quais ela passou são fatores de fundamental importância para atribuição do valor monetário do trabalho. Essas informações geram especulação e um certo encantamento.
Jackson Pollock e Rothko representam uma espécie de independência ou pioneirismo dos Estados Unidos na produção artística mundial. A importância desses artistas justifica o grande alvoroço que se faz ao encontrar obras inéditas. Neste caso, porém, foi reproduzida por um desconhecido artista chinês. A decepção é inevitável e coloca em xeque os critérios das instituições e do público sobre a valorização artística e monetária de cada peça artística.
É possível pensar que os profissionais, seduzidos pela descoberta de obras inéditas, se tornaram negligentes com as incoerências dos documentos apresentados por Glafira. E há quem acredite que já era conhecimento de todos o caráter ilegítimo do trabalho mas que mesmo assim seguiram com a venda.
O sucesso de Glafira Rosales na venda de mais de R$ 80 milhões de dólares em obras de arte num mercado de alto investimento é admirável. Ao passo que é inevitável questionar o que torna as obras de fato valiosas.
A existência de um objeto artístico é consolidada pelo reconhecimento dado por alguém. Uma vez que uma pintura adquire sentido estético e simbólico, a falsificação cumpriu sua proposta. Por que, então, ela se torna do dia para o outro, descartável?
Talvez esse seja o maior incômodo dos colecionadores: a falsificação foi observada, admirada e ficou exposta num lugar especial escolhido por ele. Ao mesmo tempo que sabemos ser juridicamente ilegal se passar por outra pessoa ao forjar uma assinatura, em termos puramente artísticos, o que faz a tela deixar de ser uma grande obra por ter sido feita por Qian e não por Pollock?
Se não houve diferença quando observada, sendo inclusive elogiada por muitos, fica evidente que a legitimação é feita por outros fatores que não os puramente artísticos.
A análise puramente formal não encontra eco no mercado de arte contemporâneo. O mercado avalia diversos fatores que legitimam o trabalho enquanto patrimônio cultural a ser valorizado e digno de permanência e conservação.
Nesse sentido a obra original carrega o pioneirismo do autor em sua proposta artística, a solidez da carreira do artista, as relações que sua obra estabelece com outras mídias e a carga simbólica da história que se insere. Uma obra falsa, por outro lado, se torna um mero espectro de todos esses símbolos, perdendo seu valor em detrimento dos trabalhos originais que superam o tempo e prolongam o discurso dos grandes artistas.
É um longo debate, conduzido pelo documentário de forma leve e com trilha sonora estimulante. A reflexão sobre os dilemas constituintes do mercado de arte é complexa mas Barry Avrich constrói uma narrativa convidativa para todos os públicos.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
Serviço
Título original: Made You Look: a true story about fake art
Título em português: Fake Art: Uma história real
Diretor: Barry Avrich
Duração: 90 minutos
Gênero: Documentário
Classificação indicativa: Maiores de 12 anos
Lançamento: 2020
Disponível em: Netflix (a partir de fevereiro/2021)
*Entrevista concedida para o programa “In Isolation With Richard Crouse” em 24 de abril de 2020, disponível no youtube.
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