A arte abstrata, como o próprio nome já nos introduz, é a proposta artística que parte não de formas definidas ou já conhecidas, mas de abstrações na significação mais crua do termo: isolar tudo que é encontrado no mundo real e direcionar ao que não têm forma física, a um pensamento, um sentimento, uma sensação.
Na maior parte das vezes em que estudamos a história da arte, é frequente depararmos com retratações fiéis de momentos históricos, paisagens ou retratos de personalidades que há muito impactaram o pensamento do seu tempo. Quando observamos a arte abstrata, essas informações temáticas não se fazem mais óbvias, tampouco o que se pretendeu ali demonstrar, uma vez que nada do que se apresenta ali tem relação com o que observamos no mundo. A intenção é exatamente essa e para mergulhar na proposta da arte abstrata, é necessário entender a transição de um momento para outro.
“A pintura como cópia da natureza teve sua morte decretada em 1839, quando da invenção da fotografia“.
É essa frase que o pintor Edmundo Jorge destaca no catálogo da 1º Exposição Nacional de Arte Abstrata. A invenção da fotografia transforma todo o entendimento da arte até então. É comum encontrar textos, livros, artigos em que os críticos e profissionais do circuito manifestam a ideia de “morte da arte”. Não significa que a arte em si tenha deixado de existir, mas que a arte que todos compreendiam declina e dá espaço a um novo universo.
É possível pensar que os artistas primeiros, desde a gênese da arte rupestre, passando pela idade média e o renascimento, tinham clara a imcumbência de fazer o melhor possível o tema que lhe foi atribuído, seja um animal que se pretende caçar, pintado no interior das cavernas na França ou o retrato de uma personalidade como a Monalisa.
Uma vez inventada a fotografia e iniciado o descompromisso da pintura em retratar elementos quaisquer, se inicia a transição da preocupação não mais com o tema, mas com a forma e os elementos base que constituem a composição. A linha, a cor, a luz, a geometria, o movimento tomam protagonismo nesse momento. A forma é colocada à frente do tema e esse pensamento é a base de todas as manifestações modernas e todos os “ismos” que conhecemos.
A pintura sempre foi e sempre será uma composição de cores. Os efeitos que os artistas buscam, porém, é que são específicos em cada época. O sombreamento nas faces dos retratos, a perspectiva matemática, o esfumado dos contornos, a tinta a óleo em tons neutros e os pincéis de precisão foram amplamente usados ao longo da história. Leonardo da Vinci, Michelangelo e Sandro Botticelli são as principais referências nesse ponto.
No modernismo, os efeitos foram praticamente invertidos e é a isso que se deve o caráter revolucionário, que nos instiga a estudar até hoje a pluralidade das propostas e pesquisas que surgiram no início do século XX. Livres de encomendas de retratos ou de paisagens, os artistas passaram a criar suas próprias leis. O que antes era um compromisso de imitação, virou liberdade de experimentação. E é nisso que cada um dos movimentos modernos se destacam e diferenciam: há artistas que vão parar de esconder suas pinceladas com técnicas para esfumar e vão evidenciá-las com pincéis mais grossos, como Van Gogh. Há artistas que sairão do ateliê para pintar a agitação da cidade ao ar livre, como Renoir. Há os que, como Picasso e Braque, vão desconstruir os corpos e reduzi-los às suas geometrias elementares. Finalmente, há os que se recusam a pintar qualquer objeto que fosse reconhecível. E é neste momento que chegamos na completa abstração na pintura: a ausência de qualquer tipo de figura representativa do mundo real.
A arte abstrata enquanto uma tomada de decisão foi uma pesquisa iniciada pelo pintor Wassily Kandinsky em suas pinturas e sua publicação do livro “Do espiritual na arte” (1912). A pesquisa de Kandinsky é, porém, um desdobramento de ideias que ferviam entre poetas e artistas plásticos como Hilma af Klint ou Malevich.
As pinturas impressionistas e cubistas trouxeram uma estética bastante chocante para a época. Os artistas impressionistas deixavam que a luz entrasse na cena, através de um esquema de cores claras e brilhantes. As pinceladas eram mais evidentes e espontâneas, recurso que movimentava a cena e dava impressões rápidas e agitadas aos ambientes.
O cubismo, estudando a geometria das formas, transformava as figuras humanas e os objetos em crueza geométrica e sem perspectiva de distância e proximidade, embaralhando os limites entre fundo e figura.
O uso desse esquema de cores e a redução das figuras à suas formas elementares foram fatores influentes no que se pôde chamar de arte abstrata anos depois, uma vez que a abstração é sinônimo do completo abandono às formas representativas, um movimento que foi ensaiado em poucos passos pelos impressionistas e cubistas.
Destacados a seguir, estão dois artistas que produzem na mesma época, no mesmo país, partindo da reflexão sobre abstração, mas com interpretações diferentes para o tratamento de cor e forma.
Wassily Kandinsky (1866 – 1944), pintor russo, conhecido por começar a pesquisa da arte abstrata, escreve o ensaio “Do Espiritual na Arte” em 1912 e expressa suas ideias quanto aos efeitos psicológicos da cor. Escreve como a sensação de tons de vermelho podem se assemelhar ao toque de um clarim. A música tem muita influência em seu trabalho. O artista parte de uma postura que rejeita valores científicos e busca uma arte do puro “intimismo”. Pensa na pintura sem objetos como é uma música sem palavras: pura e simplesmente emocional. Kandinsky pinta entendendo as cores como sensações que podem se relacionar com sons, formas e sentimentos.
Bild mit rotem Fleck (Painting with Red Spot) Wassily Kandinsky, 1914 – Imagem: Google Arts & Culture
Kazimir Malevich (1879 – 1935), também de nacionalidade russa, vai por outro caminho. Pensa na pureza não só como redução aos elementos base, mas com a intenção de reduzir a carga de informações na composição. É de autoria dele a proposta do Suprematismo como movimento artístico, a partir do qual exalta a supremacia do puro. Evidencia seu pensamento em sua famosa tela com o quadrado preto sobre fundo branco.
No trecho de sua publicação The Non-Objective World, de 1927, escreve: “O Suprematismo é a redescoberta da arte pura que, durante o curso do tempo, foi obscurecida pelo acúmulo de ‘coisas’”.
Através do Suprematismo, Malevich defende a materialização do sentimento em si, como em um deserto, no qual “nada pode ser percebido, apenas sentido”, explica.
“Black square”, 1915 de Kazimir Malevich – Imagem: DW
Os impulsos para a arte abstrata no Brasil se manifestam nas décadas de 1940 e 1950. A pluralidade das propostas no país eram tantas que caminhavam desde a relação pura entre figura e cor, passava pela relação com a ciência, a poesia e chegava até a reflexão entre arte e a aproximação com a vida.
O artista brasileiro Abraham Palatnik (1928 – 2020) é considerado a maior referência da arte cinética. O cinetismo vem da pesquisa do campo da física sobre as forças que movimentam os corpos. A arte cinética caminha então pela pesquisa da ilusão ótica dentro de imagens estáticas ou maquinarias nas quais as formas estão em constante movimento.
Em Objeto Cinético, apresentado no vídeo abaixo, Palatnik constrói estruturas e brinca com as formas geométricas coloridas e seus movimentos por vezes convergentes, por vezes divergentes. A compreensão do seu trabalho está relacionada à locomoção do espectador, que ao passear ao redor do trabalho, pode ter diferentes percepções. É o caso da série Progressão, no qual a sensação de tridimensionalidade e de movimento se dá em resposta ao movimento de quem observa.
O uso dos elementos basilares como construção de percepção lírica é uma manifestação que recorre a sentimentos, ilusões, cores e sensações não físicas; abstratas.
A artista Lygia Clark (1920 – 1988) teve uma produção muito variada, em termos de suporte, durante sua vida, passando de pintura até chegar nos “objetos relacionais” e as performances. A frente do movimento neoconcreto, é reconhecida hoje como uma das mais importantes artistas do Brasil. Lygia Clark defendia uma arte ligada “a uma significação existencial emotiva e afetiva”. Esse pensamento foi o que a fez chegar na produção dos Bichos em 1960, obra composta por placas de metal unidas por dobradiças, que respondem aos movimentos que o público manuseia. Esse trabalho traz à tona um dos aspectos semelhantes às obras de Palatnik: a participação do público. Mas nas obras de Clark, isso é levado ao limite quando se torna preciso que o objeto não seja apenas observado, mas manipulado e influenciado através do toque. Em todas as propostas, desde as pinturas até os objetos, a artista segue alinhada à abstração como diálogo entre a arte e o subjetivo. Diferente dos outros artistas analisados até aqui, é interessante notar que Clark sai do suporte tradicional da tela e tinta e a faz tangenciar também o campo da performance e da body art.
É vasta a relação dos artistas brasileiros que frequentemente exploram a linguagem abstrata, seja na linha da pesquisa geométrica, ou na linha do diálogo com as afetividades das cores. A artista Myriam Glatt na série Entre-Abas, explora não só as intensidades da cor pura, mas o relevo e a geometria das formas. Os materiais trazidos variam entre papel, madeira, tinta acrílica e muitas das composições são feitas em dípticos, trípticos e polípticos.
Já a artista Celina Nolli, tendo experimentado as pinturas figurativas no início de sua carreira, hoje dá lugar ao movimento harmônico entre cores e linhas. Em “S/ título 6”, é possível observar as sobreposições de um traço sobre o outro e as mudanças que uma cor sofre quando em encontro com outras. A paleta usada parte de tonalidades aproximadas e luminosas.
Diferente das pinceladas contidas e definidas das telas apresentadas, na obra “Unlimited 3” do artista Gabriel Nehemy, a explosão de cores traz uma espontaneidade que nos remete às gigantes telas do artista estadunidense Jackson Pollock. A mistura dos tons já não é tão homogênea e sutil como na obra de Celina Nolli. Nehemy explora o contraste e a vibração que as cores claras transmitem, usando materiais como spray e tinta acrílica. Como Myriam Glatt, Gabriel Nehemy também compõe esta pintura em díptico.
A transição da arte representativa para o completo abandono das figuras na arte abstrata traz intensa liberdade aos artistas, liberando-os para criar do zero qualquer uma de suas ideias mais ousadas. É possível pensar que a arte contemporânea não chegaria no exercício de sua atual complexidade, não fossem os abstracionistas do início do século XX.
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Victoria Louise é jornalista, formada em Crítica e Curadoria da Arte pela PUC-SP.
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Para conhecer obras contemporâneas abstratas, acesse: SELEÇÃO PINTURA ABSTRATA
4 Comments
Bom dia.
Sou curioso no que se refere à arte. Este texto contribuiu para as minhas reflexões sobre o abstracionismo.
Grato.
Excelente e instrutivo texto sobre arte abstrata.
Foi uma agradável descoberta este blog.
Gostei da matéria, mas senti falta de alguns nomes, principalmente da brasileira Wega Nery, grande pintora, conhecida por suas paisagens imaginárias. Parabéns!
Olá, Fausto! Muito obrigada pelo seu feedback e por nos acompanhar por aqui! A obra da Wega Nery é um exemplo muito bom de obra abstrata brasileira. Vamos incluir a sua sugestão em pautas futuras. Um abraço!