O apagamento de artistas mulheres na história da arte é uma pauta cada vez mais visitada no campo. O coletivo artístico feminista Guerrilla Girls, realiza ações de levantamento de dados de grandes acervos e revela que em 2017 apenas 6% do acervo do MASP era composto por artistas mulheres.
Trazemos essa informação para ilustrar um fator recorrente no mundo ocidental: a histórica diferença abissal, em quantidade, de artistas entre os gêneros. Essa diferença não se dá somente pelos artistas em produção, mas entre os artistas que ganham reconhecimento e conseguem ter uma carreira profissional na arte.
Para compreender essa complexa realidade, recorremos ao texto Por que não houve grandes artistas mulheres? publicado pela primeira vez em 1971, da historiadora da arte estadunidense Linda Nochlin. A autora propõe que a disparidade se dá por uma questão estrutural onde o cenário artístico, em consonância com as estruturas sociais, não foi construído para abarcar o trabalho das artistas. Portanto, se a sociedade tem como um de seus principais alicerces de poder o patriarcado e o racismo, o circuito da arte segue sob a mesma lógica.
A realidade se deve menos às habilidades das mulheres e mais à experiência feminina na sociedade, que já as coloca atrás de homens brancos. A academia e a imprensa também fazem parte desse jogo, pela produção massiva acerca dos homens em detrimento das mulheres.
Mesmo diante de um campo que exclui sistematicamente mulheres, elas acabaram se fazendo presente em quase todos os períodos históricos, penetrando e impactando o circuito, de modo a pavimentar caminhos mais gentis para as próximas gerações.
Nesse sentido, a Artsoul te convida a conhecer um pouco mais a produção de nove artistas mulheres de diferentes épocas, linguagens e contextos, que na contramão do discurso histórico hegemônico, marcaram presença no mundo da arte.
Louise Bourgeois foi uma artista plástica franco-americana que faleceu em 2010 aos 98 anos, ainda em atividade profissional. Bourgeois passou por diferentes formações na arte tendo como linguagem primordial a escultura.
Aqui, é interessante retomar o citado artigo de Nochlin, mencionando que a experiência feminina na arte, intencional ou não, se torna muitas vezes uma experiência feminista. Ilustra-se, desse modo, o caso de Bourgeois, mesmo reiterando que sua obra não era feminista, trabalhos como Femme Maison, em tradução livre, “mulher-casa” se tornou símbolo imagético de discussões feministas a respeito do papel social da mulher nas décadas de 1960 e 1970.
Assim como essa obra dialoga com a vivência que a artista tinha, a relação tempestuosa com o pai a fez ver na maternidade o alicerce da família. Toda sua obra tem traços biográficos declarados, incluindo sua série mais famosa Maman de aranhas gigantes, que ficou 21 anos na vitrine da marquise do MAM-SP, fazendo parte do imaginário de muitos paulistanos que frequentavam o Parque do Ibirapuera.
Esta, assim como a primeira obra, compreende a mulher vista como uma metamorfose de suas obrigações sociais, acerca da aranha, Bourgeois revela:
“A Aranha é uma ode à minha mãe. Ela era minha melhor amiga. Como uma aranha, minha mãe era tecelã. Minha família estava no ramo de restauração de tapeçarias, e minha mãe era responsável pela oficina. Como as aranhas, minha mãe era muito esperta. As aranhas são presenças amigáveis que comem mosquitos. Sabemos que os mosquitos espalham doenças e, portanto, são indesejados. Então, as aranhas são úteis e protetoras, assim como minha mãe.”
Nascida em 1887, Georgia O’Keeffe iniciou os estudos de arte aos 18 anos, mas certa de que a pintura clássica tradicional não a satisfazia, O’Keeffe construiu sua trajetória tornando-se conhecida como a mãe do modernismo estadunidense, renovando e expandindo o jeito de fazer pintura.
Georgia O’Keeffe. Dois Lírios Sobre Cor-de-Rosa, 1928. Imagem: Jornal Público.
Conhecida pelas suas pinturas de flores de uma perspectiva muito particular e original, como Dois Lírios sobre cor-de-rosa, seus trabalhos demonstram a perspectiva aumentada que marcou sua trajetória plástica. As flores assim retratadas eram associadas à imagem de genitais femininos, inserindo-a em debates feministas também, estes trabalhos foram feitos na década de 1920 e totalizam cerca de 200 pinturas de flores.
Os impactos do seu trabalho são inegáveis, a artista contribuiu com a renovação da linguagem plástica vigente, propondo novas perspectivas à arte moderna que vinha avançando nos Estados Unidos. Falecida em 1986, Georgia O’Keeffe em 2014 foi a mulher mais cara da história da arte com a venda de Jimson Weed Flower no 1, 1932 por 44.4 milhões de dólares.
Tratando de artistas mulheres em destaque nos movimentos modernistas, Anita Malfatti é a pioneira no Brasil, nascida em 1889. Aos 24 anos com ajuda de seu padrinho foi estudar arte na Alemanha onde teve contato com a linguagem expressionista, na qual se debruçou, e aprimorou seu estilo nos Estados Unidos.
Em 1917, tendo de retornar ao Brasil, Malfatti realizou sua exposição individual já influenciada pela linguagem da vanguarda europeia e com estilo ímpar. Diante de boas recepções do público geral, a exposição foi rudemente recebida pela elite cultural conservadora que se escandalizou com o trabalho com uma linguagem plástica subversiva.
Uma das obras mais comentadas foi “A Boba“, que ilustra bem a abordagem de Malfatti. Com o uso arbitrário das cores, os rigores plásticos colocados em segundo plano no tratamento pictórico que revela tratos mais orgânicos e emotivos pelas rápidas pinceladas, para construção de um tema que já se mostrava contra os cânones vigentes na época, o retrato não-idealizado de uma jovem.
Essa exposição fez surgir a fatídica crítica de Monteiro Lobato, no Estado de S. Paulo, A propósito da exposição Malfatti de 1917. Também conhecida como Paranoia ou Mistificação? a crítica que revela o conservadorismo no que se espera da arte, e também se deu com ataques que só são possíveis quando direcionados a mulheres.
A artista colaborou com 22 trabalhos na Semana de Arte Moderna de 1922, que completa seu primeiro centenário este ano. A partir da década de 1930, Anita deixa a produção ativa em segundo plano e prioriza o ensino e educação artística, como encerra sua carreira, falecendo em 1964.
A vida e a obra de Malfatti foi permeada pela misoginia e pelo capacitismo, por ser uma mulher com deficiência motora. Apesar dessas violências simbólicas insistentes, seu trabalho sobrevive atualmente com uma importância singular para arte brasileira no século XX.
Artemisia Gentileschi foi uma pintora barroca italiana que viveu entre os séculos XVI e XVIl. Gentileschi, filha de pintor, foi a primeira mulher a ser membro da Academia de Pintura de Florença.
No artigo de Nochlin, ela retoma a importância e a obra de Gentileschi enquanto uma excelente pintora barroca. Ainda assim, foi deixada à margem nos estudos de história da arte, que passa a ativamente recuperá-la, equacionando sua importância com a de pintores de seu período.
Este autorretrato é uma de suas obras mais famosas, suas pinturas são realistas e dramáticas recorrendo à técnica chiaroscuro, que, em italiano, significa “claro-escuro”. Estratégia barroca que explora o efeito da luz e da sombra nas pinturas, muito utilizada pelo pintor Caravaggio, uma de suas grandes influências. Enquanto tema, este autorretrato é especialmente intrigante, pois a artista se retrata como alegoria da pintura, que é feminina, portanto tal feito era uma impossibilidade para os artistas homens.
Sua vida e obra ganham atenção dos estudos feministas a partir da publicação de Nochlin, tanto por seu papel no movimento que integrou, quanto pelos temas das suas pinturas. Além dos impactos de um estupro e um traumático julgamento sofridos pela artista.
A pintora mexicana conhecida pela linguagem surrealista na América Latina, nasceu em 1907 e integrou o movimento de artistas do México pós-revolucionário que para além de buscar identidade nacional tratou de questões sociais, políticas e étnicas.
O autorretrato orbitou toda sua obra, que através do surrealismo comunicava e expressava sua vivência com uma dor crônica em decorrência de um grave acidente de trânsito aos 18 anos.
Essa pintura a óleo de Frida Kahlo, do Museu de Arte Moderna do México, retrata duas Fridas que se conectam pelo coração, uma com roupa tradicional de Tehuana e outra com um vestido europeu. Enquanto a última segura um fórceps manchando de sangue o vestido claro europeu, a primeira segura um retrato de Diego Rivera, de quem estava se divorciando.
Os diálogos biográficos são inúmeros, desde o sacrifício asteca ao seu divórcio e a sua vida de cirurgias, a pintura retrata seu estilo que explora o campo onírico. Apesar de elementos plásticos serem parecidos com os dos surrealistas, vanguarda europeia que recorria à linguagem do sonho e a utilização de muitos elementos simbólicos na tela, Kahlo não busca o inconsciente em sua obra, ela retrata as concretudes da sua existência, tornando seu trabalho singular.
Desde os anos 1990, a artista é amplamente rememorada no mundo ocidental, especialmente latino-americano, como símbolo de artista e feminista pelo seu tema, seu trabalho e seu engajamento político. Kahlo foi filiada ao Partido Comunista, era abertamente bissexual, lutava contra padrões de feminilidade impostos e nunca deixou de pintar a seu estilo único.
Em 2021, a venda da sua obra Diego y yo bateu recorde de número para artistas latino-americanas, vendida por 34,9 milhões de dólares. Frida Kahlo vem sendo valorizada progressivamente no campo da arte.
Maria Martins é brasileira, nascida em Minas Gerais em 1894. Artista com uma produção múltipla, foi escritora, gravurista, desenhista e se destacou enquanto escultora. Suas esculturas evocam bastante a linguagem surrealista, o tom onírico, as formas orgânicas, os títulos sugestivos e a carga sensual compõem a obra internacionalmente celebrada de Maria Martins.
O Impossível, sua icônica obra que possui três versões, têm grande impacto visual que suscita diversas ambiguidades: é uma escultura lírica, dócil e, ao mesmo tempo, erótica e violenta. Essas duas figuras quase que transbordam um desejo de se aproximarem mas também percebemos uma certa agressividade na tensão entre elas. É uma obra muito potente, que retrata um casal de uma forma muito distante do que é tradicionalmente visto na escultura.
Martins faleceu aos 78 anos em 1973 se tornando permanentemente parte da história da arte com seu trabalho, fundamental no modernismo brasileiro e internacionalmente reconhecida pela sua linguagem surrealista.
Gabriele Munter viveu de 1877 a 1962 sendo sempre associada ao Der Blue Reiter, grupo alemão de inspiração expressionista, formado em 1911, do qual integrou em colaboração com Kandinsky.
Munter, portanto, é muito lembrada pela sua atuação e inegável participação no expressionismo alemão, entretanto a artista vem passando por um interessante revisionismo, comum na trajetória de artistas mulheres. Seu trabalho passou a ser abordado em exposições que pretendem ampliar sua obra e atuação, como uma artista independente e individual, apresentando muitas perspectivas da sua linguagem, como a exposição no Louisiana Museum of Modern Art em 2018.
Com “retrato de uma garota” é possível ver que além do estilo expressionista ela também foi influenciada pela estética da vanguarda fauvista, que aparece na sua escolha de cor além de uma série de decisões plásticas que faz de toda obra de Munter uma obra simultaneamente muito diversa e coesa, de uma artista que explorou a pintura até a exaustão.
Nascida na Sérvia, em 1946, Abramović atua desde a década de 1970 no campo da performance. Com trabalhos que exploram campos interpessoal e intrapessoal, ela investiga o tempo e o limite tendo seu corpo ativador e suporte.
“Rest Energy” é uma de muitas obras realizadas com seu então companheiro Ulay, que atuou durante 12 anos em parceria com a artista. Nesta obra, uma flecha aponta para o coração de Abramović enquanto eles seguram o arco que é tensionado pelo peso de seus corpos, mais que um exercício de alteridade e confiança, o trabalho é de entrega absoluta.
Abramović sustenta um legado imensurável para arte com o corpo, doando-se a performance, a artista envolve a plateia e propõe novos meios de se expressar através da dor, dos limites e do próprio corpo.
Lygia Clark iniciou sua carreira artística com pinturas aos 27 anos, em 1947. Já em 1954 foi uma das fundadoras do Grupo Frente, que marcou o movimento construtivo no Brasil. Expandindo seu campo plástico, Clark passou a criar esculturas, instalações e performances pensando na desmistificação da obra de arte e no papel ativo e essencial do espectador.
A série Bichos de Lygia Clark é uma das fundamentais na sua carreira e na história da arte brasileira. Produzindo essas esculturas de metal com dobradiças que podiam ser remanejadas pelo público, Clark conseguiu estabelecer um diálogo com a participação do espectador, explorou outros sentidos na arte e incendiou os debates sobre a definição de arte.
Acompanhando a trajetória dessas artistas mulheres, percebemos que somos todos responsáveis pela rememoração de suas obras. É isso que torna fundamental trabalhos como o da curadora Julia Lima e da pesquisadora Ana Soler, que se comprometem a produzir um material de resgate histórico de artistas mulheres no cenário cultural, marcando presença no Instagram com a página @elasestaoaquinaarte. São essas ações que colaboram em manter viva a presença de mulheres na história, na memória.
Contudo, a solução não é só individual, é responsabilidade de grandes instituições rever seus acervos, investir na pesquisa e na compra de obras de artistas mulheres, de modo a também realizar exposições como a do MASP, Histórias Feministas: artistas depois de 2000, de 2019, que atualiza o debate para diferentes corpos e formas de experiência de ser mulher na sociedade. Estas constituem algumas das ações imprescindíveis para romper com estruturas e padrões e ativamente tornar a arte mais um lugar de liberdade e igualdade.
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: Historia, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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Parabéns sempre nos presenteando com belas