A história da arte no Brasil foi amplamente constituída por duas forças diametralmente opostas: por um lado, em função de sua história colonial, sofreu larga influência da arte academicista européia. Por outro lado, a partir do início do século XX, surgiu na comunidade artística e intelectual um intenso desejo de se conceber uma identidade nacional, uma arte verdadeiramente brasileira. Um dos primeiros movimentos a dar conta desse desejo de construção de uma arte brasileira, foi o modernismo. Dentro do movimento modernista, alguns artistas foram pioneiros e tiveram maior impacto, como Anita Malfatti.
Anita Catarina Malfatti (São Paulo, São Paulo, 1889 – 1964) foi uma artista paulistana de origem familiar multicultural. Seu pai, Samuele Malfatti, era um engenheiro italiano e sua mãe, Betty Krug, uma professora de pintura americana descendente de alemães. Desde a tenra infância, Malfatti teve contato com o universo da arte e iniciou-se na prática artística estudando com sua mãe. No entanto, a artista precisou superar o desafio de ter o braço direito congenitamente atrofiado, aprendendo a pintar com a mão esquerda. Anita Malfatti, que guardava uma personalidade mais sóbria e discreta, não permitiu que a deficiência física a impedisse de se tornar uma das mais importantes representantes da pintura na História da Arte brasileira.
Seu contexto familiar já acostumado à migrações também foi um fator influenciador na sua formação. Seu esforço pessoal e o apoio familiar, principalmente de um tio que financiou seus estudos, permitiram que a artista aprimorasse seus conhecimentos no exterior. Primeiramente na Alemanha, onde Malfatti foi viver em 1910, tendo aulas particulares com o pintor Fritz Burger e estudando na Academia Imperial de Belas Artes, em Berlim. Nesse período, Anita Malfatti teve contato direto com a estética e as ideias que pautavam o movimento expressionista alemão e outras correntes da vanguarda européia. Porém, a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) forçou a artista a retornar ao Brasil.
Em 1914, Anita Malfatti retorna ao Brasil transformada pela temporada europeia, sua obra começa a mostrar força e gestualidade inéditas. Nesse mesmo ano, a artista apresenta seus estudos de pintura inspirados pelo movimento expressionista em uma exposição na Casa Mappin, em São Paulo. Sua família e o público têm dificuldade de entender seu trabalho a princípio, pois a estética em voga naquele momento ainda era a academicista, com tendências de representação realista e seus ideais de beleza clássica. À época esperava-se principalmente das jovens artistas mulheres um tipo de pintura agradável, com tons suaves e temas delicados. A pintura de Malfatti era comparada com uma pintura masculina, o que a artista considerava um elogio.
Em 1915, seu tio novamente financia seus estudos no exterior e a artista viaja para os Estados Unidos, onde estuda na Arts Students League of New York e na Independent School of Art. Naquele momento o país fervilhava culturalmente com seus próprios expoentes, mas também com a presença de artistas europeus que fugiram da Grande Guerra, permitindo que Malfatti mais uma vez vivesse uma imersão nas vanguardas artísticas.
Malfatti explorava ricamente em sua obra as influências dos encontros que viveu com os movimentos de vanguarda. Nota-se principalmente a presença de elementos do expressionismo em obras dos anos iniciais, como Retrato de um professor (1912) e do cubismo em obras, como Nu cubista (1915). E principalmente do fauvismo em algumas de suas obras mais emblemáticas, como A boba (1916). A escolha de seus temas demonstrava o interesse profundo em retratar os personagens, cenas e paisagens típicas da cultura brasileira, tratando de tais temas de forma não naturalista e expressiva, como na obra Tropical (1917). Malfatti, desde seus anos iniciais, fez um rico uso da cor em suas pinturas, pode-se dizer, inclusive, que a cor é o elemento essencial de sua obra.
Ela mais uma vez retorna ao Brasil em 1916, onde segue trabalhando sob influência dessas novas ideias. A forma como a artista trabalhava seu uso de cores explode agora em uma potência e vigor surpreendentes. No ano seguinte realizou sua segunda exposição individual. A mostra “Pintura Moderna – Anita Malfatti”, realizada em São Paulo entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, foi uma das primeiras de um artista modernista no país, sendo que a primeira foi a de Lasar Segall, em 1913. A exposição de Anita Malfatti teve repercussões enormes, tanto positivas quanto negativas. Por um lado, a artista estava pavimentando o caminho da arte moderna no Brasil, estimulando novas gerações de artistas que surgiriam. Por outro lado, havia o embate entre os dois projetos de arte opostos que vigoravam no Brasil naquele momento: a herança academicista do final do século XIX e as vanguardas da arte moderna que despontavam naquele início do século XX.
Um dos grandes censores das obras modernistas foi o escritor e, na época, crítico de arte, Monteiro Lobato, que publicou no jornal O Estado de São Paulo um artigo intitulado “A Propósito da Exposição Malfatti“, mas que ficou conhecido como “Paranóia ou Mistificação?”. No artigo em questão, Lobato tece comentários mordazes e ofensivos sobre a arte moderna, utilizando as obras de Malfatti como exemplo do que seria uma arte degenerada e desonesta, de acordo com sua visão limitada de oligarca conservador.
A crítica de Lobato afetou profundamente Anita Malfatti, fazendo com que a artista passasse um ano em reclusão, pintando durante o período apenas duas ou três telas. Seus amigos vieram em seu recurso estimulando a artista a voltar a produzir e exibir seus trabalhos. Esses amigos eram nada menos que Tarsila do Amaral e os escritores Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, com quem Malfatti viria a constituir o Grupo dos Cinco, importante precursor do modernismo no Brasil.
O Grupo dos Cinco foi um dos principais responsáveis pela realização da Semana de Arte Moderna de 1922, evento de extrema relevância na história brasileira. Depois desse evento, o modernismo e seus movimentos de vanguarda conquistaram definitivamente seu espaço no imaginário cultural e artístico do país. A projeção do evento também garantiu à Anita Malfatti uma bolsa de auxílio a artistas, permitindo que ela voltasse a estudar na Europa em 1923. Desta vez, na França, onde ela viveu por cinco anos. Malfatti realizou exposições em Paris, Berlim e Nova York e retornou ao Brasil em 1928, quando assumiu o cargo de professora na Universidade Mackenzie, em São Paulo.
O legado de Anita Malfatti é fundamental para a arte brasileira por seu caráter revolucionário. A partir de suas contribuições, se criou o contexto que permitiu o surgimento de novas gerações de pintoras e pintores, de artistas contemporâneos, com liberdade para expressar-se em sua individualidade sem a preocupação de uma pintura com expectativa de fidelidade à realidade.
A partir de Anita Malfatti e seus contemporâneos, surge uma nova tradição no cenário nacional, um movimento preocupado em expressar a experiência do ser brasileiro na sua verdadeira face. É ainda mais admirável que a artista tenha conquistado a posição que detém na história, se levarmos em consideração as barreiras tão arraigadas na cultura brasileira da época que precisou superar, sendo uma pessoa com deficiência e uma mulher numa sociedade capacitista e patriarcal. Anita Malfatti foi e segue sendo uma inspiração na arte brasileira.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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Maravilhosa arte de Anita Malfatt.