Inserida na programação bianual das Histórias Brasileiras iniciada em 2021, a primeira exposição panorâmica dedicada à obra de Cinthia Marcelle conta com 49 trabalhos, dos quais 10 são inéditos e pensados para essa exposição do MASP. A curadoria de Isabella Rjeille traz desde obras mais antigas, de 1998, à produção mais recente da artista, possibilitando ao público uma aproximação com a evolução de Marcelle em suas investigações formais e discursivas.
Existem artistas que representam fenômenos sociais na arte através da imagem e todo tipo de linguagem que a materialize. Outros artistas, como Cinthia Marcelle, não partem da representação para discutir o social, mas o investigam através de seus protagonistas ativos, como trabalhadores e estudantes, convocando-os muitas vezes aos processos artísticos.
A separação da arte e do social em si já é complexa e improvável, já que artistas estão sempre inseridos em contextos sociais determinantes para suas produções artísticas e suas possibilidades de impacto na sociedade. Todavia, analisando a maneira como artistas abordam questões sociais, é possível perceber que há muitas maneiras de se trazê-las ao campo da arte.
Talvez a primeira característica interessante a se notar na produção de Cinthia Marcelle, ao se deparar com uma visão literalmente panorâmica sobre sua obra, seja o apelo estético e organizado no qual a artista estrutura sua poética. As diversas linguagens trabalhadas como vídeo, fotografia, instalação, pintura e performance, apresentam um aspecto organizacional e metódico que as conectam, apesar de serem mídias distintas.
Situada no segundo subsolo do MASP, a expografia é definida por uma grande parede em diagonal. Criada para esta exposição, a parede corta o espaço quadrado em duas partes, de forma a convidar o público a circular por esses dois lados. Essa circulação é importante pois os trabalhos de Marcelle dialogam de forma direta e um pode complementar a leitura do outro, conforme o visitante estabelece proximidades próprias.
Na entrada da exposição está disposta uma série de três vídeos sobre protestos e revoltas populares, desenvolvidos nos anos de 2011, 2013 e 2016. A produção desses vídeos envolve um fator importante na metodologia de algumas obras de Marcelle: a colaboração com outros artistas.
“Divina Violência” é uma trilogia produzida em parceria com o cineasta Tiago Mata Machado. Entre diversas discussões que o conjunto evoca, chama a atenção a maneira como os assuntos são apresentados e como a dupla observa e reencena interações sociais marcadas pelo conflito. Em um dos vídeos, intitulado “O século”, a tela que capta o chão e o muro de uma rua não identificada é, aos poucos, tomada por objetos lançados do outro lado da rua.
Uma gestualidade que se inicia abstrata vai ganhando corpo no conjunto dos objetos que configuram um movimento caótico. A reivindicação do suposto grupo está em elipse e, por isso mesmo, se enquadraria em diversos tipos de revolta. Através da observação do conjunto de vídeos de Marcelle e Machado, um questionamento se torna evidente: quais são os símbolos, movimentos e a plasticidade de um levante popular?
A instalação Da parte pelo todo, de 2014/2022, que toma toda a lateral da sala, foi pensada para o espaço do MASP. Nela, objetos ligados ao universo laboral são postos no atravessamento de dois lados, sendo a parte de dentro da instalação um espaço completamente branco, e a parte externa, mais próxima do público, demarcada pelo chão cinza escuro do MASP.
Toda a parte do objeto que adentra essa área branca é tomada por uma ausência de cor predominante, como se estivesse contaminada pela limpidez de um espaço supostamente neutro. A parte do objeto que foge a este espaço está pintada de preto ou possui suas tonalidades originais, como a madeira, por exemplo.
Neste espaço específico, a instalação da artista aciona o poder da institucionalidade sobre o valor e significado dos objetos. Pensando especificamente na natureza funcional destes, é interessante lembrar sobre como os objetos adquirem novos valores, leituras e impactos de acordo com sua inserção no espaço da arte. Ao investigar esse espaço institucional, a artista explicita as relações de poder pelas quais sua obra, parceiros e público são submetidos neste momento, mostrando como elas são decisivas na experiência de todos.
“Educação pela pedra” é uma outra instalação que demonstra o interesse de Marcelle no encontro entre sua pesquisa e o espaço que vai recebê-la. Reconfigurada, a instalação que já foi apresentada no MoMA foi pensada para essa exposição a partir do diálogo com a arquitetura de Lina Bo Bardi, especialmente seus blocos de concreto que expõem excessos de rejunte. Nessa instalação, a artista inseriu gizes de lousa entre os blocos. A associação entre título e materiais utilizados na obra gera uma série de possibilidades de leitura, especialmente no atrito entre uma matéria tão frágil como a do giz e a dureza do tijolo.
O tema da educação e suas urgências reaparecem na obra “R = 0 (Homenagem aos secundaristas)”, uma reelaboração de 2022 de um trabalho criado em 2009. A obra é inspirada no movimento dos secundaristas que, em 2016, realizaram protestos e ocupações em escolas e ruas em defesa da educação pública. A cadeira que é equilibrada em uma inclinação através de giz de lousa escolar faz alusão à ideia de sustentação de uma estrutura e sua vulnerabilidade.
Em 2017, Cinthia Marcelle representou o Brasil no pavilhão nacional na Bienal de Veneza, com o trabalho “Chão de Caça”. Com curadoria de Jochen Volz, a ocupação do pavilhão contava com diversas mídias e acionava a tensão de uma rebelião, assunto recorrente em sua pesquisa.
Marcelle convoca a presença do trabalho e da educação de diversas formas: de modo explícito nos objetos escolhidos, no processo artístico em parceria com outras pessoas e em proposições espaciais. O conjunto de sua obra demonstra que o convite ao debate sobre causas tão caras às bases da sociedade pode ser feito em todo tipo de lugar, inclusive o espaço elitizado da arte.
Falar sobre a revolta, reivindicações e luta, para a artista, parece ser um trabalho de arte e um trabalho social – indissociáveis. Marcelle realiza essas movimentações em grandes instituições com a capacidade educativa de alcançar diversos públicos, trazendo discussões extremamente relevantes sem esquecer das investigações plásticas.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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