Ao longo de toda sua vida, Salvador Dalí se esforçou em cultivar uma imagem de excentricidade, levando alguns a crer que sua vida era uma criação artística tanto quanto suas obras. Dalí foi o maior de todos os surrealistas ou um mestre de marketing? No artigo a seguir, veremos como Dalí foi, na verdade, ambos.
Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, Marquês de Dalí de Púbol (Figueres, Espanha, 1904 – 1989), foi um multi-artista espanhol mais conhecido por sua contribuição ao movimento Surrealista e por sua personalidade excêntrica. Nascido em uma família tradicional, seu pai, um notário, teve certa resistência em permitir que o filho seguisse os estudos em artes. Porém, a insistência do jovem, o encorajamento do seu primeiro professor Nuñez e dos amigos da artística família Pichot e, finalmente, a fatídica morte da mãe de Dalí, venceram a reticência do pai.
Em 1921, Salvador Dalí ingressou na Escola de Belas Artes de Madrid, onde se tornou amigo de Luis Buñuel e Federico García Lorca. Dalí e o poeta e dramaturgo Lorca (1889 – 1936) tiveram uma relação muito próxima, tendo o artista declarado inclusive que entre os dois havia um forte envolvimento emocional. Ambos conviveram intensamente e influenciaram um ao outro artisticamente. O rosto de Lorca aparece em obras como a pintura O mel é mais doce que o sangue, de 1926, considerada uma das obras mais emblemáticas do artista.
Lorca padeceu de uma morte trágica aos 38 anos de idade, sendo fuzilado por ordem de oficiais da ditadura do general Francisco Franco, no auge de sua produção literária. O trauma provocado pela brutal perda do amigo acompanhou Dalí por toda sua carreira e o artista seguiu incluindo referências a Lorca em suas obras e escritos até o fim da vida.
Outro importante encontro na trajetória do artista se deu com o também colega de universidade, Luís Buñuel (Calenda, Espanha, 1900 – 1983). A amizade entre Dalí e Buñuel foi de grande troca intelectual, gerando uma das obras mais importantes da vida de ambos: o filme Un Chien Andalou (Um cão andaluz), de 1929, obra responsável por mudar o curso da vida de Dalí ao colocá-lo no radar dos Surrealistas.
Em 1929, Dalí e Buñuel viajaram para Paris para as gravações do filme Um cão andaluz. Lá, Dalí foi introduzido aos Surrealistas, incluindo Paul Eluard, mentor do grupo.
Os surrealistas ficaram muito interessados pelo artista, uma vez que reconheceram nele um semelhante em sua forma de pensar a arte. Naquele verão, alguns integrantes do grupo visitaram Dalí em Cadaqués, onde o artista vivia, entre eles estavam Eluard e sua esposa Helena Devulina Diakanoff, conhecida por todos como Gala. Nesta ocasião, Dalí iniciou a produção da tela Retrato de Paul Eluard, obra repleta de elementos iconográficos dalinianos, como o leão, a face derretida e o formigueiro.
O evento mais extraordinário da passagem dos surrealistas por Cadaqués, no entanto, foi o encontro entre Dalí e Gala. Ao final daquela visita, Gala já não era mais a companheira de Eluard, mas a futura esposa e musa inspiradora de Dalí pelo resto de suas vidas. Gala foi retratada em diversas obras do artista, como é o caso da obra Galatea das Esferas, de 1952. Dalí produziu esta pintura na sua fase chamada “Misticismo Nuclear”, quando foi impactado pelo evento das bombas atômicas e ficou interessado na ideia de desintegração do átomo.
A partir desse encontro com os surrealistas, Dalí foi acolhido no seio do movimento. A afinidade era inegável. As práticas do grupo baseavam-se em dar vazão a imagens provenientes do inconsciente. Os surrealistas desenvolveram diversas técnicas de criação artística livre, gerando imagens surpreendentes e instigantes.
A principal contribuição teórica de Dalí para os surrealistas foi sua elaboração, no início dos anos 1930, do método crítico-paranóico. Nele, o artista explorava um processo que ele descreveu como sendo “a sistematização da confusão e o subsequente descrédito total do mundo da realidade”. Dalí escreveu sobre o método no livro Unmentionable Confessions (Confissões não mencionáveis), de 1973:
“Meu método consiste na explicação espontânea do conhecimento irracional que nasce de associações delirantes, fazendo uma leitura crítica do fenômeno. Sobre a planície surrealista, a atividade crítico-paranóica traduz-se na feitura da aleatoriedade objetiva, que refaz o mundo e então o delírio torna-se verdadeiramente realidade.”
As teorias psicanalíticas freudianas foram fundamentais para que Dalí se aventurasse no mundo do inconsciente através da arte. De fato, uma das características principais de sua obra e motivo pelo qual é grandemente conhecido é, justamente, a exploração de temas oníricos. O artista tinha, inclusive, um método para acessar imagens do inconsciente através do sono. Sentava-se em uma cadeira segurando uma chave pesada ou uma colher. Sob seus pés, dispunha um prato. Colocava-se neste estado e esperava ser levado pelo sono, que quando o abraçava, fazia com que a colher (ou chave) caísse no prato fazendo um barulho que o acordava de imediato. Com os sonhos frescos na mente, pintava, então, as imagens que seu inconsciente havia produzido.
É dessa época uma de suas obras mais conhecidas. Persistência da memória, finalizada em agosto de 1931 é considerada uma das obras mais emblemáticas do movimento surrealista. Apesar de retratar objetos comuns nesta pintura, Dalí carrega a cena de simbologias oníricas que transformam a natureza morta em uma cena quase mística.
Dalí passou a explorar ideias cada vez mais controversas, extrapolando a linguagem da pintura e borrando as fronteiras entre arte e vida. O artista realizava ações que subvertiam completamente qualquer lógica da vida comum. Sua presença e atitudes excêntricas pareciam uma performance permanente. Em paralelo com sua vida extravagante, seguia desenvolvendo peças que mesclavam linguagens artísticas e provocações para a vida, como o Telefone Lagosta, de 1938 ou a Jaqueta Afrodisíaca, de 1936, que ele descrevia como uma “máquina de pensar”.
A mística que se formou em torno de seu nome ultrapassou o campo da arte e Dalí tornou-se uma figura pública conhecida em todo o mundo. Os surrealistas, porém, sentiam que o artista agia além dos limites do aceitável ao abordar em suas obras temas religiosos misturados com representações eróticas e escatológicas. André Breton, um dos fundadores do movimento surrealista passou a se referir a Dalí pela alcunha Avida Dollars, era uma forma de dizer que Dalí estava mais interessado em fama e dinheiro do que na arte em si. Eventualmente os surrealistas convidaram Dalí a se retirar do grupo. Apesar de o artista não fazer mais parte do grupo surrealista formalmente, ele se dizia ser o mais surrealista de todos, pois não tinha medo de explorar toda a miríade de símbolos e temas que brotavam de seu inconsciente.
A carreira de Dalí foi marcada por sua forte presença midiática e exploração de diversas linguagens. Nesse sentido, é natural que o cinema tenha sido tão importante em sua trajetória.
O primeiro filme no qual Dalí se envolveu foi o já citado Um cão andaluz, realizado em 1929 em parceria com Luís Buñuel. Os dois passaram seis dias na casa de Dalí em Cadaqués escrevendo o que viria a se tornar o roteiro do curta-metragem. “Nós precisávamos encontrar um enredo”, Buñuel explicou certa vez em uma carta enviada a um amigo em 1929. “Dalí me disse – Noite passada eu sonhei com um enxame de formigas nas minhas mãos – e eu disse – Santo Deus, e eu sonhei que havia cortado o olho de alguém. Este será o filme, vamos fazê-lo.”
A única regra que guiava a criação do filme era a de que nenhuma ideia ou imagem que pudesse ser explicada racionalmente seria aceita. A intenção dos artistas era a de que abrissem as portas para o inconsciente e que utilizassem apenas imagens que os surpreendessem, sem uma justificativa racionalizada. O filme foi um sucesso entre os artistas e intelectuais da vanguarda e ainda hoje é considerado uma obra seminal na história do cinema.
A resposta na época foi tão positiva que Buñuel e Dalí foram procurados por Marie-Laurie e Charles de Noailles, donos de um cinema privado na Place des Etats-Unis, para comissionar um novo projeto, que viria a ser o filme L’Age d’Or (A Idade de Ouro). O filme foi feito em 1930 e contou com o financiamento de Man Ray, entre outros importantes intelectuais da época. Apesar de o projeto representar as concepções criativas surrealistas de Dalí e Buñuel, disputas pessoais se deram no processo de direção, levando a uma ruptura entre os dois artistas.
Hoje considerado como uma das principais obras do cinema surrealista, A Idade de Ouro explorava temas polêmicos, como valores morais e sociais, a insanidade da vida moderna e os desejos e sexualidade da sociedade burguesa. Obviamente, temas tão controversos causaram revolta na sociedade conservadora da época. É curioso, porém, o quão atual uma crítica escrita na época soa hoje, quase cem anos após o lançamento da obra. Nela, o crítico Richard Pierre Bodin escreveu para o Le Figaro: “Um filme chamado A Idade de Ouro, cuja inexistente qualidade artística é um insulto a qualquer tipo de nível técnico, combina, como um espetáculo público, os incidentes mais obscenos, nojentos e de mau gosto. Pátria, família e religião são arrastados na lama.”
Alguns anos mais tarde, em 1945, Salvador Dalí começa a trabalhar em um projeto com ninguém menos que Walt Disney. Tratava-se do filme Destino, uma animação que combinava a linguagem fantástica dos estúdios Disney e o método crítico-paranóico de Dalí. A produção do filme avançou muito ao longo de oito meses de trabalho, mas precisou ser interrompida em função de problemas orçamentários e complicações de um contexto pós Segunda Guerra Mundial. A produção de Destino ficou parada por mais de 50 anos e o filme só foi lançado em 2003.
Ainda em 1945, Dalí colaborou com Alfred Hitchcock em uma cena do filme Spellbound (lançado no Brasil sob o título Quando fala o coração). Na cena em questão, o personagem central do filme narra um sonho perturbador. Hitchcock fez questão de que Dalí produzisse o cenário da experiência onírica, impregnada de elementos bizarros e surreais.
Em 1975, Dalí produziu o filme experimental Impressions de la haute Mongolie (Impressões da alta Mongólia), no qual narra uma expedição que procura encontrar cogumelos alucinógenos gigantes. O filme é tido como um tributo ao escritor francês Raymond Roussel (1877-1933), admirado pelos surrealistas e considerado por Dali como o precursor do método crítico-paranóico.
Nos anos 1970, o cineasta franco-chileno Alejandro Jodorowsky havia galgado a posição de mago do cinema de autor. Seus filmes A Montanha Sagrada e El Topo causaram um impacto tão grande na cultura cinematográfica que John Lennon insistiu para que a gravadora dos Beatles comprasse os direitos dos filmes. Com este sucesso, Jodorowsky recebeu financiamento para a produção de um novo filme e escolheu fazer uma adaptação de Duna, baseado na obra de Frank Herbert.
Alejandro Jodorowsky convidou Dalí para interpretar a personagem de Padishah Emperor. Para interpretar o papel, Dalí exigiu ser o ator mais bem pago de Hollywood, condição acatada por Jodorowsky. O filme contaria também com participações de nomes de peso como Mick Jagger e Orson Welles, trilha sonora de Pink Floyd e outras tantas extravagâncias. O filme chegou muito perto de acontecer, mas, por fim, não veio a público. Ainda assim, sua influência na cultura cinematográfica é inegável, como mostra o documentário Duna de Jodorowsky, de 2013.
Salvador Dalí foi uma figura única na história da arte. Ele pôde viver em primeira mão grandes transformações culturais de gerações distintas, tanto através da sua participação nas vanguardas artísticas do início do século XX, quanto na ascensão da influência das mídias de massa no público. Dalí entregou sua vida para a arte e fez de si mesmo um misto entre artista e obra. Sua influência artística e presença midiática reverberam ainda hoje no imaginário popular e artistas de todo o mundo seguem produzindo obras atravessadas por ele.
Sua obra pode ser vista nas coleções das principais instituições do mundo, além do Fundació-Gala Salvador Dalí, que abriga a casa onde o artista morava em Port Lligat, na Espanha.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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1 Comment
Dali um artista fora do seu tempo. Simplesmente fenomenal! 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽