As artes visuais e suas linguagens sempre tiveram uma grande facilidade de incorporar diversas áreas e expressões artísticas populares, seja tematizando-as ou estabelecendo cruzamentos criativos. Desde a arte moderna à contemporânea, pelas quais se tornou mais comum o interesse por expressões populares, encontramos produções artísticas que referenciam festas tradicionais ou se apropriam de seus elementos vestuários, rítmicos e estéticos.
O carnaval, festividade que se enraizou no Brasil de maneira única e adquiriu inúmeras versões espalhadas pelo território, está presente no imaginário nacional e é um dos principais movimentos de ocupação das ruas e democratização cultural no país.
Envolvendo diversas linguagens como a música, a moda e as próprias artes plásticas, o carnaval se configura como uma das mais populares expressões artísticas de caráter coletivo. No entanto, ainda que as artes visuais e seus circuitos específicos tenham se apropriado do carnaval em diversos momentos, pouco o discutiu profundamente. É o que afirma Alayde Alves, colecionadora e articuladora que pesquisou o carnaval em sua monografia “Joãosinho Trinta e a arte de carnavalizar” (PUC-SP, 2009): “Diferentemente de muitas outras que estão na invisibilidade, ela [a arte do carnaval] é tão vista, mas nada inserida.”
Para estimular a discussão em torno do carnaval e suas relações com outras expressões artísticas, a colecionadora está promovendo o ciclo de debates “Tupinicópolis é aqui?”, dentro do projeto NO BARRACÃO, co-realizado pelo Projeto Carnavalize, uma plataforma voltada para a valorização e disseminação da história e personagens marcantes do carnaval carioca. A plataforma já realizou exposições virtuais, além de possuir um selo literário, tendo publicado até agora 9 títulos.
O ciclo de debates é proposto pelos curadores Clarissa Diniz, Leonardo Antan e Thais Rivitti, que convidaram artistas e pesquisadores de diversas áreas para pensar as relações entre carnaval e arte através de diferentes perspectivas.
O título do ciclo é emprestado do icônico desfile “Tupinicópolis”, concebido por Fernando Pinto para a Mocidade Independente de Padre Miguel em 1987. Fernando Pinto foi uma importante figura das artes cênicas, atuando como diretor, cenógrafo e figurinista. Fez parte do grupo Dzi Croquettes e assinou a direção de shows de artistas como Elba Ramalho, Chico Anysio, Simone e Ney Matogrosso. Como carnavalesco, foi campeão do carnaval em 1972 e 1985 ao trabalhar com as escolas Império Serrano e Mocidade Independente.
No enredo de Tupinicópolis, o carnavalesco imaginou junto à escola de samba, uma metrópole indígena futurista. Nos termos do próprio artista, tratava-se de uma “ficção científica tupiniquim”, uma utopia possível para indígenas em um futuro que supera um passado colonial.
Alayde completa afirmando que discutir a influência do carnavalesco é uma oportunidade de enxergar o carnaval como um suporte artístico: “É um suporte onde a arte é construída, é efêmera. E o fato dele não ser nobre, rico, não tira a potência artística dele”.
O ciclo de debates foi estruturado em cinco encontros que ocorrem desde julho e vão até setembro, transmitidos no canal do Carnavalize no YouTube. O primeiro encontro ocorreu em 18/07 e contou com a participação dos articuladores do ciclo de debates: Alayde Alves, Clarissa Diniz, Leonardo Antan e Thais Rivitti, que na ocasião apresentaram o projeto.
Com participação de Fred Coelho, Beatriz Milhazes, Leonardo Bora e mediação de Leonardo Antan, o segundo encontro “Tropicalismo e cultura marginal” discutiu a efervescência cultural das décadas de 1960 e 1970 que possibilitou grandes trocas e encontros entre as artes do carnaval e outras institucionalizadas, como as artes visuais.
Ainda que representações de culturas indígenas fossem o cerne do enredo do desfile pensado por Fernando Pinto, a construção dessa narrativa se estruturou em estereótipos e imagens exotizantes. Hoje, décadas após a realização do desfile, tem se discutido e problematizado mais sobre essas representações, não só no carnaval mas na cultura em um espectro mais amplo. O terceiro ciclo “Culturas indígenas e alteridade” se debruça sobre essas questões com a presença dos artistas e pesquisadores Abiniel João Nascimento, Sandra Benites e Ericky Nakanome, com mediação de Clarissa Diniz.
O quarto encontro ocorre no dia 29/08, segunda-feira, sob a temática “Ficção, futuro e pensamento especulativo”, com o objetivo de discutir a criação de imaginários capazes de superar traumas estabelecidos na sociedade colonial. Já “Arte, protagonismo e capitalismo”, o último debate que ocorre no dia 12/09 com mediação de Clarissa Diniz e Thais Rivitti, centraliza as questões de trabalho, neoliberalismo e arte, a partir do desfile que imaginou figuras indígenas em posições de poder dentro da sociedade capitalista.
O ciclo de debates se encerra com uma série de questões levantadas e um campo aberto de discussões que merecem um grande trabalho de revisão. Alayde lembra da falta de inserção da arte do carnaval na história: “É preciso notar que os artistas carnavalescos não estão em nenhuma história da arte brasileira”.
Perguntada sobre expectativas do impacto do ciclo de debates e do projeto como um todo, a colecionadora afirma esperar que o carnaval seja visto dentro de toda sua potência artística e criativa, assim como seus espaços se tornem cada vez mais valorizados:
“[…] e que seus lugares possam ser visitados como os museus. De igual para igual. Um dos movimentos é que as pessoas conheçam a cidade do samba e visitem os barracões como se estivessem visitando um ateliê de artista ou um museu. E que elas frequentem o desfile, olhando-o também como essa potência artística”.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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