Com uma formação interdisciplinar, passando pela escrita, jornalismo e ilustração, Di Cavalcanti é considerado referência no movimento modernista brasileiro. Miscigenando as vanguardas europeias e o muralismo mexicano com a cultura brasileira, construiu o seu estilo artístico baseando-se na cultura popular, retratando-a com cores vibrantes, formas sinuosas e temas como carnaval, sensualidade e o clima tropical. Reconhecido internacionalmente, fez exposições na América do Sul, Central e Europa, com participação na Bienal de Veneza e Bienal de São Paulo; sendo premiado como melhor pintor nacional na II Bienal de São Paulo e no I Prêmio da Mostra Internacional de Arte Sacra de Trieste, Itália.
Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque nasceu no dia 6 de setembro de 1897 no Rio de Janeiro sob a influência de familiares e amigos intelectuais. O seu pai, o célebre jornalista José Carlos do Patrocínio (1853-1905), famoso por defender ideias como o abolicionismo, recebia em sua casa escritores como Olavo Bilac, Machado de Assis e tantos outros. Além de viver em proximidade com a elite intelectual, Di Cavalcanti (apelido que surgiu na maturidade) recebeu em sua formação influências como Victor Hugo, Castro Alves e Chopin. Por crescer entre pensadores que saudavam o Brasil, o artista se tornaria amante da cultura carioca, adorando a boemia, o carnaval e o samba.
Já em 1914, aos 17 anos, começou a trabalhar fazendo ilustrações para a revista Fon-Fon, uma revista reconhecida pela caricatura política e a charge social. Em 1916, entra para a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, continuando os seus estudos em São Paulo, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, abandonando o curso em 1922. Com a efervescência cultural que havia em São Paulo, somada a exposições notórias como da artista Anita Malfatti (1889-1964) em 1917, levam o artista a retomar o estudo da pintura com o pintor e professor alemão Georg Elpons (1865-1939). Focado em continuar com as ilustrações e com a pintura, exerceu a atividade de ilustrador em livros e viveu a maior parte das duas décadas seguintes entre São Paulo e o Rio de Janeiro, realizando sua primeira exposição individual de caricatura em 1917 na Livraria “O Livro”, pertencente a Monteiro Lobato. Foi também neste momento entre a ponte aérea Rio-São Paulo que Di Cavalcanti tornou-se amigo de Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954).
Com a chegada dos anos 1920 no Brasil, ideologias como o nacionalismo começaram a ser propagadas para romper com o academismo colonial, tendo como propósito a busca por uma imagem cultural autêntica; sendo influências que estimularam o surgimento do movimento modernista no país. Porém, a busca pela identidade cultural acabou sendo influenciada pelas constantes viagens dos modernistas à Europa e pela chegada de imigrantes ao país. O reconhecimento por um novo estilo estético brasileiro foi baseado mais uma vez pela legitimação artística estrangeira; comportamento já observado anteriormente no movimento barroco, gótico e neoclássico. Também vindo de inspirações europeias, a ideia da Semana de Arte Moderna é atribuída a francesa Marinette Prado, sugerindo que se fizesse algo semelhante ao que se costumava ver nas temporadas em Deauville, França, a Semaine de Fêtes: temporadas com festivais, mesclando moda, exposições de artes, concertos e outras atrações. Di Cavalcanti, inspirando-se no festival francês, leva adiante a proposta do evento.
Capa do catálogo da semana de 1922. Di Cavalcanti. Imagem: Pinterest.
No ano do centenário da Independência do Brasil, 1922, com a adesão do escritor Graça Aranha (1868-1931) e do apoio financeiro de Paulo Prado (1869-1943), Di Cavalcanti e um grupo de amigos propõem libertar a arte do país das formatações acadêmicas de influência europeia, implantando a nacionalização da arte brasileira por meio da mostra de arte moderna; estimulando uma arte mais livre do passado, com uma nova identidade que transmitisse as características do país tropical. Participando de forma crucial na organização, Cavalcanti preparou toda a parte gráfica do catálogo e expôs 12 trabalhos que já demonstravam a simplificação da forma e da cor, insinuando o seu novo estilo contra os conceitos academicistas. O evento foi realizado nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro no Theatro Municipal de São Paulo, tendo a participação de escritores, desenhistas, pintores e músicos.
“Seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista.”
Di Cavalcanti
As obras de Di Cavalcanti em seus primeiros trabalhos como ilustrador, eram inspiradas na arte nouveau dos periódicos ingleses. Em suas primeiras obras, utilizou de tons pastel e personagens misteriosos em momentos de dramaticidade, mergulhados na penumbra, como na obra “Amigos” (1921), que fez com que Mário de Andrade o chamasse de o “menestrel dos tons velados”.
Amigos, 1921. Di Cavalcanti. Imagem: Folha de SP.
Em 1923 viaja a Paris, frequentando a Academia Ranson, conhece com proximidade o estilo cubista do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973), com o qual estreitou uma amizade; o artista também teve contado com o fauvismo de Henri Matisse (1869-1954) e o expressionismo de Georges Braque (1882-1963). Tomando conhecimento de outros artistas, movimentos e das mazelas pós Primeira Guerra Mundial, Cavalcanti foi influenciado pela renovação estética europeia, que estava reformulando os antigos moldes ligados à tradição. Marcado pelas vivências estrangeiras, teve a inspiração de reinterpretar do que foi visto sob um olhar nacionalista e popular, mesclando os novos estilos europeus com a pintura acadêmica, elaborando a sua linguagem plástica latino-americana.
“…Paris pôs uma marca na minha inteligência. Foi como criar em mim uma nova natureza e o meu amor à Europa transformou meu amor à vida em amor a tudo que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer a minha terra.”
Di Cavalcanti
Começando a adotar fortes traços das vanguardas modernistas, ele começa a experimentação em seus projetos. Em sua obra “Samba” (1925), ele representa a imagem figurativa do samba. O diálogo sutil com o cubismo fica evidente no volume e na desproporcionalidade anatômica dos personagens humanoides. A quebra de continuidade das figuras na borda, que induz a continuidade para fora da composição, somado aos traços curvilíneos e a perspectiva distorcida, demonstram características que definem o período modernista. Em 1925, o pintor retorna ao Brasil, e em 1928, filia-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB).
Samba, 1925. Di Cavalcanti. Imagem: Itaú Cultural.
Por causa do contato com o expressionismo alemão e o fauvismo francês, Di Cavalcanti passa a apresentar em sua pintura o uso mais contrastante da cor, como na obra “Cinco Moças de Guaratinguetá” (1930). Nela, o artista utiliza de formas geométricas fragmentadas e transaciona com formas curvilíneas. O uso de cores chapadas, com baixíssimo sombreamento e com fortes cores quentes, demonstra a influência fauvista e expressionista no artista. Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, Di Cavalcanti é preso pela primeira vez em razão de seu viés político. No ano seguinte, publica a série “A Realidade Brasileira” (1933), composta por 12 desenhos nos quais critica o militarismo através da sátira. No ano de 1936, ainda perseguido pelo governo brasileiro, foi preso novamente com a sua esposa; por meio da influência de alguns amigos, conseguem a liberdade, fugindo para Paris. Na Europa expõe as suas obras, sendo premiado na “Exposição de Arte Técnica” de Paris pela decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira em 1937. No ano seguinte, fez a obra “Vênus” (1938), tendo a mulher negra em destaque, com os corpos arredondados e os pés e mãos agigantados, característica que irá acompanhar o artista no decorrer das décadas.
A década de 1940 é marcada pelo reconhecimento de Di Cavalcanti no cenário da arte moderna brasileira. Defensor fervoroso da arte figurativa, em 1948 administra uma conferência no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), com o tema “Os Mitos do Modernismo”, posicionando-se a favor de uma arte brasileira e contra a arte abstrata europeia, tendência que começa a se expandir no país. Saindo dos holofotes das vanguardas europeias, o pintor também conheceu um estilo autenticamente latino-americano, o muralismo mexicano. Influenciado pelos murais de Diego Rivera (1886-1957) e José Orozco (1883-1949), Di Cavalcanti acompanhou o ápice do movimento, realizando diversos murais que retratam cenas da história brasileira. A pedido de Oscar Niemeyer, para a Câmara dos Deputados, em Brasília, pinta o painel “Candangos” (1960), que representa a chegada dos colonizadores à cidade; sendo possível observar a influência cubista nas formas geométricas e na ausência de perspectiva. Em outro mural, “Navio Negreiro” (1961), exposto em formato tríptico, é abordado o período colonial brasileiro. Na obra é possível identificar novamente a influência do fauvismo nos traços e nas texturas; retratando com cores intensas e suavidade nos gestos.
Candangos, 1960. Di Cavalcanti. Imagem: André Dorigo.
Navio Negreiro, 1961. Di Cavalcanti. Imagem: Flickr.
Como característica primária que acompanhou o artista em suas obras, o corpo feminino sempre foi um tema recorrente, dependendo do estilo adotado, os corpos iam se adaptando conforme a demanda: ora mais geométrico e anguloso, ora mais arredondado e volumétrico. Admirado, a obsessão que ele sentia pelo corpo vai além da sensualidade superficial interpretada em seus quadros, pois a proposta do artista era utilizar o estilo figurativo atrelado a carga simbólica que a mulher representa na sociedade: o desafio de ser mãe, como visto no pesado olhar representado na obra “Maternidade” (1949), e a força no trabalho, visto nas rígidas mãos na obra “Pescadores” (1951). Como pivô principal, força motriz que impulsiona a civilização, o artista coloca a mulher como personagem principal em suas obras, contextualizando-a em diversas temáticas sociais.
Maternidade, 1949. Di Cavalcanti. Imagem: Itaú Cultural.
Pescadores, 1951. Di Cavalcanti. Imagem: Itaú Cultural.
Aprofundando a forma de demonstrar a expressividade do corpo em suas obras, o artista caminha nas entrelinhas para trazer sentimentos nas composições. Diferente da expressividade alemã, que utilizava a violência da guerra para retratar nos quadros as dores da humanidade, Cavalcanti – que nasceu em um país que nunca viu a guerra a olho nu – opta em utilizar a expressão de outra forma, pelo olhar. Utilizando do lirismo atrelado a subjetividade da interpretação, cria situações em que o observador é desafiado a pensar o que a mulher retratada está sentindo. Em um contexto geral, é possível localizar temáticas ao redor do olhar feminino: a paixão, o mistério, a sedução, o poder, o místico, a censura, a seriedade, o tédio e o drama (vide imagem abaixo, da esquerda para direita, de cima para baixo). Pela complexidade que acerca as obras, torna-se inconclusivo compreender com convicção o que tais olhares representam, enigmáticos como uma obra sagrada, os olhares nos seguem em julgamento; a sensualidade que antes era vista como pivô da obra, se perde perante a dubiedade dos olhares. O motivo para que tais sensações venham à tona, ocorre por estarem atrelados os afetos e desafetos que vivenciamos com as representações semióticas que absorvemos no decorrer da nossa formação cultural, através de filmes, livros e músicas; estando diretamente interligadas com as obras, sendo projetadas pela estética figurativista.
Detalhes das obras: Retrato de Elsa Lessa, 1940. Moça de Véu, 1948. Gafieira, 1940. Mulheres, Flores e Arara, 1966. Cena Onírica com Seis Mulheres, 1971. Duas Mulatas na Varanda, 1961. Duas Mulheres num Interior, 1967. Sem Título, 1953. Mulata, 1964. Imagens: Itaú Cultural.
Na década de 1950 Di Cavalcanti atinge o apogeu popular, tornando-se um dos principais artistas brasileiros do modernismo; graças a sua singularidade estética, as suas obras são concorridas em leilões pelo mundo. Em 1951, o artista fez uma doação de cerca de 500 desenhos para o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Convidado a participar da II Bienal de São Paulo em 1953, recebe o prêmio de melhor pintor brasileiro, prêmio que é dividido com Alfredo Volpi. No decorrer dos anos, realizou exposições no MAM-RJ, Montevidéu, Veneza e Trieste. Em 1960 é homenageado com uma Sala Especial na Bienal Interamericana do México, recebendo a Medalha de Ouro.
Em 1970, homenagens são feitas comemorando a sua retrospectiva, recebendo o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte. No dia 26 de outubro de 1976 faleceu no Rio de Janeiro, onde estava internado há 20 dias com crise renal, causada por uma hepatite mal curada. Todo o seu material de trabalho, pranchetas, cavaletes, e telas testes foram doadas ao MAM, junto com as telas que ficariam inacabadas.
Di Cavalcanti priorizou a arte figurativa, atuando como ponte de comunicação que religa as diferentes realidades que há entre as classes sociais. Em sua produção, dedicou-se à formação da temática visual ligada à realidade brasileira, utilizando a arte como participante na vida social, dando voz a quem ou o que merecia ser evidenciado. Retratando as desigualdades e a potencialidade feminina, valorizou em suas obras temas populares e voltados para a identidade nacional. Explorando os universos do trabalho, a tristeza e a musicalidade carioca, evidenciou sua preferência pelo samba, a melancolia que há no choro e pelo carnaval de rua. Enaltecendo o ápice da modernidade brasileira, a era de ouro do estilo de vida carioca, com bares movimentados e a bossa-nova pelas esquinas, Di Cavalcanti retratou a boemia do bon vivant e as mazelas do novo mundo.
“Di Cavalcanti conquistou uma posição única na pintura brasileira. Sem se prender a nenhuma tese nacionalista, é sempre o mais exato pintor das coisas nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagens e em vez do Pão-de-Açúcar pintou telas com o tema samba, em vez de coqueiros, retratou mulatas, pretos e carnavais. Analista do Rio de Janeiro noturno, satirizador das nossas taras sociais, amoroso contador das nossas festinhas, mulatista-mor da pintura, este é o Di Cavalcanti de agora… ” 4
Mário de Andrade
Em 2022, duas exposições estão em cartaz expondo trabalhos do artista em São Paulo: “Contramemória” no Theatro Municipal, que comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 com um olhar crítico voltado para a contemporaneidade e “De 22 a 72: Bardi e o Modernismo Brasileiro” na casa de vidro, que narra o processo histórico da movimento modernista entre 1922 e 1972, mostrando os efeitos culturais ao longo dos anos.
Carlos Gonçalves é graduando em Jornalismo pela PUC-SP, com pesquisa científica em crítica de arte.
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