Desde a sua construção, a história da fotografia adotou como característica principal um novo modo de pensar socialmente, sendo graças ao seu surgimento que a sociedade modificou a forma de arquivar memórias e mostrar de forma realista fatos que antes eram formados de maneira subjetiva. A fotografia, lâmina quadricular e queimada, não se resume em seu produto final, a princípio, antes de qualquer análise de criação e expressão, a fotografia parte de um equipamento que foi criado e testado exaustivamente.
Ao abordar a temática em torno da criação, diversos detentores surgem e entram em colisão para assumir o seu posto. Mas a ironia caminhou junto com o processo de criação da fotografia, pois mesmo se tratando de algo documentado e registrado por intermédio da imagem, certos inventores tiveram que esperar pelo seu reconhecimento como criador; por mais que a memória seja documentada, ela precisa ser reconhecida e legitimada. Entre tantos debates acalorados que buscaram definir quem foi o criador da máquina fotográfica, descobriu-se que ao longe da influência europeia (o qual era considerado o “centro” da civilização), habitava um aventureiro francês isolado nos confins no novo mundo, na cidade de Campinas, em São Paulo, o inventor Hércules Florence (1804-1879).
Apaixonado pelo Brasil e esquecido pelos europeus, Florence chegou em 1824 no Rio de Janeiro por meio de uma expedição a qual ele abdicou para explorar o país do novo mundo. Após uma longa expedição pelo interior do país registrando com relatos documentais e ilustrações, a fascinação teria o seu revés: o inventor sentia-se exilado em um mundo onde a prioridade social era voltada exclusivamente para o mercantilismo, pouco importando se havia intelectuais dedicados ao registro e a criação. Castigado pela ambivalência do amor que sentia pelo país tropical, Florence desabafou em seu diário a frustração em tentar mostrar a sua criação e ser ignorado.
“Em um século em que se recompensa o talento, a Providência me trouxe a um país onde isso não importa. Sofro os horrores da miséria, e minha cabeça está plena de descobertas. Nenhuma alma me escuta, nem me compreenderia. Aqui só se dá valor ao ouro, só se ocupam de política, comércio, açúcar, café e carne humana.” – Hercule Florence, em seus diários.
Em 1834, ele já havia registrado em seu diário a palavra “fotografia” para a reação química que ocorria na revelação de um negativo e a fixação no papel. Porém, em 1839 o inventor francês Louis Daguerre (1787-1851) publicou o mesmo processo para descrever o registro da imagem através do daguerreótipo, o primeiro projeto de câmera fotográfica a ser anunciado e comercializado ao público. Florence pagou o preço por seu isolamento intelectual. Por estar no “centro” da referência intelectual, Daguerre tornou-se um dos principais fundadores da fotografia. Para a frustração do inventor naturalizado brasileiro, o reconhecimento de sua criação não veio em vida, ocorrendo somente em 1976 graças ao fotógrafo e pesquisador brasileiro Boris Kossoy (1941).
Em 1840, com a chegada de Louis Compte (1788-1859) ao Brasil e com um daguerreótipo em mãos, fez a fotografia tomar a atenção da família real, exclusivamente aos olhos de D. Pedro II (1825-1891), onde se tornaria o maior divulgador da arte no país imperial e o primeiro fotógrafo brasileiro. No decorrer das décadas, diversos fotógrafos surgiram retratando especialmente as cidades do sudeste do país, como Marc Ferrez (1843-1923) que registrou o Rio de Janeiro e a sua extasiante natureza. Como também, o registro do movimento urbano e a construção da cidade de São Paulo por Militão de Azevedo (1837-1905). Evidentemente, foram também registradas as mazelas do país, como a vida insalubre dos escravos, as diversas revoltas que ocorreram no nordeste do país, como a guerra de canudos e a guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, registrada por Flávio de Barros (data desconhecida).
Com o avanço da tecnologia e a popularização da fotografia no Brasil e no mundo, a prática do registro começou a interessar não só os retratistas de ofício, mas também os artistas e aficionados. Na arte, a fotografia atuou como um dos estimuladores para o afloramento da arte moderna, pois ao registrar de forma fidedigna a imagem, a fotografia atinge diretamente um dos pilares da arte clássica: somente se alcançará o belo quando houver máxima semelhança com a realidade. Os artistas que utilizavam a técnica realista (desejando a mimese perfeita), viram com preocupação a falta de demanda pelo seu trabalho, não sendo mais necessário na maioria dos casos. Pois agora, a sua técnica custosa e meticulosa poderia ser feita em uma fração de tempo pela nova tecnologia.
“Por que o artista continuaria a tratar de sujeitos que podem ser obtidos com tanta precisão pela objetiva de um aparelho de fotografia? Seria absurdo, não é? A fotografia chegou no momento certo para libertar a pintura de qualquer anedota, e qualquer literatura e até do sujeito. Em todo caso, certo aspecto do sujeito hoje depende do campo da fotografia.” – Picasso, 1939, apud Dubois, 1998, p.31.
Com o crescimento do movimento modernista no Brasil, somado à simbologia da Semana de 22, a fotografia começou a conquistar o seu espaço no campo da arte brasileira, tornando-se o novo palco laboratorial para os artistas. Percebeu-se que a técnica fotográfica não precisaria estar limitada ao registro da realidade, e sim, podendo ser explorada em novos meios visuais e movimentar-se em novas linguagens, assim como a arte moderna; ocasionando a libertação da técnica para um avanço estético nas artes plásticas, potencializando o movimento modernista a conquistar espaços. A partir dos anos 1910 e tomando força em 1930, começaram a surgir especialmente no sul e sudeste, clubes dedicados à fotografia, os foto clubes (fotoclubismo). Os foto clubes tinham como intuito unir um público dedicado a debater projetos de criação e promover o desenvolvimento da fotografia no Brasil. Entre a rede de grupos formados um se destacou, o Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), fundado em 1939 (porém entrando em evidência entre 1950/60), foi composto por empresários, cineastas, artistas e por imigrantes europeus que vivenciaram o período do pós-guerra.
Inspirados pelo movimento Pictorialista europeu (que buscou uma nova linguagem visual adaptada das artes clássicas, porém voltada para a estética fotográfica), diversos artistas do clube se destacaram, entre eles: Ivo Ferreira da Silva (1911-1986) e Marcel Giró (1913-2011), que tinham como interesse fotografias abstratas, com alto contraste e composições que remetiam ao desenho. German Lorca (1922-2021), um dos expoentes em legitimar a fotografia como arte, utilizou da sobreposição de imagens, desfoque e alegorias ao fantasioso, conseguindo registrar em suas fotos movimentos modernistas como o dadaísmo e o surrealismo. Geraldo de Barros (1923-1998), foi um dos fundadores do Grupo Ruptura, movimento que inaugurou o concretismo paulistano (que tinha como busca a proporção matemática e a abstração geométrica). Em um dos seus projetos fotográficos, utilizou a intervenção mecânica em seus negativos: recortar, sobrepor e furar; tendo total controle da composição fotográfica, caraterística que foi herdada do concretismo. Nos trabalhos do Thomaz Farkas (1924-2011), são encontradas cenas do cotidiano urbano, a exploração por novos ângulos e planos geométricos.
Em quase totalidade masculina, duas fotógrafas foram importantíssimas para a notoriedade do FCCB e para a fotografia no Brasil. Dulce Carneiro (1929-2018), explorou temas como o retrato e a arquitetura. Em seus registros é possível perceber traços poéticos e de dramaticidade, onde se explora o corpo, a luz e a composição do ambiente para montar uma narrativa literária. Gertrudes Altschul (1904-1962), precursora da fotografia moderna, trabalhou com a ambivalência delicada da botânica e a brutalidade vertical urbana; é possível observar em seus trabalhos a relação entre ambos, onde a civilização deve encontrar espaço para o verde entre o aglomerado cinza do concreto.
Após o ápice vanguardista do FCCB, e inspirados pelo fotoclubismo brasileiro, diversos nomes começaram a surgir na fotografia contemporânea. Cláudia Andujar (1931), tornou-se referência em retratar a Amazônia, posteriormente, dedicou-se ao estudo dos yanomamis, tornando-se tema central do seu trabalho atual. Sebastião Salgado (1944), especializou-se em adotar uma visão antropológica na fotografia, trabalhando em longos projetos com temas voltados para a questão ambiental e social. Rosângela Rennó (1962), utiliza como temática a memória e o esquecimento, provocando pelas imagens questões como o descaso e a desigualdade social na cultura brasileira. Flávia Junqueira (1985), associou a instalação artística somado ao registro fotográfico, utilizando o gênero “foto encenada” em suas montagens.
Com a sua origem renegada, a fotografia no Brasil criou uma linguagem visual híbrida: retratando as diversas realidades culturais que assolam um país em formação e ao mesmo tempo, inspirando-se em movimentos vanguardistas que chegam a galope. Graças ao engajamento dos artistas brasileiros, pela plasticidade alcançada, a fotografia brasileira se tornou admirada por diversos polos culturais no mundo, servindo de inspiração a outros países. Vale ressaltar que em 2021, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) inaugurou o seu foto clube inspirado no FCCB, provando mais uma vez, a potencialidade da fotografia brasileira para o mundo das artes.
Carlos Gonçalves é graduando em Jornalismo pela PUC-SP, com pesquisa científica em crítica de arte.
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2 Comments
Trabalho de pesquisa muito bem elaborado. Uma falha na história da fotografia estava faltando esse registro. Muito bom.
Uma trajetória histórica de pesquisa que veio preencher lacunas. Valioso