Pintor, escultor e gravurista, Lasar Segall foi um artista judeu que utilizou a arte como denúncia, representando as dores do seu povo e do mundo. Forçado pela eclosão de duas guerras mundiais, precisou se refugiar por diversas vezes em sua vida. Inspirado pela onda modernista, foi um dos principais precursores de um movimento que tinha como motor uma estética emocional que dispensa moderação, o expressionismo. No Brasil foi admirado pela crítica, ficando conhecido por propagar a linguagem modernista em seus trabalhos. Com um olhar sensível, também se tornou um observador das injustiças sociais, retratando com dramaticidade as angústias latino-americanas.
Lasar Segall em seu ateliê, com a obra Navio de Emigrantes, 1939, ao fundo. Imagem: Museu Lasar Segall.
O artista Lasar Segall nasceu em Vilnius, Lituânia, 1889. Sexto entre oito irmãos descende de uma família de negociantes judeus. Controlada pela monarquia czarista, o país era administrado com rígidas leis que sufocavam os direitos das famílias judias, impedindo-os de exercer cidadania plena, tendo pouca autonomia para atividades urbanas. Por serem marginalizados propositalmente, acabavam como vítimas da pobreza e de violentas perseguições contra os seus centros religiosos e as suas propriedades; onde se tinha a intenção de destruição dos seus bens. Tal atitude ficou conhecida historicamente como pogroms (do russo: “destruir violentamente”). A experiência neste ambiente traumático logo na infância, marcaria o artista para toda a vida, tornando-se a principal referência para os seus projetos.
Pogrom, 1937. Lasar Segall. Imagem: Google arts & Culture.
Ainda jovem, aos 16 anos, Segall descobriu a afinidade artística, frequentando a Academia de Desenho de Vilnius. Em 1906, prosseguindo nos estudos artísticos, muda-se para Berlim, na Alemanha, onde frequenta a Escola de Artes Aplicadas, e depois a Academia Imperial de Belas Artes. Porém, frustrado com a estética conservadora da academia, Segall muda-se para a cidade de Dresden, em 1910, onde frequentou a Academia de Belas Artes; ampliando o seu contato com a pintura impressionista, conheceu os trabalhos de Jozef Israël (1824-1911) e de Paul Cézanne (1839-1906).
Em 1912, faz uma prolongada viagem, passando pela Holanda e no ano seguinte, parte para o Brasil, participando da sua primeira exposição de arte moderna em São Paulo, com xilogravuras ligadas ao judaísmo. Foi a partir deste momento que o artista se tornou uma referência para Anita Malfatti (1889-1964), uma das fundadoras do modernismo brasileiro. Retornando à Europa em 1913, e com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, Segall sofre represálias por ser um cidadão russo. Por algum tempo, ficou retido em uma prisão domiciliar em Meissen, cidade vizinha a Dresden. Libertado graças a amigos influentes, que atestaram o seu caráter pacífico, o confinamento foi relaxado e Segall pôde voltar a Dresden em 1915.
Eternos Caminhantes, 1919. Lasar Segall. Imagem: Artesão e Cia.
As consequências da guerra afetaram diretamente o pintor: a morte de amigos nos campos de batalha, manifestações violentas e a escassez de materiais de trabalho, como telas, tintas e solventes. No mesmo ano que encerrou o fim da Grande Guerra, ele se casa com Margarete Quack, 1918. Em 1919, em Dresden, funda com Otto Dix (1891-1969) e outros colegas, o Dresdner Sezession Gruppe, grupo que é formado por artistas expressionistas da cidade, realizando diversas exposições pela Europa.
Humanista em essência, Segall sempre foi preocupado com a injustiça social; tema que o acompanhou por toda a sua carreira europeia e posteriormente com reflexos no Brasil. Entre as características adotadas pelo artista, houve o uso de cores primárias em alto contraste, característica que vem da influência fauvista, somado a geometrização das formas, que repassa a sensação de dinamismo cubista; como observado na pintura acima, “Eternos Caminhantes”, de 1919. Com a escolha por uma paleta de cores melancólicas, de tons terrosos e escuros, pode-se interpretar o conjunto de métodos utilizados por ele como metalinguagem para representar os caminhos sombrios que a violência está traçando; repetição que ocorre há séculos.
Sendo um dos principais nomes no expressionismo alemão, o artista conseguiu demonstrar em suas obras a angústia psicológica e a violência contra o corpo humano, e ao mesmo tempo, repassando a sensação de renúncia nos personagens. Em sua obra “Família Enferma”, de 1921, por exemplo, vemos a obscuridade nos olhares (característica adotada em diversos trabalhos), a fragilidade nas mãos e os rostos contorcidos. Ao observar a cena como um todo, percebemos que os retratados não têm pressa para movimentarem-se; como se tivessem desistido de viver, é possível ver a morte rondando pelo cômodo, esperando o primeiro a perecer.
Família Enferma, 1921. Lasar Segall. Imagem: Atelier.
A sua dedicação em demonstrar formas de docilidade perante a força opressora da violência, pode ser comparada a outro artista que também adotou o expressionismo como estilo, mas alcançando outro nível de brutalidade, o irlandês Francis Bacon (1909-1992). Aos compararmos os quadros dos artistas, podemos perceber um padrão de naturalização à agressividade, a rendição ao castigo. A tranquilidade dos personagens, perante o nível de urgência para os seus ferimentos, é um traço que equaliza os dois artistas, porém, Bacon consegue transparecer “tranquilidade desconfortável” ao redor do corpo desfigurado; podendo-se fazer uma alusão entre o consciente e o inconsciente na mesma imagem. As obras de Lasar Segall, como as de Bacon, remetem aos traumas que foram acumulados desde a infância, sendo artistas que conviveram com os fracassos da humanidade. Ao mesmo tempo, tornaram-se delatores que expõem as mazelas para uma sociedade que se acha moderna, intelectualmente evoluída.
Detalhe de Família Enferma, 1921. Lasar Segall. Imagem: Atelier / Two Studies for a Self-Portrait, 1977. Francis Bacon. Imagem: Francisbacon.com
Detalhe de Família Enferma, 1921. Lasar Segall. Imagem: Atelier / Head of a Woman, 1960. Francis Bacon. Imagem: Francisbacon.com
De volta ao Brasil em 1923, muda-se para a capital paulista. Além da pintura, ele se dedica às artes decorativas, tomando destaque no cenário da arte moderna, considerado um representante das vanguardas europeias. No ano seguinte, executa decoração para o Baile Futurista do Automóvel Clube e para o Pavilhão de Olívia Guedes Penteado (1872-1934). Mário de Andrade (1893-1945), um dos fundadores do modernismo no país, foi um entusiasta e admirador do seu trabalho, escrevendo diversas críticas positivas sobre Segall ao longo da sua vida.
Estudo para decoração do teto do Pavilhão Moderno de Olívia Guedes Penteado, 1924. Imagem: Itaú Cultural.
“Há muito que eu seguia nas revistas e jornais alemães esse interessantíssimo artista que é Lasar Segall, russo.” – Mario de Andrade
Já separado de sua primeira esposa, casa-se em 1925 com Jenny Klabin; tendo o seu primeiro filho no ano seguinte. Em 1928, passa a viver com a família em Paris. Influenciado pelo nascimento do segundo filho em 1930, seus temas remetem nesta fase à atmosfera familiar. Em 1932, Segall retornou ao Brasil, instalando-se em São Paulo, em uma casa projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, seu concunhado (foi considerada a primeira casa modernista do país). Nesse mesmo ano, foi um dos criadores da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) na capital paulista.
Casa do Lasar Segall. Imagem: Casa Vogue.
Mesmo com a sua chegada ao Brasil, e o fascínio pelo clima e a saturação das cores tropicais, ele logo percebeu que as tragédias do mundo também caminhavam por aqui. Por mais que se tenha um aumento de vivacidade nas tonalidades das suas cores, o seu vermelho que ficou mais vivo, não foi de violência? O seu amarelo se tornou mais forte, mas não será de tristeza? Em sua obra “Bananal”, de 1927, é possível ver a cor saturante entre o verde e o marrom, mas há a possibilidade de ver alegria entre as tantas cores? Segall precisou conciliar em suas memórias, o sombrio passado europeu e as incoerências da desigualdade social brasileira; em sua obra “Favela”, de 1954, é possível encontrar uma sensível resposta: entre as janelas das casas, encontramos a ambivalência, a falta e a presença, a tristeza e a alegria tentando caminhar juntas, mesmo que em descompasso.
Bananal, 1927. Lasar Segall. Imagem: SP Escola de Teatro. / Favela, 1954. Lasar Segall. Imagem: Itaú Cultural.
Com a ascensão dos nazistas na Alemanha, as obras de arte moderna pertencentes a instituições do país vinham sendo alvo de discriminações. Em muitos museus, elas foram retiradas e colocadas em salas especiais, denominadas como sala dos horrores. Em julho de 1937, o governo nazista decidiu elaborar uma campanha propagandística contra o que chamava de arte degenerada, entre os milhares de quadros modernistas confiscados, cerca de 50 eram do Segall. Enquanto isso, Lasar Segall e suas principais obras conquistavam espaço, realizando diversas exposições em 1937 e 1938, no Brasil e na França, da quais passaram a integrar coleções de museus brasileiros e franceses. Em 1945, no Rio de Janeiro, participa da exposição “Arte condenada pelo Terceiro Reich”, na Galeria Askanazy. Em 1948, realizou uma grande exposição em Nova York, no Estados Unidos.
Mulheres do Mangue, 1946. Lasar Segall. Imagem: Itaú cultural.
Segall faleceu em 1957, em sua residência na Vila Mariana, em São Paulo, vítima de problemas cardíacos. Nos anos seguintes, a sua esposa Jenny Klabin Segall, auxiliada pelos seus filhos Mauricio Segall e Oscar Klabin, dedicaram-se em conservar o seu acervo já com o intuito de fundar um museu. Diversas exposições póstumas de Segall foram feitas na Europa, entre 1958 e 1962. Em 1967, exatamente dez anos após a morte do marido, Jenny Klabin Segall falece de um enfarte. Pouco tempo depois, no mesmo ano, é inaugurado oficialmente o Museu Lasar Segall, situado na antiga residência do casal.
Museu Lasar Segall. Imagem: Atelier.
Criado como uma associação civil sem fins lucrativos, em 1967, por seus filhos Mauricio Klabin Segall e Oscar Klabin Segall, o Museu está instalado na antiga residência e ateliê do artista. Com um acervo com cerca de 3 mil trabalhos doados pela família, somado ao próprio arquivo pessoal e fotográfico, formam uma coleção que ultrapassa 6 mil itens catalogados. Além da rica coleção, o Museu desfruta de um centro de atividades culturais, oferecendo programas de visitas monitoradas para escolas, cursos, oficinas gravura e um cinema, o Cine Segall.
O museu também possui a Biblioteca Jenny Klabin Segall, que reúne em seu acervo mais de 530 mil documentos especializados nas artes do espetáculo, contando com livros que já pertenceram a críticos como Lopes Gonçalves, Georges Raeders e Anatol Rosenfeld; na área de fotografia, contém um dos maiores acervos da América do Sul. A Biblioteca, ainda possui a mais completa documentação sobre a vida e a obra de Lasar Segall.
Com o projeto de potencializar o acesso da biblioteca ao público, com o patrocínio do PROAC (Programa de Incentivo à Cultura da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo), à parceria da Funarte e da FAPESP/SciELO/Bireme e a produção gráfica do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), foi possível catalogar e digitalizar diversos materiais raros da biblioteca. No ano de 2021 foi inaugurado o site da biblioteca digital onde se tem livre acesso aos diversos materiais históricos da cultura brasileira.
Carlos Gonçalves é graduando em Jornalismo pela PUC-SP, com pesquisa científica em crítica de arte.
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1 Comment
A arte brasileira é estupidamente estupenda, tanto os artistas naturais quanto os estrangeiros ,que aqui , impregnados de terra , naturais se tornaram.