Pintor de telas recordistas em leilões no século XXI, Paul Gauguin desperta ambivalência nos admiradores por atitudes adotadas ao longo da carreira.
Com uma trajetória artística singular, Eugène Henri Paul Gauguin, descendente de mãe peruana e pai francês, nasceu em 1848 em Paris – França. No ano seguinte, a família mudou-se para o Peru, país natal de sua mãe. Aos 6 anos de idade, foi para Orléans – França, e retornou a Paris aos 13 anos, cidade em que teve breve carreira na bolsa de valores e onde casou-se com a dinamarquesa Mette Gad, com quem teve cinco filhos.
Ainda jovem, Gauguin já havia conhecido muitos países, o que contribuiu em sua produção artística futura, pois conheceu e recebeu influências distintas da ocidental. Aos 18 anos ingressou na Marinha da França como aprendiz de oficial. Em 1866, fez uma viagem ao redor do mundo com duração de 13 meses.
Sua produção inicial é datada em 1874, e a primeira aparição na cena artística parisiense foi em 1876, quando expôs Seine-et-Oise (Bosque em Viroflay), no Salão de Paris. Antes da quebra da Bolsa de Valores de Paris, em 1883, a pintura não era a principal atividade do artista, que ao perder o emprego de corretor, passou a dedicar-se integralmente às artes.
Em um dos seus primeiros autorretratos, Gauguin apresenta uma pintura nos moldes impressionistas, com pinceladas marcadas. O artista, assim como os outros dois grandes pós-impressionistas, Van Gogh (1853 – 1890) e Paul Cézanne (1839 – 1906), pintou o autorretrato segurando uma paleta de tinta em frente ao cavalete – pequeno fragmento na lateral esquerda. Na tela, Gauguin atribui a si mesmo um olhar vago, como se observasse algo além da tela, à sua esquerda. Pictoricamente a obra não demonstra deformidade ou sintetismo nas figuras humanas, como em sua produção posterior, notável em Autoportrait près du Golgotha (Autorretrato perto do Gólgota, 1896), pertencente ao Masp.
Além do desinteresse em representar o real, o autorretrato de 1896 é enigmático, diferente de outras telas bem coloridas dessa fase. A figura central é iluminada, e o fundo escurecido, porém, não impede de visualizar um rosto discreto no canto superior direito.
Gauguin aprendeu técnicas com o escultor Jules Bouillot (1837 – 1894), foi introduzido na cerâmica por Ernst Chaplet, na pintura paisagista com Pissarro (1830 – 1903), e na pintura de interior com Edgar Degas (1834 – 1917). Suzanne Sewing – Study of a nude, 1880, (Suzanne Costurando – Estudo de um nu) por exemplo, foi pintada a partir dos ensinamentos de Degas.
No estudo do nu, Gauguin brinca com as cores e contrastes de luz e sombra da figura central. A personagem aparece sentada na cama enquanto costura. A pintura é iluminada da direita para esquerda, chamando atenção para as costas claras e as pernas com sombreado colorido. O rosto apagado, chega quase a se dissolver na cor da parede ao fundo, com tons de azul e roxo. Na parte superior, um fragmento do que parece ser uma tapeçaria de parede e um bandolim pendurado compõem o cenário.
O desenho do pintor e amigo Camille Pissarro (1830 – 1903) é um exemplo da produção diversificada de Gauguin, em que aparece esculpindo The Little Parisian (A Pequena Parisiense). A figura feminina em bronze é sutilmente alongada, demonstra um semblante triste ou amedrontado em seu rosto. Embora não seja o ápice de sua obra, exemplifica as habilidades técnicas do artista.
Em dicionários da língua portuguesa, “primitivo” é definido como “que é o primeiro a existir; no momento inicial ou na origem; original; que persiste desde os primeiros tempos; antigo”. Contudo, desde o final do século XX o termo “primitivo” vem sendo discutido no campo das artes, pois parte de uma ideia colonizadora e eurocentrada, em que outras produções culturais são subjugadas inferiores e subdesenvolvidas em comparação ao ocidente. Segundo a historiadora de arte Gill Perry no primeiro capítulo do livro Primitivismo, Cubismo, Abstração, “usar o termo é fazer implicitamente um juízo de valor, mesmo que ele possa assumir diferentes disfarces”.
Gauguin buscava o “primitivismo” que se identificava, ele se auto intitulava “primitivo”. Em mais de uma citação é nítido seu descontentamento com a cidade moderna e “civilizada” de Paris. Em 1887 passou uma rápida temporada no Panamá, desejando fugir da cidade francesa que dizia ser “um deserto para os pobres”. Em carta enviada a esposa sobre a viagem, explicou: “Meu nome como artista se torna cada dia mais importante, mas enquanto espero, passo até três dias sem comer. Isso destrói não apenas minha saúde, mas meu ânimo. Vou ao Panamá para viver de modo selvagem.”
No final do século XIX, outros artistas tiveram a mesma pesquisa e inspirações em outras culturas originárias, como as culturas asiáticas. A busca de Gauguin por sociedades não ocidentais não indica apenas uma fetichização ou exploração colonialista, mas uma fuga da cultura capitalista eurocêntrica. Ele buscava as origens e pureza da humanidade.
É impossível classificar Gauguin em apenas um ou outro movimento, pois ele passou por inúmeras fases pictóricas, além de se expressar em diferentes linguagens artísticas, desde a pintura e escultura, até objetos utilitários e ilustrações em seu livro Noa-Noa.
O início da produção de Gauguin, como na imagem 1 e 2, e inúmeras paisagens são abrigadas no movimento impressionista. Ele chegou a expor pinturas e esculturas em diversas exposições impressionistas, participou na de 1879, 1881, 1882 e na última do movimento, em 1886.
Com o amadurecimento de sua pintura, não apenas na temática, mas também nas técnicas artísticas, Gauguin buscou a simplificação das formas e da expressão, se distanciando dos princípios do impressionismo.
Em meados do século XIX a Bretanha passou a ser uma região procurada por artistas e turistas, também graças a construção de estradas e ferrovias, o que facilitou o acesso. Gauguin, assim como outros pintores franceses, ingleses e norte-americanos, chegou a passar temporadas em Pont-Aven, vilarejo francês administrado pela Bretanha.
Em Watermill in Pont-Aven, (Moinho de água em Pont-Aven), Gauguin encontra o equilíbrio entre a perspectiva da paisagem e as cores chapadas e vibrantes em formas simplificadas. Nessa pintura já observa-se a diminuição dos detalhes, ele não pretendeu retratar o real, nem exatamente os reflexos da luz. A partir do final da década de 1880, passou a brincar com as formas e cores, como o lago azulado com tons de laranja, rosa, branco e lilás, além de empregar um dinamismo na vegetação mais colorida que a comum.
Sua primeira viagem para a Bretanha foi realizada em 1886, retornou em 1888, e sobre a segunda visita escreveu ao amigo pintor Émille Schuffenecker (1851 – 1934), “Amo a Bretanha. Aqui encontro o selvagem, o primitivo. Quando meus tamancos ressoam no solo de pedra, ouço o som surdo, apagado e potente que procuro na pintura.”
Na segunda passagem do artista por Pont-Aven, ao lado de Émille Bernard (1868 – 1941), liderou o Sintetismo, (movimento pós-impressionista) também conhecido como escola de Pont-Aven, com a participação de outros artistas. “Não exagere na cópia da natureza”, disse Gauguin à Schuffenecker, a proposta era fugir da reprodução fiel do objeto, pessoa e cenário. Nesse movimento as pinturas são delimitadas por contornos mais grossos e escuros, e aparecem grandes massas de tintas uniformes sem as pinceladas impressionistas.
Em La Vision après le Sermon – La Lutte de Jacob avec l’Ange (A visão após o sermão – a luta de Jacó com o anjo), o artista retratou a cena bíblica da luta entre Jacó e um anjo, que aparecem na parte superior direita, as figuras em combate estão sutilmente deformadas. Um tronco de árvore quase aleatório, quebra a pintura, impondo divisão e simultaneamente atribuindo atenção tanto à luta, quanto às mulheres bretanhas em seus trajes típicos, algumas rezando ajoelhadas, algumas com olhos fechados, e outras observando a cena.
Gauguin conheceu Van Gogh em 1886, mas foi no ano seguinte que estreitaram relações. O Marchand Theo Van Gogh foi uma figura importante para Gauguin. Theo chegou a adquirir peças de cerâmica e pinturas do artista. Posteriormente, o marchand propôs comprar a produção de Gauguin em troca da presença do artista em Arles, para produzir junto de seu irmão, Van Gogh, o qual desejava formar uma colônia/escola de artistas.
Os dois pintores protagonizaram uma amizade complexa, chegaram a presentear um ao outro com telas autorais, mas, com personalidades distintas, a amizade não durou muito. Em carta de Gauguin ao seu amigo Bernard, disse “Vincent e eu quase nunca concordamos, […] ele gosta muito de meus quadros, mas quando os estou fazendo, sempre vê defeitos”.
Durante a estadia de Gauguin em Arles, ele retratou Van Gogh em Le Peintre de Tournesols (O Pintor de Girassóis), posicionado à esquerda o artista holandês foi retratado pintando girassóis, tema que o encantava. Após finalizada, Van Gogh achou que Gauguin o pintou como “louco”. O retrato serve como exemplo da técnica de Van Gogh, que sempre pintava observando o objeto/paisagem, diferente de Gauguin, que pintava de memória ou imaginação.
A companhia dos dois durou cerca de dois meses, até 23 de dezembro de 1888, noite em que após uma discussão e a exaustão de Gauguin frente a relação conturbada com Van Gogh, decidiu deixar a casa amarela. Essa foi a misteriosa noite em que Van Gogh cortou a orelha, sendo a partida de Gauguin um dos possíveis motivos da automutilação.
Apesar das diferenças e dificuldades, esse encontro contribuiu para a maturação do trabalho de Gauguin, que disse “devo a Vincent a consolidação de minhas ideias pictóricas anteriores, aliado ao fato de poder me lembrar, nos momentos difíceis, de que sempre há alguém mais desgraçado do que eu”.
Cansado do processo de modernização da capital francesa, e não isento do interesse colonialista de exotização e exploração de outras culturas, Paul Gauguin viveu o final da vida produzindo uma série de pinturas vibrantes, resultando em uma fase de destaque de sua produção. Para além das obras icônicas, os trabalhos dessa época contribuem com o conhecimento de costumes culturais dos arquipélagos vulcânicos da Polinésia Francesa, na Oceania.
Pape Moe (Aguas Misterioras), é um exemplo de sua contribuição antropológica. A figura central que bebe água da fonte natural em meio a natureza exuberante pintada por Gauguin, é compreendida como uma mahu, um terceiro gênero do Taiti – na língua nativa maori, mahu é um “homem-mulher”. A identidade que resistiu à colonização e que por vezes era até uma transição estimulada pela família, foi retratada em diversas outras telas do pintor.
Em busca de terras inexploradas, e guiado pelo desejo do “primitivismo”, Gauguin foi para o Taiti em 1891, com a pretensão de viver “de êxtase, de calma e de arte, rodeado por uma nova família, longe da luta europeia pelo dinheiro. Livre, enfim, sem preocupações financeiras, poderei amar, cantar e viver”. Entre o começo de 1892 e 1895, voltou a Paris e, sem êxito, desistiu da vida urbana e voltou definitivamente para Polinésia, em julho de 95.
Muitos críticos e historiadores, e o próprio Gauguin, o definiram como um pintor “selvagem”. Embora tenha uma conotação naturalista, as atitudes do francês durante sua estadia na Polinésia Francesa exemplificam essa designação de modo negativo. Despiu-se da “civilização” mais do que poderia. Nesse período, recebeu advertência por se banhar nu nas praias de Mataiea, foi acusado de atentado contra o pudor, e manteve relações com jovens, como a javanesa Annah, de 13 anos, e a taitiana Pahura, de 14 anos, a qual engravidou.
Christopher Riopelle, curador da retrospectiva de retratos de Gauguin, na National Gallery de Londres, em 2019, apresentou o artista como alguém que “sem dúvida usou de sua posição de ocidental privilegiado para tirar proveito das oportunidades sexuais que lhe surgiram”.
Por outro lado, cabe a discussão sobre anacronismo – leitura de um período com normas de outro -, e outra: a de subjugar a situação por uma compreensão ocidental, já que em diversos países não ocidentais, casamento com menores de idade era permitido e ainda é até hoje.
Segundo Antônio Araújo, em matéria para o jornal Diário de Notícias, no manuscrito ilustrado Noa-Noa, produzido por Gauguin em sua primeira viagem ao Taiti, há relatos de que a união com a jovem Tehamana, de 13 anos, foi permitida pela mãe biológica e pela ama-de-leite, e foi consentido pela jovem. Nos dias atuais, essa atitude é inquestionavelmente repulsiva em grande parte do mundo.
O filme Gauguin: Viagem ao Taiti, inspirado nesses últimos anos de sua vida, apresenta o período de exílio no Taiti. Em 1901, ele foi para outra ilha do arquipélago, Hiva Oa, onde construiu a Maison Du Jouir (Casa dos Prazeres) e fundou o jornal Le Sourire, em que ele mesmo escrevia, ilustrava e imprimia. Após sofrer inúmeras complicações de saúde desde 1887, Gauguin faleceu em 1903, em Hiva Oa, local em que está enterrado com a réplica de sua escultura Oviri (Selvagem) sob seu túmulo.
O pintor que teve altos e baixos e chegou a passar inúmeras dificuldades econômicas, como passar dias sem comer, e trabalhar na construção do Canal do Panamá, é atualmente autor de um dos maiores recordes mundiais no mercado de arte. Em 2015, a obra Nafea Faa Ipoipo (Quando você vai se casar?) foi vendida por US$ 210 milhões, (aproximadamente R$ 693 milhões, em conversão monetária vigente).
Em 2022, Maternité II esteve entre as pinturas mais valiosas da coleção privada de Paul G. Allen, cofundador da Microsoft, que teve coleção leiloada após seu falecimento. O evento ocorreu na casa de leilões Christie’s, em Nova York. A tela arrecadou 105,7 milhões de dólares, cerca de 559 milhões de reais, em conversão de outubro de 2022. Além de Gauguin, foram vendidas obras de Georges Seurat, Paul Cézanne, Vincent Van Gogh, Gustav Klimt, Georgia O’keeffe, entre outros.
Além de estar presente em coleções particulares, Gauguin faz parte do acervo de diversos museus mundo afora, como: Masp, em São Paulo – Brasil; The National Gallery, em Londres – Inglaterra; Museum of Fine Arts, em Boston – EUA; Hermitage, em São Petersburgo – Rússia; e outros.
Previsto para abril deste ano, o MASP inaugura “Gauguin: o outro e eu”, a primeira exposição a problematizar a relação de Gauguin com a ideia de alteridade e da exotização do “outro”. De maneira crítica, a mostra abordará problemáticas centrais em sua obra e tem como foco dois temas emblemáticos: seus autorretratos e seus trabalhos produzidos no Taiti (Polinésia Francesa), onde realizou suas pinturas mais conhecidas e passou a maior parte da última década de sua vida. O Taiti que Gauguin representou ia além da realidade encontrada por ele, reproduzindo as fantasias que um homem europeu tinha de uma ilha paradisíaca, intocada pela “civilização” europeia.
A exposição faz parte de uma série de mostras que procuram analisar, a partir de perspectivas críticas, artistas europeus canônicos presentes no acervo do MASP — que possui duas obras de Gauguin —, problematizando sua obra à luz de questões contemporâneas.
Daniken Domene é técnico em audiovisual e graduando em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
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