Dentro de um movimento artístico pragmático e metódico como o concretismo, considerar o desvio pode ser considerado um ato corajoso. Judith Lauand: desvio concreto, do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP, é a maior exposição individual já feita sobre a artista que marcou um lugar único na arte geométrica brasileira.
Judith Lauand, que nos deixou aos 100 anos no último dia 9 de dezembro, tem nessa exposição seu legado apresentado de forma panorâmica, com expografia que apresenta uma carreira aberta a transformações ao longo de cerca de cinco décadas. São 124 obras entre pinturas e desenhos, organizadas em núcleos que seguem uma linha cronológica.
Fazer parte do Grupo Ruptura, que marcou definitivamente o cenário artístico brasileiro ao estabelecer um espaço para a arte geométrica de forma potente e articulada, já é por si só ato pioneiro. O fato de Judith Lauand ser a única mulher nesse grupo paulista adiciona uma outra camada à importância dessa presença em uma área disputada, em que a luta feminina permanece até hoje. O Grupo Ruptura realizou sua primeira exposição no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM em 1952, sendo este considerado o marco inicial da arte concreta no país. Lauand não estava nessa primeira exposição, mas foi neste ano que se mudou para São Paulo e passaria a ter contato com a produção desses artistas.
Uma das principais portas de entrada para a arte abstrata no Brasil foi a Bienal de São Paulo que, a partir da primeira edição em 1951, colocaria novas tendências internacionais em contato com artistas brasileiros, em nosso território. Apesar do debate na crítica sobre a importância da figuração ou da abstração para a arte brasileira, no qual alguns intelectuais apontavam para um suposto risco da arte abstrata descaracterizar a produção nacional, o abstracionismo ganhou de vez seu espaço a partir da década de 1950.
Na segunda edição da Bienal de São Paulo, em 1953, Lauand foi monitora e teve contato com obras de grandes artistas como Max Bill, Pablo Picasso e Piet Mondrian. À época, a artista trabalhava com a pintura por meio de uma figuração experimental, característica de tendências modernistas.
A sala de entrada da exposição apresenta um recorte deste período figurativo, com retratos e composições livres. Na mesma sala, estão obras que marcam o início da experimentação geométrica na carreira de Lauand, muito impactada por esse contato com artistas abstracionistas. Desde o começo há o uso de materiais diversos como tapeçarias, placas de madeira, metal e telas.
A exposição tem formato circular, com salas compartimentadas em diferentes décadas. O decorrer da exposição após a entrada mostra os diferentes usos da geometria ou da figuração nas experimentações plásticas da artista. O segundo momento se debruça sobre a produção de Lauand na segunda metade da década de 1950, momento de intensificação dos estudos geométricos, trazendo um novo rigor aos trabalhos – característico dos concretistas paulistas. Existe uma sobriedade no uso das cores e protagonismo das formas, especialmente marcadas pela repetição de alguns elementos que produzem ritmo nas composições.
Na década de 1960, Lauand retoma a figuração, trazendo abordagens políticas à sua obra. Com influência da poesia concreta, as palavras ganham espaço, pensadas na espacialidade do trabalho como elemento discursivo e pictórico. Neste período de intensas movimentações políticas, que abarcou a Ditadura Civil-Militar no Brasil e a Guerra do Vietnã, a artista desenvolveu composições que carregavam mensagens políticas ou protagonismo feminino – assuntos que não necessariamente se separaram.
Um exemplo em destaque desse período é a obra “Acervo 318, temor à morte”, produzida em 1969. Nesta pintura, Lauand coloca dois corpos em interação, usando uma paleta reduzida e vibrante. A frase “Temor à morte” do título pode ser vista na obra através dos fragmentos “te”, “a” e “mor”, um conjunto que possibilita uma série de outras associações, como “amor”. Através do jogo de linguagem, a artista trabalhou a subjetividade e as problemáticas vividas pelas mulheres na sociedade, tanto na intimidade como na vida pública.
É também neste período que a artista amplia a gama de materiais que compõem seus trabalhos, incluindo objetos provenientes da indústria. Clipes e tachinhas, por exemplo, sinalizam a relação dessa produção artística com um sistema de escala industrial. Ao incluir tais objetos em obras bidimensionais, a artista devolvia a eles um novo valor estético e atualizava suas referências.
A experimentação de novos materiais e o uso de cores vibrantes foi um ponto importante para Lauand que, da década de 1960 em diante, pensaria outros modos de organizar a geometria. A cor passa então a ter protagonismo na composição da pintura, na qual a geometria é definida por escalas cromáticas, mais do que por linhas e estudos matemáticos. As obras ainda apresentam forte preocupação na ordem das formas no espaço, mas se configuram em uma harmonia de cores que se complementam para formar um campo vívido.
Uma exposição panorâmica como essa, que se debruça em décadas de intensa produção artística, permite ao público uma aproximação com uma artista que muitas vezes é vista de modo disperso. O grande conjunto de obras demonstra a importância do desejo e da coragem de acessar novos lugares em um campo que muitas vezes exige de artistas que sigam postulados. Produzir fora de zonas confortáveis pode sempre ser um risco, e a trajetória de Lauand sinaliza que isso nunca a impediu. O legado dessa artista fala não só para artistas mulheres que diariamente inserem-se em espaços majoritariamente masculinos, mas para qualquer artista que busca uma referência de experimentação.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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