Em junho de 2022, uma das mais antigas exposições internacionais de arte contemporânea, inaugurou sua 15ª edição que estará por 100 dias aberta ao público. Se pudéssemos definir um tema para começar a abordar a Documenta de Kassel 15, seria lumbung, palavra indonésia para “celeiro de arroz”, contudo, nessa definição estão contidas noções sensíveis de vivência alocadas para o contexto da arte. Em lumbung, o excedente da colheita é armazenado para proveito comum, expandindo seu efeito para prática de trabalho coletivo, esforço conjunto e solidariedade.
O propositor deste conceito é o coletivo ruangrupa, na direção artística desta edição. O grupo, ativo há 22 anos, é da capital da Indonésia e passa por uma propulsão internacional em seu trabalho, reconhecido pela Power100 da Artreview de 2021 como parte das 100 pessoas e grupos mais influentes no mundo das artes visuais.
O conceito de coletividade se apresenta de diversas maneiras durante a elaboração desta Documenta, como na busca por extirpar a noção de que a produção de arte seja estritamente individual.
Explorando as redes que viabilizam projetos artísticos, foram convidados coletivos e artistas, definidos como lumbung member and artists (Membros lumbung e artistas). Os membros artistas tiveram a incumbência de nomear todas as pessoas envolvidas em seus projetos, resultando em mais de 1000 artistas envolvidos.
Destacamos a presença da artista brasileira Graziela Kunsch, que enquanto educadora e mãe produziu um projeto chamado Public Daycare (Creche pública). Mais complexo que uma instalação, o trabalho com dois ambientes consiste em uma creche gratuita, em sua forma literal, baseada nos estudos pedagógicos da pediatra húngara Emmi Pikler, instigando a autonomia dos bebês de até três anos e a participação ativa dos pais.
O público sem filhos só pode adentrar o espaço depois de seu funcionamento; enquanto aberto, fica disponível o acesso ao ambiente apenas a partir dos registros fotográficos de Maria Reismann, acerca do desenvolvimento dessa prática pedagógica.
Pontuamos também a realização do coletivo colombiano más arte mas acción, que desenvolveu lugares de reflexão pela cidade, criando espaços para o público simplesmente pensar. Esse trabalho parece representar bem um padrão nos projetos da Documenta de 2022, que de forma geral, tencionam o conceito de arte, como um lugar de prática, participação e reflexão e que quase se dissolve com práticas cotidianas.
Dentre as polêmicas, está a realização do grupo Party Office, um espaço social e artístico anticasta, antirracista e transfeminista de Nova Delhi na India. Sob a organização da artista curadora Vidisha Fadescha criou, dentre outras ações, um espaço de balada com objetos fetichistas como chicotes de couro fazendo referência às boates alemãs que, aos olhos mais conservadores, foram reduzidas a um ambiente promíscuo.
Obra do coletivo Party Office. Imagem: Silas Martí/Folhapress
O mural People’s justice (Justiça do povo), do coletivo indonesio Taring Pad, que já havia sido exibido na Austrália em 2002, apresenta elementos com motivos judaicos e nazistas. A peça provocou reações de autoridades alemãs, israelenses e protestos em redes sociais que apontavam o caráter antissemita dos personagens ali retratados. Após 4 dias da abertura da mostra, a obra foi retirada e incentivou debates que tratam de perseguição religiosa e dos limites da liberdade de expressão na arte.
Na Alemanha, ainda que o país tenha construído uma tradição de vanguarda, a ascensão do nazismo fez com que a última grande exposição de arte moderna no território fosse a famigerada Arte Degenerada, em 1937.
Diante da negação da arte moderna no período nazista, Arnold Bode projetou a primeira edição da documenta em 1955. Com o título “documenta: kunst des XX. Jahrhunderts” (documenta: arte do século XX) pretendia reintroduzir a arte moderna no país que enfrentava a reestruturação pós-guerra, numa tentativa de revelar o abstracionismo como uma reação a arte figurativa que havia sido amplamente instrumentalizada pela propaganda nazista.
Um marco importante em Kassel e na história das exposições é a Documenta 5 (1972), quando ela passa a acontecer com periodicidade definida de cinco anos. A curadoria do suiço Harald Szeemann teve uma abordagem contemporânea definitiva e o papel do curador/diretor artístico se torna imprescindível para os rumos da mostra.
Fazendo história de inúmeras formas, a Documenta 10 (1997) teve curadoria da francesa Catherine David. A enorme mostra estava situada no meio de uma Alemanha que havia sido literalmente separada em dois polos ideológicos durante a Guerra Fria; este momento marca a globalização da mostra e também revela aspecto interessante da instituição: a iniciativa de incluir demandas urgentes como incluir mulheres e pessoas não-brancas em cargos de direção, pautas que são levantadas até os dias atuais e ainda passam por uma defasagem inacreditável.
Em 2022, firmando-se em valores comunitários, o senso coletivo ativado pela direção envolve distribuição equitativa de recursos e ecos externos à exposição. A visão curatorial é, além de um tema de debate artístico, uma mudança estrutural.
Desse modo, todos os participantes, de artistas a patrocinadores, foram estimulados a incorporar estratégias de sustentabilidade e redução da pegada ecológica, visando que a sustentabilidade não aparecesse apenas como tema de arte mas como prática. Projetos paralelos de sustentabilidade podem ser conferidos no site.
Os mais de 30 espaços espalhados por Kassel que integram a programação da Documenta fazem a mostra se estender e ser parte de um contexto mais amplo enquanto uma cidade que se ocupa e é ocupada durante quase quatro meses por arte e que espera ser positivamente impactada pelos próximos cinco anos.
Em tempos combativos, compreender as tramas da vida a partir do senso de coletividade é uma urgência. Após o isolamento, a mostra surge como uma excelente alternativa de conferir novas conexões com um mundo profundamente afetado pelo neoliberalismo, em todos os seus sentidos.
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: História, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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