Raphael Fonseca é pesquisador da interseção entre curadoria, história da arte, crítica e educação. Doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ. Mestre em História da Arte pela UNICAMP. Graduado e licenciado em História da Arte pela UERJ. No momento prepara a exposição “Sweat”, a ser aberta em 2021, na Haus der Kunst (Munique, Alemanha), com co-curadoria de Anna Schneider. Recebeu o Prêmio Marcantonio Vilaça de curadoria (2015) e o prêmio de curadoria do Centro Cultural São Paulo (2017). Tem textos publicados em livros, catálogos e periódicos especializados como a ArtNexus, Terremoto, ArtReview, Folha de São Paulo, dentre outros.
Raphael Fonseca: Muitas vezes quando eu tento me definir como curador, eu percebo que eu tenho – e penso isso também em comparação com outras práticas – primeiramente uma relação com a história, com a história da arte. Pensando principalmente no Brasil, um panorama de curadoras e curadores, o fato de eu ser formado em história da arte é um diferencial, e acho que de certa maneira norteia muito o meu olhar. Ou seja, eu tenho um interesse muito grande em curadorias que não sejam só de arte contemporânea, que possibilitem diálogos transhistóricos… ou mesmo de curadorias de arte moderna, ou de arte antiga… não desejo de nenhuma forma me limitar a pensar projetos e exposições – se a gente entender essa relação entre curadoria e exposições – apenas de arte contemporânea. Então acho que isso é uma característica marcante.
Outra característica também é uma relação com a educação. O fato de eu ser professor do colégio Pedro II, e ter dado aula em universidade antes, e o fato de nos últimos 10 anos eu estar trabalhando no Ensino Médio, se transforma em uma característica marcante, porque isso me fez aprender que não me interessa pensar em projetos que dizem respeito a meus pares intelectuais, doutores, ou seja, o público especializado. O que me dá mais prazer é poder pensar em projetos para o público amplo.
E um dado que contribui é a origem socioeconômica. Ter vindo de uma família da classe trabalhadora, de pessoas que nunca tiveram grana e nunca ostentaram nada, pessoas que não fizeram o ensino superior… Isso tudo também me faz ter uma dimensão e um contato com a arte que tem um caráter de atingir a um público não especializado. Essas características são marcantes de como eu me coloco nessa área.
Raphael Fonseca: É difícil, eu acho que o Brasil é muito desigual e muito assimétrico. Quando a gente tem oportunidade de fazer projetos em instituições como o Centro Cultural do Banco do Brasil, que tem um apelo muito grande, tem um planejamento de marketing, a gente efetivamente entra em contato com esse público não especializado. Quando a gente tem a oportunidade de fazer exposições em instituições – mesmo que privadas, mas com grande reverberação pública, como o MAM de São Paulo, o MAM do Rio, o MASP, ou no caso do museu público onde eu trabalhei, o MAC Niterói, ou como o Museu de Arte do Rio – eu acho que é a hora desse contato.
E, claro, eu não descarto as galerias como uma possibilidade de entrar em contato com o público não especializado. É claro que as galerias são espaços mais elitistas comparando com os museus, mas algumas galerias têm programas de visitação de escola, algumas se interessam por isso, e acho que a possibilidade de fazer exposições em galerias é a possibilidade de pensá-las como espaços de experimentação.
É claro que não só de exposições é feita a curadoria; uma forma de ter contato com o público não especializado é disponibilizar as coisas na internet gratuitamente, como catálogos, folders, materiais, documentos, pesquisas, textos. É tentarmos jogar, dentro dos nossos limites individuais, tudo ali com selo “creative commons”, deixar que isso reverbere e que as pessoas possam tomar aquilo para si e ler, discordar, aprender etc. Então acho que a internet tem ajudado, mas as coisas são muito dispersas e muito espalhadas, então tem que dar uma pesquisada.
Raphael Fonseca: Tem uma exposição que eu não sei se as pessoas conhecem, que foi o Deslize <surfe skate>, que eu fiz no MAR, o Museu de Arte do Rio. Foi um convite do Paulo Herkenhoff para pensar em uma exposição que lidasse com surfe, skate e arte contemporânea. Essa exposição foi muito importante até mesmo para eu entender o que seria minha tese de doutorado sobre a rede. Me ensinou que eu poderia ter um núcleo, um norte, uma iconografia, um elemento, e a partir dali tudo poderia se desdobrar em torno dela, como um grande universo sobre a história do surfe no Brasil, a história do skate no Rio, cultura visual… refletir sobre a excessiva branquitude do surfe no Brasil e no mundo, refletir sobre a relação entre lazer, prazer e artes visuais.
Eu lembro que foi uma exposição engraçada porque o pessoal do surfe/skate ficava “nossa que legal participar de uma exposição”, e o pessoal da arte ficava “nossa, nunca pensei que surfe/skate poderia dar tanto pano pra manga”.
Me deu muito prazer fazer essa exposição, aprendi muito, e eu não sou um cara nem do surfe e nem do skate. Acho que realmente foi um mega aprendizado e uma grande oportunidade – eu sou muito grato ao pessoal do Museu de Arte do Rio que sugeriu da exposição acontecer no primeiro andar inteiro e ter algum orçamento. Nessa exposição havia muitos dados que me interessavam: o cruzamento de artistas de diferentes lugares do Brasil, diferentes gerações, tinha obra comissionada com obra histórica, tinha gravuras do Havaí – as primeiras imagens que mostraram o surfe na história da humanidade, que era uma prática dos povos originários do Havaí, e que depois foi apropriada e recodificada, se tornando esse ícone na Califórnia, no Rio de Janeiro…
É uma exposição pela qual eu tenho muito carinho. Eu estava no começo da tese, fiz essa exposição e foi tipo “uau, acho que é isso que a tese deve ser”. Vaivém é filha do modus operandi dessa exposição. Tinha também um cineclube com filmes de pessoas do surfe e skate… enfim, realmente foi muito rico, uma experiência muito bacana, e acho que ela foi formadora. Eu me senti pela primeira vez tendo que “direcionar coletivamente” um projeto.
Raphael Fonseca: A história da arte na minha vida aconteceu como um acidente, na verdade eu queria fazer Cinema na UFF – porque eu nunca tive como pagar uma universidade particular. E aí acabou que eu esqueci o vestibular de cinema na UFF, perdi a data. Eu estava no ensino médio e prestei na UERJ, coloquei Artes Visuais porque achei que era o mais próximo de Cinema e porque eu gostava das aulas de arte contemporânea – tive uma matéria muito doida no meu ensino técnico do ensino médio, que era sobre arte contemporânea, com uma professora chamada Jussara (inesquecível) e eu gostava muito dessa aula. Então eu pensei “bom, faço Artes por um ano e depois eu presto pra Cinema, tento uma transferência” e acabou que isso nunca aconteceu, eu fiquei nas artes o tempo todo, me apaixonei.
Na minha graduação, no quinto semestre, a gente tinha que escolher se fazia artes plásticas – como chamavam na época – ou história da arte, e eu escolhi história da arte. Acho que escolhi pelo prazer que me dava pesquisar coisas muito diferentes – eu nunca esqueço que no começo da minha graduação eu vi essa exposição que o Marcello Dantas fez a curadoria, que se chamava Antes – Histórias da Pré-História, e fiz um trabalho com minha professora sobre isso, e eu tinha certeza que eu ia ser arqueólogo, etc… depois eu fiz uma outra disciplina que era sobre arte medieval e eu tinha certeza que ia trabalhar com arte medieval. Depois eu fiz uma disciplina de Renascimento com a senhora Maria Berbara – que se tornou uma grande amiga, é uma pessoa a quem eu devo muito, aprendo muito com ela e discordo muito também e é muito bom discordar – que me orientou no trabalho final de graduação e no doutorado. Maria é especialista em Renascimento, então em uma aula com ela veio um clique de que eu queria trabalhar com Renascimento e com história da arte, definitivamente.
Eu cheguei a pintar na graduação, fazer uns vídeos, tive professores como a Daniela Mattos, o Alexandre Vogler, o Jorge Duarte… mas acabou que eu fiquei na história da arte. Acho que isso marca muito meu olhar, especialmente porque meu trabalho final de graduação foi sobre Peter Greenaway e cinema – mas o cinema dele em relação ao Frans Hals, pintor holandês do século XVII, e Hieronymus Bosch – a relação entre cinema, pintura e os pecados capitais, e a gula. E meu mestrado foi sobre Renascimento, teoria do retrato no Renascimento em Portugal, sobre um autor chamado Francisco de Holanda, e depois no doutorado eu misturo os tempos, com as redes, claro, do século XVI à arte contemporânea.
Acho que – especialmente depois de entrevistar tantos curadores – eu tenho uma relação com o passado, com a tradição clássica, com uma certa ideia de modernismo, mas, mais do que isso, com a produção de arte da antiguidade até o século XVIII, que molda muito o meu olhar. Quando eu vejo uma imagem eu nunca consigo pensar na relação dessa imagem com autores, com teóricas e teóricos, com filosofia… Não, a minha relação com as imagens é sempre com outras imagens, sempre tem um caráter de catalogação, de buscar paralelos. Tem uma iconofilia que me move existencialmente e que move como eu penso arte, como eu escrevo, como eu penso uma exposição.
Eu sou um historiador da arte. Para mim a história da arte é essencial, e tem muitas maneiras de escrever história da arte: muitas maneiras coloniais e muitas formas já “decoloniais” nas últimas décadas, que muitos autores e autoras trazem no Brasil e no exterior. De toda forma, eu fui aprendendo com a experiência – quando comecei a fazer curadoria há quase dez anos atrás não pensava assim – que não é um campo obrigatório, e conheço grandes pessoas que não têm formação em história da arte e que não têm interesse em ter também. Eu aprendo muito com meus colegas que não têm essa formação, ou que se interessam exclusivamente por arte contemporânea, assim como aprendo com meus colegas que se interessam exclusivamente por Renascimento, ou por antiguidade.
Eu sempre acho – e talvez pareça meio romântico dizer isso – que quanto mais vozes e mais interesses específicos, ou amplos também, melhor. A gente sempre aprende com o olhar dos outros. Mas definitivamente eu sou um curador/historiador da arte.
Raphael Fonseca: “1 curadorx, 1 hora” nasceu durante a pandemia, e nasceu também de uma coisa que meu lado historiador da arte me ensinou e me ensina cada vez mais, que diz respeito à amnésia. Eu acredito que no Brasil, infelizmente, – não só aqui mas, em muitos lugares do mundo – há um interesse muito grande na juventude, no jovem curador, no jovem artista, nas figuras que estão aparecendo aqui e agora com seus milhares de seguidores, e muitas vezes esquecemos de pessoas que estão aí há muito mais tempo, mas que nem sempre acompanham essas transformações midiáticas, ou nem sempre tem a habilidade social, essa administração da sua imagem e esse “colocar-se na roda”, esse “networking” – esse termo que diz tanto e ao mesmo tempo não diz nada.
Então o projeto nasceu – pensando agora quase depois de um ano do começo dele – também de uma solidão pandêmica, de um ócio pandêmico. Eu comecei a ver muitos filmes na pandemia – quando eu era mais adolescente, no “começo da minha fase adulta”, digamos assim, eu era muito assim: no festival do Rio, por exemplo, eu via quatro filmes por dia. E depois de ver tanta coisa, veio o desejo de fazer vídeos e a ideia de fazer esse projeto.
Na verdade, não sei se enxergo como uma rede de profissionais… tenho enxergado cada vez mais como uma espécie de arquivo, de canal, de repertório de depoimentos e acho que meu maior interesse desde o começo era ter essa diversidade de agentes, especialmente de pessoas que estão fazendo curadoria muito tempo antes de nós – falando nós assim, no sentido de que eu não faço curadoria nem há dez anos. É muito interessante ouvir pessoas que há trinta, quarenta, cinquenta anos estavam fazendo curadoria – e faziam sem ter esse nome -, pessoas que não estão no Sudeste, pessoas que estão em outros estados do Brasil, pessoas que moram fora do Brasil que também são muito esquecidas aqui porque estão no exterior há muito tempo, ou nem tem mais diálogo com a cena brasileira porque saíram do Brasil nos anos oitenta, noventa…
Agora, qual é a importância dele? Eu acho que é um material que pode ser escutado – eu diria até mais escutado do que visto – pelas pessoas, que pode estimular outras pessoas a fazerem curadoria, que pode possibilitar análises futuras: sociológicas, antropológicas, – psicológicas até, se quiser – artísticas… Tem muitas camadas de análise e essa é uma forma da gente não perder certas possibilidades de se contar a história da arte no Brasil, e a história da curadoria também, enquanto essas pessoas estão vivas. É uma grande tentativa de lutar contra a passagem do tempo, se é que isso é possível.
Meu interesse é justamente ter um zigzag geracional, disso que costumam chamar de lugar de fala, de práticas, de estados, de interesses etc. É nesse zigzag que a gente vai costurando esse cenário complexo do que poderiam ser os fazeres curatoriais no Brasil. É um canal que fala muito sobre trabalho, é sobre o que a gente faz, sobre o que a gente fez, sobre o que a gente quer fazer. E sobre a vida também, de onde a gente veio, pra onde a gente vai, o que a gente quer mudar na nossa trajetória e como a gente quer se apresentar publicamente também.
Raphael Fonseca: Não só atualmente, acho que talvez o maior desafio para curadoras e curadores no Brasil seja uma política de continuidade do trabalho. Eu sinto que a gente tem claramente um desmantelamento das instituições públicas – especialmente no Brasil nos últimos cinco anos. Foi muito triste entrevistar tantas pessoas e ouvir frases como, por exemplo, “eu tinha um cargo e aí de repente esse cargo foi perdido, então comecei a fazer uma coisa, e depois comecei a fazer essa coisa”, entende? O trabalho foi para um outro lugar. Eu sinto que há uma interrupção muito comum nas trajetórias de curadoras e curadores no Brasil, que tem a ver com a instabilidade das instituições públicas, além da instabilidade de algumas instituições privadas. Acho que o maior desafio é a continuidade, é você ter dinheiro para fazer um projeto, ou seja, a curadoria ser enxergada como uma profissão que exige dedicação e, por que não, também dedicação exclusiva.
Dos curadores que entrevistei, grande parte das pessoas, assim como eu, tem um emprego A, e a curadoria é uma atividade B. Poucos são os casos de pessoas como, por exemplo, os curadores que trabalham no Instituto Moreira Salles, que se dedicam exclusivamente àquela instituição. Esse é o maior desafio: a continuidade, a dedicação, a “exclusividade” no desempenhar a função curador/curadora, e a pesquisa também.
Esses são os maiores desafios. Sempre que penso nessa questão, penso mais em desafios de subsistência e continuidade do que inicialmente desafios intelectuais ou conceituais. Eles também estão aí, acho que a internet possibilitou a gente a fazer um monte de coisa que sem ela a gente não conseguiria fazer: conexões, acesso a acervos, poder estar aqui e ver um artista de outro lugar do mundo. Mas eu ainda acho que no caso do Brasil o problema é mais estrutural, trabalhístico, institucional. Isso me chama mais atenção – até porque do lugar de onde eu vim isso chamaria mais atenção mesmo – do que eu te dar uma resposta mais conceitual, mais do campo do discurso.
Eu acho uma lástima saber que em alguns estados do Brasil não há uma profissionalização do fazer curatorial porque você não tem instituições de arte bem cuidadas, com orçamento, não tem coleções, não tem concursos abertos, ou seja, tudo é muito precário, na verdade.
Raphael Fonseca: Primeiramente, visitar exposições, ler os textos dos curadores, pesquisar também o que esses curadores e curadoras fazem para além das exposições, o que fazem enquanto organização de livro, enquanto pesquisa acadêmica etc. É claro, eu poderia indicar livros, livros que têm a ver com história das exposições, história da curadoria, como o clássico de Hans Ulrich Obrist, de entrevistas com curadores… Há também muitos livros interessantes que pensam grandes exposições da história… Mas eu acho que efetivamente livros e filmes que pensam a curadoria em si ainda são muito poucos.
Tem um documentário super bacana, que deveria ser mais visto, que se chama “Um domingo com Frederico Morais”, um documentário sobre Frederico Morais, um dos pais da curadoria no Brasil. Youtube tem uma série de entrevistas com a Aracy Amaral, por causa do Itaú, que ela foi homenageada. Acho que de pouco a pouco tem um material que vai sendo produzido, que as pessoas podem consultar e ouvir, e pensar um pouco sobre os vários pontos de vista do que é ser curador.
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Para acompanhar o canal 1 curadorx, 1 hora
Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCB3FbwHgRVLCSAxDdf0gDdQ
Spotify: https://open.spotify.com/show/0ExaHEit7zi6vOAjEW2Q9v
Instagram: https://www.instagram.com/1curadorx1hora/
Site de Raphael Fonseca: https://raphaelfonseca.net/
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Entrevista concedida por Raphael Fonseca por telefone entre fevereiro e março de 2021.
Por Diogo Barros
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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