A incorporação de narrativas mais atentas a questões de gênero, classe, raça, etnia e outros marcadores sociais têm ganhado relevância nacional e internacional. Muitas vezes, manchetes anunciando a primeira pessoa preta ou indígena a ocupar um espaço expositivo ou a exercer a função de curador(a) são, ao mesmo tempo, sinais de progresso e exemplos de quão mal distribuídas foram e estão as oportunidades dentro da arte para pessoas de grupos minorizados.
Em 2018 o Museu de Arte de Baltimore (BMA), nos Estados Unidos, realizou uma ação de vendas de alguns dos quadros de seu acervo que chamou a atenção dos veículos de comunicação locais. A instituição, fundada em 1914, vendeu sete obras assinadas por nomes como Andy Warhol e Robert Rauschenberg – nomes bem estabelecidos na pintura estadunidense – para financiar a aquisição de peças de artistas pertencentes a grupos sociais pouco representados. Christopher Bedford (à época diretor do BMA e hoje diretor do Museu de Arte Moderna de São Francisco) afirmou que essa era uma forma de corrigir o cânone artístico do pós-guerras.
Comprometido com a manutenção da atualidade da coleção do BMA, Bedford comentou que, para isso, “temos de nos livrar de preconceitos de outros tempos, que institucionalizaram o racismo e a discriminação de gênero dentro do museu e continuam a influenciar nossa abordagem à história da arte”. Com o dinheiro adquirido pelas obras vendidas – todas assinadas por homens brancos –, foram compradas obras de artistas como Wangechi Mutu, Isaac Julien, Njideka Akunyili Crosby e Lynette Yiadom-Boakye, todos oriundos da diáspora africana. Amy Sherald, artista negra que ficou conhecida por ter sido escolhida por Michelle Obama para assinar seu retrato oficial, também compõe a lista.
Ambos os acontecimentos – a venda das obras do BMA e o retrato feito por Sherald – levantaram discussões acerca das pessoas por trás das obras de arte. Quais as identidades de artistas expostos em museus e que ganham destaque no mundo das artes? São homens? Mulheres? Negras? Indígenas? Há importância nisso? Afinal, os clássicos, majoritariamente homens brancos, não são importantes? Bedford tem uma resposta valiosa trazendo Warhol como exemplo. “É alguém importante para todo mundo (…) mas já temos muitas obras dele no museu. Contamos com uma superabundância de material que nos faz continuar contando a mesma história da arte”.
A busca para contar estas outras histórias da arte – de negros, de mulheres, de pessoas queer e de indígenas – ganhou tração nos últimos anos. No Brasil, exposições e instituições de renome têm participado do diálogo. O MASP, por exemplo, tem realizado desde 2016 uma série de exposições temporárias que trazem múltiplas perspectivas dentro dos temas que elencam. São elas Histórias da infância (2016), Histórias da sexualidade (2017), Histórias afro-atlânticas (2018), Histórias das mulheres (2019), Histórias feministas (2019), Histórias da dança (2020), Histórias brasileiras (2022) e Histórias Indígenas (que acontecerá a partir do fim de 2023).
A 34ª edição da Bienal de São Paulo, realizada em 2021, teve em sua lista de artistas a maior porcentagem de artistas indígenas de todas as suas edições. A Fundação Bienal destacou à época da exposição que 10% dos artistas anunciados eram indígenas, além de uma distribuição equilibrada entre artistas homens e mulheres. A edição também contou com 4% do corpo de artistas que se identificavam como não-binários.
Importante considerar também, para além de quais artistas estão expostas(os), quem são as pessoas por trás da organização e curadoria destas exposições. Ainda sobre a Bienal de São Paulo, sua 34ª edição teve Jaider Esbell, artista macuxi, como curador da mostra compartilhada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A 35ª edição da Bienal, que acontecerá no fim de 2023, terá em sua equipe de curadoria, formada majoritariamente por pessoas negras, Hélio Menezes, Grada Kilomba e Diane Lima. O MASP já realizou neste ano duas exposições que contaram com a curadoria de Edson Kayapó, curador adjunto de arte indígena do MASP, – que assina a mostra Carmézia Emiliano: a Árvore da Vida – e de Amanda Carneiro, curadora assistente da instituição, que assina a mostra Mahku: Mirações. O museu divulgou que o ano de 2023 tem a arte indígena como foco.
Não é a primeira vez que as culturas indígenas ocupam o museu, como observou a Agência Brasil. A Instituição já organizou a Exposição de arte indígena (1949), Alguns índios (1983), Arte karajá (1984), Índios yanomami (1985) e Arte indígena kaxinawa (1987). Mais recentemente, Sandra Benites foi a primeira curadora indígena do museu, em 2019. A exposição Histórias Indígenas pretende ampliar e aprofundar o espaço da arte indígena na instituição, mas sem assumir uma abordagem totalizante. Além disso, será voltada para a produção de arte indígena contemporânea, baseada em outros marcadores. A exposição contará com um corpo curatorial internacional de profissionais indígenas.
Os espaços de curadoria também não são neutros. Estão marcados por fatores sociais como gênero, raça e classe, assim como em outras áreas do mundo das artes. Se o espaço para artistas de grupos minorizados é ainda pequeno, conforme se avança na cadeia de tomada de decisões (curadoria, quadro diretivo etc.) tende-se a que ele seja ainda menor.
O Projeto Afro traz à tona parte dessa problemática. Ele começou, em 2019, o mapeamento de quem são os profissionais negros, negras e indígenas brasileiros que atuam na área de curadoria. Atualmente, o projeto está integrado à Rede de Pesquisa e Formação em Curadoria de Exposição. O mapeamento conta hoje com cerca de 76 nomes de profissionais negros/negras e 20 nomes indígenas. Destes, a maioria é feminina, atua na região sudeste e de maneira autônoma/independente.
O estudo ainda é inicial. Mas dentre os dados levantados, já pôde observar que “apenas 20% dos curadores indígenas e negres atuam em alguma instituição, enquanto 80% não têm outra saída que não seja apostar na carreira independente/autônoma”. Evidentemente, essas dados demonstram dificuldades que não são encontradas apenas por curadores(as) negros(as) e indígenas. O Projeto aponta, por exemplo, a pouca autossufiência da área como um todo em algumas instituições.
No que tange à pessoas de grupos minorizados à frente das instituições, a transformação é mais lenta. Emanoel Araújo foi um nome de destaque na pauta – e continua a ser após seu falecimento. Araújo ocupou a gestão de importantes instituições do país e inaugurou o Museu Afro Brasil. Diretor do museu desde a inauguração, em 2004, até o fim de sua vida, Araújo se empenhou principalmente em valorizar e difundir a produção artística da população negra. Levou ao seu programa museológico a preocupação de contribuir com a formação educacional, artística, intelectual e moral de cidadãos brasileiros, negros e brancos, para o benefício das gerações futuras.
Maxwell Alexandre é outro nome contemporâneo que tem promovido a discussão sobre o assunto. O artista acaba de encerrar o período expositivo de sua primeira galeria própria e já iniciou seu segundo pavilhão, na Rocinha, no Rio de Janeiro. Com a realização do próprio pavilhão, Alexandre comenta que consegue, assim, ter maior liberdade e autonomia na exposição de seu trabalho. O Pavilhão Maxwell Alexandre foi inaugurado não muito depois de o artista ter criticado o tratamento que instituições já consagradas dão à obra de artistas negros.
Além de chamar atenção para quais as pessoas retratadas nas telas ou para quem são as pessoas dirigindo e guiando a tomada de decisões de instituições de arte, o trabalho de Alexandre também provoca o refletir a respeito de quem são as pessoas que frequentam esses espaços. Umas vez que se tem peças de artistas mulheres, negras(os) e indígenas expostas; uma vez que essas pessoas estejam à frente das instituições; ainda é preciso pensar se essas pessoas estão tendo condições de consumir e contemplar estas e todas as outras formas de arte.
Quem são as pessoas que frequentam museus? Quem são as pessoas que podem frequentá-los? Valores de entrada e localização, entre diversos outros fatores, também moldam o público atendido por instituições de arte. Retomando o exemplo do Pavilhão Maxwell Alexandre, houve ali uma ponderação a respeito de qual o público-alvo daquela arte. A escolha de São Cristóvão e, em seguida, da Rocinha é uma tomada de decisão política e consciente. Foge do eixo de bairros nobres onde a maioria da população residente é branca.
Todos estes são aspectos dentro da inclusão e da promoção da diversidade nos holofotes do mundo da arte. O que não significa dizer que a baixa presença comparativa de grupos minorizados nestes espaços seja consequência da inexistência de sua produção. É o que a exposição Dos Brasis (2023), recém estreada no Sesc Belenzinho, aponta. Curada por Igor Simões, Marcelo Campos e Lorraine Mendes, e com mais de trezentas obras e 240 artistas, a exposição demonstra a produção de artistas negros contemporâneos e passados. Se, por um lado, essa produção tem sido invisibilizada dentro dos espaços de destaque do circuito da arte, por outro, a produção destas e destes artistas sempre esteve visível aos seus. Essa é uma das perspectivas críticas que transpassam a exposição. “Esta não é uma mostra celebratória, em nenhum momento. É profundamente crítica. Sendo a primeira deste tamanho no Brasil, há motivo para comemoração?”, afirma Simões. E com este trabalho Simões espera caminhar em uma direção na qual a exposição torne-se obsoleta. “[Espero] que haja uma dimensão de esgotamento desse debate por completa falta de necessidade dele”, completa. É o que a curadoria de Dos Brasis espera encontrar após o fim dos 10 anos de itinerância que a exposição terá por todas as unidades do SESC. Que a pauta de inclusão seja superada. Que pessoas pertencentes a grupos minorizados ocupem o circuito da arte plena e transversalmente. Que grupos de pessoas não sejam mais minorizados.
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