Quem visitar o Sesc Belenzinho em São Paulo até o final de janeiro de 2024 poderá conhecer a maior exposição já feita dedicada à produção artística negra brasileira. Com curadoria de Igor Simões, Lorraine Mendes e Marcelo Campos, Dos Brasis: arte e pensamento negro apresenta obras de artistas negras, negres e negros de todos os estados brasileiros, produzidas entre os séculos 18 e 21. O curador Hélio Menezes esteve presente no desenvolvimento do projeto entre 2019 e 2022, quando assumiu como um dos curadores da próxima Bienal de São Paulo.
Através de um projeto multifacetado, realizado em diversas etapas, a curadoria chegou a 240 artistas que integram a exposição – que realizará itinerância por unidades do Sesc no Brasil pelos próximos 10 anos. Ao articular o encontro dessas produções artísticas, a curadoria lançou mão da intelectualidade negra para formular maneiras de se pensar, apresentar e experienciar essa diversidade de poéticas.
Em conversa realizada no Sesc Belenzinho, os curadores Igor Simões e Lorraine Mendes, e o curador assistente Weslei Chagas contam sobre os núcleos presentes na exposição e os processos de pesquisa e escuta com os artistas.
Uma faceta das artes visuais é sua rica capacidade de contar histórias. Uma obra de arte evoca a vivência de sua autoria, o contexto em que foi produzida, assim como seus possíveis propósitos. A difusão de narrativas acontece desde o processo de produção de uma obra, passando por sua circulação em espaços de convívio – museus, centros culturais, galerias, entre outros.
Uma série de pesquisas – que resultam também em exposições – apontam para o fato de que muitas narrativas – especialmente de pessoas negras e indígenas, entre outros grupos socialmente reprimidos – foram excluídas dos espaços de arte. Ao mesmo tempo, aquelas narrativas construídas por pessoas brancas foram sistematicamente legitimadas enquanto oficiais: formando uma suposta história da arte única, linear e hegemônica. Basta perceber que pessoas brancas formam a grande maioria nos acervos dos museus, coleções particulares – ou mesmo nas posições de poder no sistema das artes.
Igor Simões afirma que, a partir do momento em que os equívocos na história da arte são reconhecidos, outros caminhos teóricos precisam ser tomados:
“[…] temos que olhar para as maneiras como essa história da arte foi construída. Uma delas é esse pressuposto ocidental de uma linearidade, de uma sucessão temporal ou de uma organização estilística ou por linguagem: esse não podia ser o nosso pressuposto. Esse tipo de organização também tem que ser tensionado, porque é uma organização que se apresenta a partir de seis países que resolveram que são centro do mundo”.
Na medida em que Dos Brasis não reproduz modelos que justamente excluíram ou invalidaram pessoas negras ao longo da história, outras formas de aproximação foram realizadas entre os curadores, artistas e pesquisadores em parceria com técnicos da rede do Sesc.
Durante as pesquisas, a equipe curatorial viajou por todas as regiões do país – não se reservando apenas às capitais, mas conhecendo também cidades do interior. A aproximação com o contexto de artistas de diversos lugares possibilitou, então, aos curadores, uma percepção mais social sobre essas produções, para além de uma leitura poética.
“Em alguns momentos a importância da viagem estava em produzir espaços que reforçassem – não propusessem, porque essas coisas existem, não precisavam da gente para acontecer – possibilidades de associativismo entre artistas pretos”, afirma Simões a respeito das viagens, que dizem muito sobre um exercício de estar com os artistas, que já possuem suas próprias formas de encontro.
Weslei Chagas, curador assistente da exposição, aponta também que as viagens possibilitaram à curadoria outras maneiras de dialogar com essas produções artísticas, fugindo de uma visão sudestina centralizadora: “[…] é muito interessante ver como essas viagens abriram um entendimento mais amplo de como as materialidades – quando falamos de artes visuais – mudam de acordo com alguns estados”. O curador exemplifica isso com os trabalhos de Jean Ribeiro (Bacuri, MA) e Glauce Santos (Belém, PA), ambos residentes em Belém do Pará, e estão presentes na exposição com trabalhos que justamente experimentam materialidades como a gravura ou a instalação para pensar a religiosidade de matriz africana.
Uma outra etapa importante do projeto foi a Pemba: Residência Preta – uma residência virtual voltada a artistas, educadores e curadores negros, que tiveram acompanhamento de Ariana Nuala, Juliana dos Santos, Rafael Bqueer, Renata Sampaio e Yhuri Cruz. Foram recebidas cerca de 450 inscrições de todo o país. Após avaliação de portfólios, 150 pessoas foram selecionadas para participar da residência.
Para a curadora Lorraine Mendes, essa etapa do projeto foi um espaço de formação para os artistas, uma oportunidade de devolução à contribuição destes à Dos Brasis. Esses diferentes processos de aproximação resultaram na primeira versão da exposição, montada atualmente no Sesc Belenzinho. Ao longo dos próximos anos, a exposição realizará itinerância e, a cada nova unidade, novos artistas serão agregados ao projeto de acordo com a região – tornando o projeto sempre vivo e efêmero.
A exposição está montada em diversos espaços do Sesc Belenzinho, começando na área a céu aberto, passando por um galpão, uma grande sala expositiva e a área de convivência do equipamento. São 7 núcleos que compoem Dos Brasis: Legítima Defesa; Amefricanas; Romper; Organização Já; Baobá; Negro-Vida; Branco Tema. A escolha de poucas paredes configura uma expografia de contaminação entre os núcleos da curadoria – organizados em constelações, o que amplia a possibilidade de diálogo entre eles. “Essas constelações guardam dentro de si uma circularidade de tempos, linguagens, proposições, meios”, afirma Simões.
Todos os núcleos são inspirados na produção de pensadores negros, como o próprio título da exposição evoca. Simões afirma que um dos pressupostos do projeto é justamente entender arte como pensamento e, além disso, reconhecer que “existe um pensamento negro profundo, e que em última instância, é um pensamento sobre o próprio Brasil”.
Mendes conta sobre como Emanuel Araujo inspirou o núcleo Baobá com sua obra homônima: “[…] é o único núcleo nomeado a partir de uma obra. É uma forma da gente se referir também e buscar uma ancestralidade, mas entendendo o futuro como ancestral”. A curadora completa afirmando que buscou-se criar diálogos fugindo de estereótipos, ao “sair de tudo que se especula que deve ser uma arte feita por pessoas negras ou pensada por pessoas negras”.
O primeiro núcleo encontrado pelo público ao adentrar o galpão expositivo é Legítima Defesa. A inspiração para essa constelação de trabalhos é a frase “Todo escravo que mata o senhor age em legítima defesa”, cunhada em 1881 por Luiz Gama, o primeiro jurista negro do Brasil. A legítima defesa pensada na exposição não é propriamente o ato de devolução de uma violência, mas sim estratégias de preservação da vida de pessoas negras, seja na cultura, ou em movimentos político-sociais. “Falamos de organizações de vidas negras e de poéticas que são uma devolução de um ato de violência a partir da vida”, sintetiza Mendes.
Organização Já e Amefricanas são construídos através da obra de Lélia Gonzalez, intelectual e ativista co-fundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro, do Movimento Negro Unificado e do Olodum.
As mais diversas formas de organização da população negra são discutidas em Organização Já, um núcleo que trata desde a criação dos primeiros quilombos a partir de 1559 até a atualização dessas formas de resistência na contemporaneidade. Contudo, Mendes lembra que essas formas de organização vão além da ideia de resistência: “é uma estratégia histórica que permanece até hoje. Podemos pensar na ‘organização já’ nos bailes, por exemplo, como uma forma de associativismo, de celebração, de curtição e de confluência negra”.
A vida das mulheres negras nas Américas é tema de Amefricanas, núcleo intitulado a partir de termo cunhado por Gonzalez. “Ela discute nos seus textos como a neurose cultural brasileira tem uma maneira muito peculiar de atingir as histórias, autonomia e o papel altivo de nós mulheres negras na formação desse país” explica Mendes. A neurose cultural brasileira, pensada pela intelectual, se refere a um processo de negação das influências culturais negras e indígenas no país, o que implica na marginalização e apagamento dessas culturas. No núcleo, as mulheres negras são celebradas, contando com obras que homenageiam figuras de grande influência, como artistas, intelectuais e ativistas.
Na contramão de uma história da arte baseada em cânones europeus, a exposição apresenta artistas que criticam essa narrativa a partir do núcleo Romper, tendo como base o pensamento da historiadora Beatriz Nascimento. Para Mendes, é necessário romper com a história oficial escrita por mãos brancas. Trabalhos presentes nessa constelação discutem diversos aspectos da arte, como o papel do artista na construção de (novos) imaginários, por exemplo. “Nós vamos costurar ali iconografias que temos no imaginário da história da arte como iconografias chaves. E apresentamos isso a partir do protagonismo negro”, explica Chagas.
A partir do pensamento do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, o núcleo Negro-Vida foi desenvolvido para tensionar as classificações e expectativas sobre a arte afro-brasileira. O termo “negro-tema”, cunhado pelo intectual e discutido pela curadoria nesse momento, é designado para explicar como a produção de artistas negros é muitas vezes agrupada pelo sistema das artes em estilos e temas muito específicos, o que implica em uma leitura rasa e simplificante sobre uma produção que é diversa e plural.
“O negro tema é aquilo que a branquitude – enquanto uma estrutura de poder – inventa: esse ser plástico, moldável e mercadoria. Já o negro vida é tudo aquilo que escapa”, afirma Mendes.
Por fim, o núcleo Branco Tema oferece uma resposta à lógica de representação construída por artistas brancos sobre pessoas negras ao longo da história. Tendo a branquitude como tema, os artistas desse núcleo, a partir de diversos contextos e poéticas, desfazem a crença na neutralidade das pessoas brancas na sociedade, seja em questões raciais ou na própria arte. Trata-se de uma inversão no ato de representação, em que artistas negros apresentam modos de se olhar criticamente para a branquitude e reconhecer problemáticas desse grupo, como seu papel no apagamento de narrativas que não são brancas.
Os núcleos educativos desenvolvem um papel fundamental dentro de instituições culturais, sempre ampliando as possibilidades de experiências estéticas, pedagógicas e de fruição da arte junto ao público. Nesse projeto, o educativo pôde desempenhar uma participação ativa com a curadoria, inclusive influenciando em escolhas de obras para a exposição, com base em pesquisas realizadas pelo núcleo.
Para a curadoria, a educação é algo indissociável da própria prática curatorial e da concepção da exposição. Essa presença é vista através da residência virtual, dos textos de diversos pesquisadores presentes no catálogo, do material educativo e do site que será lançado com o propósito de ser um arquivo de todo o processo envolvido em construir Dos Brasis. Além disso, o educativo desenvolve um trabalho contínuo de mediação da exposição com diversos tipos de público.
“Essa é uma exposição de presenças, ela não fala de ausências. Porque esses artistas nunca foram um silêncio, nunca foram invisíveis”, afirma Simões.
Exposições de arte têm sido cada vez mais compreendidas enquanto organismos vivos, dinâmicos e versáteis, nos quais é possível encontrar ferramentas para a construção de pensamento crítico – aliado à experiência estética. Adentrar uma exposição é – também – uma possibilidade de presenciar e participar de movimentações políticas e históricas. Nessa compreensão, todos os envolvidos são agentes propositores e participativos do processo, desde a curadoria aos profissionais institucionais, dos educadores ao público visitante.
A imensa maioria dos profissionais envolvidos em Dos Brasis é negra. Isso não é apenas um dado, mas ajuda a entender que, cada vez mais, os projetos que se direcionam a narrativas ligadas a vivências não são apenas discursivos, mas também corporificados.
Dessa maneira, visitar a exposição e ter acesso a todo conteúdo produzido ao longo do projeto, é uma oportunidade de ampliar repertórios a partir da arte e do pensamento negro que ainda é pouco difundido devido à uma escuta seletiva realizada pelo sistema ao longo da história, como pontua Simões.
Dos Brasis: arte e pensamento negro, além de presenças, um espaço de encontro. É oportuno e necessário estar aberto a outras proposições teóricas, modos de se expor e se relacionar com arte – e esse projeto apresenta muitas possibilidades nesse sentido.
Serviço
Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro
Curadoria geral: Igor Simões – RS
Curadoria adjunta: Lorraine Mendes – RJ e Marcelo Campos – RJ
Cenografia: Isabel Xavier – SP
Coordenação do projeto educativo: Janaina Machado – SP
Comunicação visual: Claudio Bueno e João Simões – SP
Iluminação: Andre Boll – SP
Produção: Ana Helena Curti – SP (Arte 3) e Vanessa Soares – SP (Movimentar)
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