Nascido em 1975 no Jardim Martinica – parte do bairro do Campo Limpo, periferia da zona sul de São Paulo – manifestava seu entendimento das ruas e vias públicas como telas desde o começo de sua adolescência, acumulando advertências na escola por intervenções não autorizadas e até detenções por desenhar e pichar muros clandestinamente. Foi só na década de 1990 que, pintando cenários e decorações para parques de diversão em São Paulo, recebeu as primeiras remunerações por seus desenhos. Na década seguinte, Eduardo Kobra começa o seu primeiro projeto de grande destaque, Muro das Memórias.
Eduardo Kobra. Mural do projeto Muro das Memórias, 2002. Reprodução: site oficial do artista.
Iniciada em 2002, a obra se baseou em fotos de São Paulo da primeira metade do século XX, reproduzindo suas cenas nos muros da cidade, majoritariamente em tons de sépia e branco e preto. Em seu site, o artista comenta que sua intenção era contrastar o cenário dessas duas épocas da capital paulista, abrindo um portal para o passado e alertando para a importância da preservação do patrimônio histórico da cidade.
As cenas de Muro das Memórias retratam “cliques” despretensiosos da vida cotidiana, com personagens em diferentes níveis focais, algumas aparentemente cientes da presença do “fotógrafo” e outras focadas em seu próprio caminho. Pelos murais do projeto é possível notar elementos que se tornariam icônicos dentro de sua obra: o hiper-realismo e os padrões coloridos de variáveis formas – aqui ainda tímidos.
O projeto rendeu notoriedade à Kobra, que replicou o conceito de “túnel do tempo” para cidades fora do Brasil. Dentre essas expansões, destaca-se sua releitura da fotografia O Beijo – imagem histórica capturada após o anúncio de rendição do Japão, em 04 de agosto de 1945, e o consequente fim da Segunda Guerra Mundial.
Alfred Eisenstaedt. V-J Day in Times Square, 1945. Reprodução: Life
Eduardo Kobra. O Beijo, 2012-2016. Foto: Bobby Zucco. Reprodução: site oficial do artista.
O Beijo de Eduardo Kobra foi pintado sobre uma parede de 11 metros de altura por 17 de largura, em um lugar de destaque no horizonte do High Line na Times Square – hoje um parque suspenso de Manhattan no lugar de uma linha de trem desativada. Além da releitura da fotografia de Alfred Eisenstaedt, há mais um mural feito imediatamente abaixo, que retrata uma cena cotidiana da Times Square de 1945, um evidente paralelo com seu trabalho em São Paulo.
Kobra retrata o beijo do marinheiro George Mendonsa e da enfermeira Greta Friedman pintando ambos em cores vibrantes e em diferentes padrões – sendo George retratado com as listras vermelhas e brancas da bandeira estadunidense. A cena do beijo irradia feixes de luz que alcançam e preenchem de cor o preto e branco do cotidiano abaixo. O impacto gerado pelo mural – que rapidamente se tornou um dos lugares mais fotografados da cidade – demonstra a habilidade do artista em capturar e transmitir significâncias através de seus desenhos. Hoje já não é possível encontrar O Beijo de Eduardo Kobra ao andar pelo High Line – a obra foi apagada pelo proprietário do prédio. Ainda assim, a cidade de Nova Iorque ainda é dotada de uma série de obras do artista brasileiro.
Kobra demonstra sensibilidade e intenção em suas escolhas de cores, padrões e elementos. É possível notar que as personagens retratadas não possuem os padrões coloridos no lugar de suas pupilas e írises – o que facilita a identificação dos espectadores com as personagens, pois é mantida a representação verossímil de uma área tão valorizada pela episteme ocidental. A pintura de Anne Frank feita por Kobra em Amsterdã é um exemplo da intencionalidade do artista também em seus padrões coloridos.
Eduardo Kobra. Let Me Be Myself (Deixe-me Ser Eu Mesma), 2016. Reprodução: site oficial do artista.
Em Let Me Be Myself, o artista traz nos padrões coloridos ao fundo da imagem reproduções da capa do diário da adolescente judia vítima do Holocausto. O retrato de Anne Frank feito por Kobra faz parte de seu projeto Olhares da Paz – que em outros muros retrata figuras como Albert Einstein, Nelson Mandela, Malala Yousafzai, Madre Teresa de Calcutá e Dalai Lama.
Eduardo Kobra. Olhares da Paz, 2018. Reprodução: site oficial do artista.
Em sua coleção de murais, Eduardo Kobra também detém o recorde de maior grafite do mundo. Primeiro com o projeto Etnias, oficializado em 2016 pelo Guinness Book e, em seguida, superado pelo próprio artista em 2017, com o mural Cacau – ambos no Brasil.
Eduardo Kobra. Etnias, 2016. Reprodução: site oficial do artista.
Eduardo Kobra. Cacau, 2017. Reprodução: site oficial do artista.
Seu projeto Todos Somos Um (outro nome associado ao mural Etnias) foi feito durante os preparativos para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. Em celebração à ocasião, o artista se inspirou na simbologia dos anéis olímpicos e decidiu retratar no Boulevard Olímpico cinco povos originários – um de cada continente. Protagonizam a obra os huli (Oceania), os mursi (África), os kayin (Ásia), os supi (Europa) e os tapajós (Américas). Entre as personagens, preenchidos por padrões coloridos que quase as confundem com o fundo do desenho, é possível identificar as silhuetas dos continentes. Os padrões coloridos sobrepõem-se ao rostos das personagens, porém, não escondem as pinturas faciais características de alguns dos povos retratados e, ainda, entre o colorido e o fundo do mural destacam-se seus adereços de cabeça que, em contraposição ao restante da obra, estão pintados com o que seriam suas cores reais.
Já em Cacau, obra que segue até o momento como o maior mural grafitado do mundo, Kobra faz um uso do seu colorido icônico de forma diferente. Com 5.742 metros quadrados, a cor principal é o marrom: ao fundo, em um padrão representando uma enorme barra de chocolate e, no primeiro plano, formando um rio. Sobre o corpo d’água marrom, vemos um rapaz que rema em seu barco – esses sim completamente preenchidos pelos padrões coloridos de Kobra. O artista escolhe criar ainda mais um contraste representando de maneira realista o monte de cacaus que são levados na parte anterior do barco. Mais uma vez as cores da realidade e dos padrões de Kobra se chocam e nos levam a refletir sobre o encontro do concreto e material com o fantasiado ou sentido.
Atento às causas socioambientais, Kobra incorporou sua preocupação com o tema em outra de suas famosas releituras, Global Warming, sua versão da obra “A Persistência da Memória” (1931) do artista surrealista Salvador Dalí – onde chama a atenção para o aquecimento global.
Salvador Dalí. A persistência da memória, 1931.
Eduardo Kobra. Global Warming (Aquecimento Global), 2019. Reprodução: Catraca Livre.
Feito e exposto originalmente no Principado de Mônaco, o artista retrata os famosos relógios do pintor surrealista sobre geleiras derretidas. Aqui Kobra utiliza cores mais dessaturadas e dá ao seu desenho um ar de angústia que marca o aviso sobre a condição climática. A escolha de Mônaco é simbólica. O país tem investido consideravelmente em práticas sustentáveis.
Entre seus outros trabalhos de street art engajados com causas sociais, destaca-se o mural feito em 2015 com a foto de Ana Julia Alves Tomas, criança paulista desaparecida desde 2013.
Eduardo Kobra. 2017. Foto: Patricia Stavis. Reprodução: Catraca Livre.
Para Eduardo Kobra a arte é uma ferramenta de transformação de vida – seja na sensibilização sobre causas ou no compartilhamento de histórias. Em 2021, o artista fundou o Instituto Kobra, voltado para a promoção do acesso à arte e cultura pela população vulnerável de São Paulo. Autodidata, o artista tem como inspirações e referências os trabalhos de Basquiat, Banksy, Diego Rivera, Michelangelo e Rembrandt; e vê em seu Instituto um meio de fomentar a valorização e a disseminação da arte, atuando prioritariamente em áreas periféricas.
O reconhecimento de Eduardo Kobra como um dos grandes nomes artísticos brasileiros da atualidade é inegável. Reconhecido internacional e nacionalmente, o artista teve o seu mural feito em Sorocaba (SP) reconhecido como patrimônio cultural da cidade pela Câmara de Vereadores, em maio de 2022.
Eduardo Kobra. 2021. Reprodução: @kobrastreetart
O desenho foi feito em 2021 em um dos muros de uma escola particular da cidade. Em um processo inédito, o autor recebeu sugestões do público para desenvolver a obra. Elaborado para ser um incentivo à leitura, o mural forma uma estante de livros de onde um deles é retirado por um jovem rapaz. Os padrões de cor da estante levam o olhar até o livro selecionado pelo garoto e compõe, tal qual em O Beijo, uma explosão de cores que parte do ponto focal da obra. Entre os livros que compõem a estante é possível encontrar títulos de clássicos como O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, Macunaíma, de Mário de Andrade e A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.
Para Eduardo Kobra, o Brasil está na vanguarda da street art, ou o muralismo. É possível caracterizar a capital paulista como uma cidade de destaque no circuito. Investindo consideravelmente na arte urbana, São Paulo conta com inúmeros murais grafitados ao longo de sua paisagem. O Elevado Presidente João Goulart (antes chamado Elevado Costa e Silva) hoje desempenha um papel de destaque na exposição da street art na cidade. Com um grande número de murais expostos, o Minhocão (como também é chamado o Elevado) já recebeu diferentes ações de promoção do grafite. Fechado para a circulação de carros aos finais de semana, o espaço recebe pedestres em busca de lazer – de forma comparável ao High Line de Manhattan.
Após a implementação do programa Cidade Limpa, em 2006, artistas muralistas começaram a se deparar com uma abundância de muros onde seus desenhos poderiam ser expostos. Em diferentes oportunidades a própria gestão municipal passou a apoiar e financiar a intervenção artística em seus muros. Hoje é possível encontrar inúmeras intervenções de street art espalhadas por toda a capital.
Matheus Paiva é internacionalista, formado pela Universidade de São Paulo, e produtor cultural
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1 Comment
Gostei muitíssimo da matéria.