No mundo permeado por crises – ambiental, social, política, sanitária – é inevitável que a arte produza representações de corpos que correspondam a tais contextos. É no corpo que vivenciam-se todas as crises e seus efeitos, portanto é nele que artistas podem recorrer para indagar que tipo de materialidade é produzida na encruzilhada de tantas adversidades.
“Inflamação”, exposição individual de Anish Kapoor que inaugura a Casa Bradesco, busca responder a questão sobre o corpo contemporâneo – de um modo bem visceral. Com curadoria de Marcello Dantas, 19 obras de diferentes fases da carreira do artista indo-britânico apresentam diversas facetas da produção de um dos mais conhecidos artistas contemporâneos do mundo.
“Os sinais da inflamação são cinco, sendo comuns em praticamente todos os processos infecciosos no corpo humano. Esses indicadores são: rubor, calor, dor, edema e perda de função. Mas a inflamação é também o ato de colocar em chamas, e representa, ao mesmo tempo, uma resposta do corpo à infecção e uma resposta social na forma de um levante (‘inflamar-se por uma causa’)”, reflete Dantas no texto curatorial.
Esse corpo inflamado se manifesta para o público de formas variadas, desde representações mais diretas da carne, a obras que levam o público a um olhar atencioso à matéria, proporcionando uma experiência que mexe com os sentidos.
Para celebrar a inauguração do centro cultural Casa Bradesco na Cidade Matarazzo, um recente complexo cultural localizado ao lado da Avenida Paulista, a exposição de Anish Kapoor propõe um diálogo com a arquitetura do espaço. Esse corpo inflamado de Kapoor se espalha pelo espaço expositivo, especialmente através da obra site-specific “Blinded by Eyes, Butchered by Birth”, criada exclusivamente para a arquitetura da Casa Bradesco, levando em consideração suas dimensões e especificidades de um prédio antigo restaurado.
A grande instalação inflável está localizada no coração dos dois andares expositivos. Suas formas voluptuosas contornam e excedem as colunas do primeiro andar, e continuam no térreo criando um diálogo entre os dois espaços. É como se esse corpo estivesse em constante expansão e o espaço não fosse capaz de comportá-lo. Essa obra condiciona todo o percurso dos visitantes, visto que todas as outras obras foram instaladas no contorno do grande inflável.
Cada obra de Kapoor propõe um processo de auto percepção à sua maneira. Confrontar algumas das obras presentes em “Inflamação” envolve o processo de olhar para si – metafórica ou literalmente. Nesse sentido, percebe-se que um dos artifícios utilizados pelo artista é o reflexo ou sua ausência. Stave (Red), de 2015, por exemplo, reflete o alcance monumental da obra de Kapoor. A grande peça espelhada possui seu lado côncavo vermelho, distorcendo todo o reflexo a sua frente, unificando os visitantes ao prédio que ambienta o trabalho.
A relação espacial e física das obras se manifesta também em formas de indícios, fabulando certo embate entre os trabalhos e o espaço expositivo. Algumas obras produzidas com cera, por exemplo, geram a sensação de que a constituição do trabalho e sua instalação no espaço expositivo ocorreram em processos violentos e brutais. Essa sensação se dá em partes pelos resíduos em volta das obras, sugerindo o momento em que uma matéria frágil e modulável entra em contato com a superfície bruta em um movimento de grande impacto. Esses elementos reforçam uma ideia de fragilidade e organicidade que liga as obras a corporalidades latentes.
A associação de alguns trabalhos de Kapoor com a produção artística de Adriana Varejão é inevitável, em especial em trabalhos onde o visceral aparece na crueza da carne ou em formas de incisões na parede, experimentação comumente encontrada na produção da brasileira. No entanto, nessa exposição, a poética de Kapoor parece se atentar mais a um diálogo entre na formalidade da carne e a arquitetura, enquanto Varejão se atenta para as violências de processos coloniais, sendo mais direta em relação a quais contextos sociais se debruça.
A obra de Kapoor é mundialmente reconhecida por sua experimentação com o Vantablack, pigmento mais escuro do mundo, que foi patenteado por Kapoor em 2016 – apesar do artista já trabalhar com essa ideia desde os anos 90. Nessa exposição, há uma sessão com três trabalhos elaborados a partir desse pigmento que absorve 99,965% da luz visível, sendo duas esculturas e uma instalação em uma parede.
As três obras desafiam a percepção do público quanto às formas e o volume das esculturas, que só pode ser percebido quando se realiza o movimento completo ao redor das peças. Já a cavidade criada na parede com essa absorção quase absoluta da luz inviabiliza uma precisão de sua profundidade real, confrontando o público a um vazio e à incerteza.
A centralidade da matéria na produção de Kapoor explica como o corpo e a percepção estão entrelaçados em todos os trabalhos. Em “Inflamação”, percebe-se como o corpo pode ser objeto de investigação e protagonista da experiência, visto que cada trabalho insere o público em um novo estado de autoconsciência. Olhar para dentro de si, como sugere a curadoria, é possível através de reflexo, de imaginar a crueza do corpo, ou mesmo para o vazio.
O espaço que recebe a exposição na Casa Bradesco é apenas uma parte do novo centro cultural, que terá futuras programações em breve. O centro cultural oferece às terças-feiras o dia da gratuidade, fazendo valer a visitação, já que a Casa Bradesco está inserida em um circuito de equipamentos culturais da Avenida Paulista com vasta programação cultural gratuita e acessível.
Serviço:
“Anish Kapoor – Inflamação”
Data: de 15 de setembro a 15 de janeiro, das 10h às 22h (de terça a domingo, entrada até às 21h)
Local: Casa Bradesco – Alameda Rio Claro, 190, Bela Vista (dentro da Cidade Matarazzo)
Classificação etária: livre
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