Para muitas pessoas são raras as chances de viajar até os Museus do Vaticano para conhecer a Capela Sistina e outras obras de Michelangelo, um dos consagrados mestres do Renascimento italiano. A nova exposição do MIS Experience – segunda unidade do Museu da Imagem e do Som de São Paulo – é dedicada a trazer a experiência de contemplação à Capela Sistina através de recursos tecnológicos.
Michelangelo: O Mestre da Capela Sistina é a terceira exposição deste equipamento, que já realizou grandes exposições sobre a obra de Leonardo da Vinci e Candido Portinari desde sua inauguração em 2019. Além da sala imersiva que remonta o interior da famosa capela destinada atualmente às votações para definir um novo Papa, a exposição apresenta um panorama com réplicas homologadas de esculturas de Michelangelo, além de reproduções de cartas e pinturas.
Pela primeira vez no Brasil uma proposta imersiva pensa também o teto do grande salão, além dos quatro cantos que são tomados por 19 projetores. Ao longo de mais de 25 minutos de projeções, os visitantes são envolvidos por um trabalho artístico produzido por VJ Spetto e Leticia Pantoja. As projeções não só reproduzem a Capela Sistina – que tem suas proporções respeitadas, mesmo sendo menor no MIS -, mas contam as principais narrativas pintadas por Michelangelo nos afrescos, contando com recursos sonoros e visuais que intensificam cada momento.
Michelangelo desde cedo reconheceu sua maior aproximação com a arte tridimensional, especialmente ao frequentar o Jardim de esculturas da família Médici, maior financiadora da arte no Renascimento. Se especializou em esculturas e relevos, produzindo peças impressionantes para alguém tão jovem, como A Batalha de Centauros e Madonna na Escada, por volta dos seus 17 anos. Não possuía, no entanto, a mesma confiança e interesse na pintura, apesar da técnica ter sido trabalhada no começo de sua carreira sendo aprendiz de Domenico Ghirlandaio, mestre de destaque em Florença no período.
Na casa dos 20 anos já era reconhecido como um artista notável, o que fez o Papa Júlio II incumbir a Michelangelo a tarefa de preencher o teto da Capela Sistina com afrescos – técnica que implica em uma pintura realizada na argamassa da parede ainda úmida. A edificação já contava com afrescos de outros grandes artistas da época, como Sandro Botticelli, Pietro Perugino e Domenico Ghirlandaio, que ilustraram a vida de Jesus e Moisés nas laterais.
Nunca tendo realizado trabalhos expressivos com a técnica de afresco, o artista acreditava que a encomenda do Papa era uma armadilha, já que um dos conselheiros do líder religioso era Bramante, arquiteto com o qual Michelangelo cultivava desavenças e que poderia desejar sua falha.
Mesmo tentando recusar a encomenda ao duvidar de sua própria adequação para o serviço, Michelangelo a aceita após a insistência do Papa. As temáticas presentes em toda a extensão de teto da arquitetura são todas escolhidas pelo próprio artista, que decidiu retratar as histórias do Antigo Testamento.
A dedicação do artista ao teto da capela durou cerca de 4 anos, de 1508 a 1512. Na exposição do MIS Experience, o público conhece essa narrativa ao longo de diversas salas de modo detalhado, com apoio de textos que identificam cada personagem.
As laterais do teto são ocupadas por profetas bíblicos e Sibilas, profetizas clássicas incorporadas na narrativa cristã através da influência greco-romana. Um corredor nomeia cada uma dessas personagens e resume sua história. Os ancestrais de Jesus que ilustram os arcos laterais da capela, como uma sustentação imagética da história central, também são apresentados em uma sala da exposição.
Os atos divinos que marcam o livro de Gênesis e a criação do mundo compõem uma sala que apresenta momentos como a divisão da luz e das trevas. As ampliações desses trechos permitem uma contemplação mais atenta aos detalhes e uma leitura mais oportuna.
Um dos momentos mais aguardados pelo público é a Criação de Adão, um dos afrescos de Michelangelo que seria eternizado e popularizado ao longo dos séculos. As mãos de Deus e Adão que vão de encontro em um movimento performático são destacadas em uma sala através de esboços que mostram a evolução dos estudos do mestre italiano enquanto arquitetava uma das cenas mais icônicas da pintura renascentista.
A criação de Eva, o pecado original e a expulsão de Adão e Eva do paraíso são também detalhados nesse percurso. A observação das imagens permite a compreensão sobre o modo como Michelangelo escolheu contar histórias na pintura. Em uma mesma composição, o artista representa a origem do pecado e o resultado deste ato. A aparência de Adão e Eva muda drasticamente de um canto da cena ao outro extremo, demarcando o efeito da expulsão sobre seus corpos e semblantes. O mestre italiano depositava, sem dúvidas, seus maiores esforços no corpo humano enquanto expressão máxima, ao tempo que a paisagem e outros detalhes eram secundários.
Outro arco narrativo importante para o Velho Testamento, contado por inúmeros artistas durante a história, é a passagem de Noé. Pintado em 3 atos por Michelangelo, as cenas se debruçam sobre diferentes momentos de uma das histórias mais famosas da bíblia. Em uma das cenas, é possível notar o uso mais elaborado da perspectiva em uma cena complexa, com muitos personagens divididos em grupos.
Cerca de 23 anos após finalizar o teto da Capela Sistina, Michelangelo retorna a trabalhar na edificação – agora, para pintar o altar. Entre 1535 e 1541, o artista daria vida à sua versão do Juízo Final, trecho da bíblia em que versa sobre o julgamento divino sobre todos aqueles que pisaram na Terra, definindo quais seriam os merecedores do paraíso ou seriam destinados a pagar seus pecados no inferno.
A composição do afresco é pretensiosa, preenchida por inúmeros personagens conhecidos da bíblia, construídos dentro de uma estética estabelecida pelo artista ao longo de sua carreira. Os corpos – em especial os masculinos – são a chave para o artista arquitetar uma grande cena onde cada personagem se encaixa em um movimento contínuo. De alguma forma, todos são afetados pela presença central de Jesus que os julga. Na exposição, a cena é fragmentada em diversos quadros possibilitando uma aproximação maior com os personagens.
A exposição se inicia e se encerra com as esculturas que consagraram Michelangelo. A primeira sala, o Ateliê, agrupa reproduções de obras que fazem parte de diferentes momentos da trajetória de Michelangelo. Nesta sala está uma reprodução de Moisés, escultura que foi elaborada pelo artista para um mausoléu do Papa Júlio II – nunca finalizado -, é uma das peças mais importantes de sua carreira.
Além desta, é possível ver uma reprodução homologada de Pietá Rondanini, umas das últimas obras trabalhadas por Michelangelo ao final da sua vida. Nela, é possível observar o processo do artista em partes inacabadas, como a parte superior, e outras mais refinadas, como as pernas de Jesus.
O final é marcado por uma reprodução em tamanho real do imponente Davi, que marcaria definitivamente a carreira de Michelangelo e a arte escultórica italiana. A versão de Michelangelo sobre Davi é diferente de outras que o representavam em ação ou no momento glorioso após derrotar Golias. Nesta escultura de cerca de 5 metros (sem o pedestal), Davi está em posição de atenção, à espera do gigante que o enfrentaria. O olhar atento e a virilidade da figura esculpida pelo artista seriam a chave para representar Florença em um período de muitos conflitos durante a instabilidade política que a região sofria.
A possibilidade de aproximação com uma obra tão icônica quanto distante dos brasileiros é, por si só, uma experiência válida, especialmente em seu caráter educativo. A obra de Michelangelo ainda é, e não deixará de ser, matéria básica no ensino das artes. Ainda que estudos críticos devam ser feitos, e essa obra mereça revisões, é essencial que haja a possibilidade de contato com esse conteúdo e, sem dúvidas, exposições tecnológicas podem ser uma boa aliada nesse sentido.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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