Aquilo a que chamamos street art ganha outros significados quando estudamos a sagacidade da obra de Banksy. Diversos fatores são os que levam o artista a ser um dos mais comentados nas notícias do mundo da arte: sua identidade não revelada, a estética inconfundível do stêncil, as duras críticas ao sistema capitalista e ao mercado de arte.
Curiosamente, seu posicionamento crítico não o leva a ser menos requisitado nos leilões de arte, sendo, ao contrário, conhecido como artista que bate recordes de preços.
É possível atribuir seu valor à imprevisibilidade das suas ações. Suas iniciativas são sempre muito pontuais e surpreendem o público ao invadir museus e forjar obras originais ou ao destruir o próprio trabalho ao vivo em um leilão de arte.
Como um artista urbano, o posicionamento político tem importância equivalente ao trabalho final. O processo significa muito já que o grafite tem uma história ligada à subversão e à contestação. Banksy age escondido, rápido e por dentro de circuitos não imagináveis.
É comum mencionar a linguagem do grafite como uma espécie de “grito de exclusão”. Enquanto as grandes instituições do circuito da arte historicamente patrocinaram e promoveram as belas artes e as produções que dialogavam, de certa forma, com o cotidiano burguês, o grafite e a pichação, entram nesse escopo como marginais, periféricos e representativos de uma linguagem popular apagada no âmbito artístico e social.
Essas manifestações são feitas no espaço público de forma aberta e visível para a maior parte das pessoas, contrariando a lógica de instituições fechadas que funcionam apenas para pequenos grupos.
As pinturas feitas em espaços de grande circulação se tornam acessíveis a todos que passam no local. É pensando nesta forma de arte democrática que Banksy escreve:
“grafitar é, na verdade, uma das mais honestas formas de arte disponíveis. Não existe elitismo ou badalação, o grafite fica exposto nos melhores muros e paredes que a cidade tem a oferecer e ninguém fica de fora por causa do preço do ingresso”
Apesar de não sabermos exatamente quem é o artista, sua opinião sempre foi bem estampada em seu trabalho no grafite, em documentário e em livro e, atualmente, se comunica em sua página do Instagram.
A arte pública pode vir a sofrer diversas intervenções, são trabalho suscetíveis ao clima, às autoridades locais ou a outros artistas urbanos. A linguagem não se propõe a ser permanente, mas a dialogar justamente com aquele espaço e momento na qual foi feita, por isso, Banksy fotografa seu trabalho exatamente após a finalização porque é imprevisível o rumo que sua obra tomará após este instante. É o que se vê no livro Guerra e Spray onde as fotos dos trabalhos são seguidas de legenda informativa sobre o tempo de duração da pintura antes de ser retirada ou apagada por seu caráter incômodo ou ilícito.
Vejamos sua intervenção no Metropolitan Museum of Art em 2005, onde instalou um retrato modificado no qual pintou um respirador no rosto da mulher retratada. Usando nariz e barba falsas, entrou no museu e sutilmente instalou a pequena moldura em uma parte da parede da sala expositiva. A duração foi de duas horas até que alguém aparecesse para retirar a moldura.
Essa intervenção foge do conceito tradicional de grafite e se estende ao campo da arte urbana, por ser criação que mistura elementos modernos aos clássicos para ironizar os parâmetros das artes clássicas e das instituições. Entretanto, a atitude de contestação própria da arte urbana se faz presente.
A mais ilustrativa desta série foi feita no British Museum em Londres, onde pinta em uma pedra um homem e um carrinho de supermercado no estilo da arte rupestre. Na legenda, cria uma narrativa cômica que aponta para as contradições de valor artístico e histórico das peças. É como uma brincadeira que ridiculariza a forma como essas instituições trabalham. A duração foi de oito dias e, curiosamente (ou não), a obra foi incorporada ao acervo fixo.
A incorporação do trabalho de Banksy pelo mercado é um dos aspectos mais contraditórios da sua carreira. Uma vez que suas pinturas se popularizaram em Bristol, na Inglaterra, o interesse aumentou por parte de galeristas e profissionais do circuito. Ao ponto de um dos muros que recebeu a pintura ser vendido e retirado do local de origem. Não apenas retirado mas transferido a uma instituição que comercializa para coleções particulares.
É natural pensar que, para quem realmente aprecia a obra de Banksy, a ideia de se apropriar comercialmente do trabalho pode soar como heresia. Para Banksy não é diferente. Em diálogo publicado em agosto de 2018 em sua página do Instagram, revela que não tem envolvimento com a mostra individual organizada em uma instituição de Moscou, que cobrava 20 euros aos visitantes. O artista diz que não cobra pessoas para ver arte, mas, ao mesmo tempo, ironiza que talvez não seja a melhor pessoa para reivindicar o uso de imagens sem permissão, já que ele próprio faz releituras e intervenções em espaços não autorizados.
O episódio levanta discussões sobre direitos autorais no caso de obras de arte pública. No caso de trabalhos criativos e com valor cultural que supera o valor físico do suporte, usa-se a perspectiva do direito da propriedade intelectual, que defende determinada criação enquanto fruto de trabalho intelectual do autor, que tem valor imaterial maior em relação ao suporte onde foi feito.
Dessa lógica, grosso modo, surgiram as diretrizes de patente, direito autoral e marca registrada. Ocorre que, para que Banksy tenha a propriedade e, além disso, o controle do uso de seu trabalho por terceiros, é imprescindível que seja pública sua identidade. Numa espécie de desafio ao sistema, mantém sua identidade não declarada por entender que o mercado também se apropria da imagem do artista mais do que seu próprio trabalho. Não sabendo quem ele é, seu anonimato gera visibilidade e repercussão voltada apenas para suas obras, sem interferência de fatores pessoais.
É evidente, porém, que não trabalha sozinho, alguns profissionais, como fotógrafos e agentes, trabalham em conjunto para realizar os complexos feitos em que o artista se envolve.
A destruição do próprio trabalho em 2018, no leilão da Sotheby’s, é uma das intervenções que desconhecemos os envolvidos, mas é dedutível que tivesse uma equipe organizando a ação. A obra Menina com o Balão foi arrematada por 1 milhão de libras e, no segundo seguinte, um triturador foi acionado destruindo o trabalho em pedacinhos. Especula-se que o artista tenha de alguma forma se infiltrado para a instalação do dispositivo que a casa de leilão alegou desconhecer. Foi um choque para todos os presentes e uma diversão para o artista que publicou a foto com a legenda “going… going… gone” (“indo… indo… foi” em tradução ao português).
Outro trabalho de grande magnitude se pensada por seu tamanho e envolvimento político são os grafites feitos no Muro da Separação entre Israel e Palestina. O muro, com cerca de 700 km tem estrutura em parte de concreto e em parte de arame e é símbolo do conflito entre os dois territórios. O trabalho de Banksy assume uma postura de defesa do povo da Palestina ao dizer que é
“a maior prisão ao ar livre do mundo e o destino ideal para férias agitadas de artistas grafiteiros”
Uma menina com balões foi pintada e adota uma atmosfera em parte poética, em parte política. Os balões a puxam para cima num ato que sugere a ultrapassagem do muro não só para o outro lado mas para uma visão macro da situação como que numa tentativa de superar a fronteira entre os espaços.
Os anjos, personagens de outra obra feita no local, se posicionam em lados opostos de uma rachadura na parede e são igualmente ambíguos. Ao mesmo tempo que são anjos esteticamente próximos ao imaginário católico, usam acessórios, como o gorro e lenços no rosto, usados por manifestantes pró-palestina.
Nem todas as propostas, porém, são políticas, mas carregam um viés interativo característico de Banksy. A menina que bamboleia com a roda da bicicleta abandonada ou a senhora que espirra tão forte que inclina as casas para o lado são cenas pensadas especialmente para interagir com o local e inserem narrativas até então inéditas naquele espaço transformando a percepção do presente. Ambas as obras, porém, foram retiradas do local onde foram feitas. Essa remoção acontece a partir da decisão de venda do muro pelo proprietário que passa a ser o responsável pelo trabalho uma vez que a autoria não é reivindicada por Banksy.
Alterar o local do trabalho retira a essência estrutural do pensamento de Banksy, o que gera uma grande perda para a cultura local. Mas, as interferências do mercado pouco abalam a importância do trabalho que se destaca a cada nova proposta.
É interessante notar que, sem intenção clara, o mercado de arte e Banksy estabelecem um certo esquema de retroalimentação, onde as ações de um complementam e incentivam as reações do outro. Ao chamar atenção de todos, suas obras foram trazidas para dentro de instituições privadas, ao mesmo tempo que ao reagir causa ainda mais euforia.
Por outro lado, Banksy já se beneficiou de sua influência para algumas causas nobres. Obras como a pintura a óleo “Mediterranean Sea View 2017” e o desenho “Game Changers” foram leiloadas em nome do artista e o valor foi doado a um hospital na Palestina em 2020 e ao sistema de saúde do Reino Unido em 2021, respectivamente.
O artista diversifica suas técnicas com destreza, vai de estêncil a pintura a óleo e sabe se relacionar de forma cirúrgica ao ponto de declarar seu posicionamento mas não ser engolido pelo que critica.
Se voltarmos à sua primeira declaração no livro Guerra e Spray, certamente se torna simples dizer que seu objetivo foi cumprido:
“Algumas pessoas se tornam policiais porque querem fazer do mundo um lugar melhor. Algumas pessoas se tornam vândalos porque querem fazer do mundo um lugar visualmente melhor.”
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Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
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