Lançado nesta semana nos cinemas brasileiros, a sequência de O Homem Aranha no Aranhaverso seguiu animação sofisticada do longa anterior e, nos costumeiros easter eggs da franquia, o mundo das artes plásticas marcaram presença.
O filme, dos produtores Joaquim Dos Santos, Kemp Powers, Justin K. Thompson, começa narrado pela personagem Gwen Stacy, a mulher aranha, que enfrenta o sofrimento pela morte de seu melhor amigo Peter Parker e a perseguição da polícia que a responsabiliza pelo acidente, somado ao dilema de esconder sua verdadeira identidade de seu pai que é um dos policiais engajados na captura da mulher aranha.
Em seguida, Gwen é levada ao vilão Adrian Toomes, também conhecido como Abutre, que está atacando o Museu Guggenheim em Manhattan, Nova York. Assim começam as referências.
Ao se deparar com o Abutre, Gwen descobre que ele é de outra dimensão, da Itália Renascentista, e se constitui como um dos desenhos em pergaminho do artista Leonardo da Vinci. Durante as cenas de luta entre Gwen e o Abutre, que percorrem toda a extensão do salão expositivo do museu, a dupla destrói uma das esculturas mais famosas do artista contemporâneo Jeff Koons e nesse momento se estabelece um rápido diálogo em que o Abutre questiona se é isso que se entende por arte na dimensão dela, ao passo que Gwen responde que a arte agora ironiza a própria arte.
Na cena seguinte, a mulher aranha se vê salvando o prédio do museu, os visitantes e também o helicóptero da polícia que caía ao ser atacado pelo vilão. Enrolado na teia a centímetros do chão, os visitantes olham para a aeronave e lançam um descompromissado “I think It’s a Banksy” (em português, “Eu acho que é um Banksy”).
A cena é rápida e diante de tantos estímulos e uma animação cativante e sofisticada, as referências podem passar despercebidas por quem não conhece os debates no mundo da arte. Vamos aos detalhes!
Leonardo da Vinci pode ser considerado o artista mais famoso da história da arte. Autor da emblemática Monalisa, que recebe frequentes releituras ao longo dos anos, da Vinci foi expoente da arte no Renascimento.
Seus desenhos tem grande destaque em seu legado, com mais de 7 mil páginas de desenhos, anotações e estudos documentados em cadernos conhecidos como códices.
Em Leonardo da Vinci: a síntese do Renascimento, Diogo Barros afirma que “com projetos ambiciosos de engenharia, instrumentos musicais, objetos voadores, artilharia militar e muitas outras áreas, os códices carregam um legado que atravessou gerações e ultrapassou os limites de suas pinturas: trata-se do legado das ideias, que proporcionou a Leonardo a alcunha de gênio, mesmo que a maioria desses projetos não tenha ganhado materialidade para além dos esboços.”
“Dentre os projetos mecânicos mais interessantes de Leonardo estão os objetos voadores. O artista-inventor se dedicou a observar diversos tipos de pássaros e morcegos, projetando uma variedade de asas e máquinas em escala humana que combinavam essas diferentes anatomias”.
O Abutre é um dos rivais mais antigos do Homem Aranha, veste um traje de ave que neste filme adota um aspecto sépia, característico de pergaminhos antigos, longas asas e penas afiadas que são usadas como armas.
Jeff Koons faz parte do rol de artistas já considerados mais bem pagos e famosos do circuito contemporâneo internacional. Outra alcunha já atribuída a ele é a de “queridinho de Hollywood“.
Koons é um artista estadunidense com uma variedade de obras polêmicas, seja pelos “readymades” (obras de arte feitas com objetos de uso cotidiano), que sempre geram curiosidade e suscitam comentários enérgicos do público, seja pela série “Made In Heaven” (1989) na qual retrata a si próprio em cenas eróticas com sua esposa da época ou, ainda, pelo aspecto comercial e monumental de outras criações, como os Balloon Dogs.
Esta última série de trabalhos teve início em 1994 e várias versões ao longo dos anos. São peças em aço inoxidável polido e espelhado com revestimento transparente em diferentes dimensões, desde as pequenas expostas em mesas ou pedestais, até as que ocupam quase uma sala expositiva inteira.
Considerado brega por uns e genial por outros, o artista conquistou o recorde em 2019 de maior preço pago pela obra de um artista vivo, quando a Christie’s de Nova York bateu o martelo no lance de US$ 91 milhões (cerca de R$ 363,63 milhões) pela escultura “Rabbit”.
No filme do Homem Aranha, a peça em questão é um Balloon Dog na cor rosa. É cômico imaginar o julgamento que um artista ou um personagem de uma obra de arte clássica faria ao viajar no tempo, sem acompanhar a evolução da história e se deparar com um grande monumento brilhante e espelhado exposto em mostra individual num grande museu de arte. É essa a sacada da cena apresentada no filme.
O conceito de arte no século XV e XVI partia, a grosso modo, de questões como simetria, beleza e principalmente o caráter manual, com construção e aperfeiçoamento graduais. A arte contemporânea é regida por outros princípios como conceito, rupturas de tabus, crítica social ou espetáculo, por exemplo. No caso de Jeff Koons, as criações operam na lógica do espetáculo e ao lado de artistas como Damien Hirst, o manufaturado perde a vez para as equipes contratadas que executam a montagem da parte física das peças, o que se distancia da ideia cristalizada no senso comum de que arte só é arte quando feita sob princípios renascentistas.
Banksy é um artista também polêmico, mas por outra razões. A primeira é a incerteza sobre a sua identidade. Diferentes palpites já apontaram qual seria a identidade do artista mas a revelação oficial nunca foi feita, o que abre a possibilidade para que Banksy seja uma pessoa só ou uma equipe de artistas.
De todo modo, sua prática se manifesta contra sistemas sociais excludentes que utilizam da arte de forma não democrática. Por isso a escolha pela arte urbana, na qual seu trabalho é acessível a todos por ser feita no espaço público – apesar das constantes apropriações do mercado de arte.
Seu trabalho por vezes questiona a política, padrões sociais, machismo, mas também é genial em se apropriar poeticamente de objetos presentes na rua e fazer uma metalinguagem entre o desenho e o objeto real.
Uma parte conhecida de seu trabalho são as releituras de obras famosas da história da arte. Em “Show Me The Monet”, faz uma referência à obra de Monet a partir do trocadinho entre as palavras Monet (nome do artista plástico) e Money (dinheiro, em inglês). Aqui se vê uma clara e dura crítica ao consumo e o tratamento dado ao meio ambiente, que se torna secundário em detrimento dos impulsos consumistas.
No filme do Homem Aranha, a dedução de que o helicóptero seria de autoria de Banksy pode vir de algumas de suas obras com a aeronave. Um exemplo é “Vandalised Oil (Choppers)” na qual intervém em uma paisagem rural pacata com um helicóptero de guerra armado. O contraste é expressivo e aponta os efeitos catastróficos e agressivos da guerra, segundo a Sotheby’s.
Na cena do filme, o estranhamento com um helicóptero envolvido por teia de aranha no meio de uma sala expositiva de museu, faz o público imaginar que é uma intervenção de Banksy.
No filme anterior do Homem Aranha, lançado em 2018, existe também uma rápida cena em que um amontoado de objetos aparece na calçada como resultado de um portal aberto para outras dimensões. Os passantes na rua, sem entender do que se trata, expressam a mesma frase “I think It’s a Banksy”, tamanha a fama do artista com as intervenções urbanas inusitadas.
Além das referências específicas de artistas e obras de arte, esse novo lançamento trabalha as animações com diferentes tipos de traços e estilos e passeia entre a modelagem 3D e o desenho 2D característicos da linguagem dos quadrinhos. Além disso, explora as cores e pinceladas das cenas como forma de expressar os sentimentos dos personagens. O filme, que tem continuação prevista para início de 2024, é, por si só, um espetáculo contemplativo.
Victoria Louise é jornalista, formada em Crítica e Curadoria da Arte pela PUC-SP.