Ao longo da vasta produção pictórica do pintor Edward Hopper (1882 – 1967), destacaram-se os temas de paisagens e interiores. Seu trabalho pode ser considerado atemporal, devido ao tema da solidão e a carga psicológica das figuras humanas.
Embora tenha retratado uma sociedade do início do século XX, o caráter emocional permite leituras de situações de outros períodos, como, por exemplo, o recente isolamento causado pela pandemia do novo coronavírus, a partir de 2020. O artista criou uma identidade visual ao atribuir silêncio e solidão em suas obras, que refletiam sua compreensão acerca da vida moderna nos Estados Unidos. Esses retratos não posados são incrivelmente capazes de coincidir com a reclusão que a maioria das pessoas foram submetidas durante a pandemia.
Hopper é um pintor interessante a ser analisado pois se manteve na bidimensionalidade e representação realista durante toda sua vida. Chegou a produzir algumas aquarelas, mas foi fiel ao óleo sobre tela. O artista não chegou a romper com as regras formais do classicismo e se expressar, por exemplo, através das vanguardas europeias como cubismo, expressionismo e surrealismo – entre outras – que tomaram proporções mundiais influenciando artistas do ocidente.
Antes de explorar o realismo, em algumas telas, conseguimos ver uma aproximação com o impressionismo através da textura e da menor precisão do pincel. Com isso, suas pinturas diferem-se do hiper-realismo, aquele que omite as pinceladas e realça detalhes minusiosos. Hopper foi influenciado pelo impressionismo durante algumas viagens que fez entre 1906 e 1910, e posteriormente definiu seu estilo como “impressionismo modificado”. O pintor Édouard Manet e o escultor Edgar Degas foram os principais artistas que influenciaram o norte americano, no que tange aos temas da vida urbana.
O artista interpretou de forma original suas emoções e sua compreensão do modo de vida nas grandes cidades, mesmo retratando cenas e locais comuns, como: fachada de restaurante, casas, janelas de edifício, posto de gasolina, quartos, escritórios, cinemas, teatros e até o mar.
Na pintura “Le Pont des Arts“, (1907), Hopper incorpora tons frios e monocromáticos no segundo plano, um recurso que utiliza nos poucos cenários que pinta. A ponte com os pedestres no primeiro plano destaca-se pelos tons escuros e pelas pinceladas soltas e mais expressivas, impossibilitando a identificação e detalhes das figuras.
Em “Morning Sun” (1952), o artista já se apoia em outras técnicas na construção pictórica. Ele teve sua esposa como modelo para pintar essa figura feminina. A luz solar invade o quarto através da janela, e toma a parede vazia e a cama com tons pálidos. Nesta tela, o interesse está na carga psicológica e não exatamente no retrato de sua esposa. Ao sentar-se na cama, apoiando as mãos sobre as pernas e lançando um olhar vago para fora da janela, a personagem indica reflexão e talvez até aborrecimento. A distância e desfoque do rosto da mulher, permite que o observador crie sua narrativa, a partir de múltiplas interpretações.
Ainda que os temas de interior e paisagem pareçam por vezes, simplistas, Hopper cria uma identidade perceptível em suas obras. O enquadramento aproximado da fachada de casa no campo sem vizinhos, aliada ao forte contraste entre luz e sombra, traduz o silêncio típico da vida bucólica estadunidense, como em “House by the Railroad”, (1925).
Mesmo que suas obras demonstrem majoritariamente a solidão como desamparo e não exatamente como uma escolha consciente, o desenho “Woman in Coffee Table” (1906), traz outra perspectiva. A cena exibe uma mulher com expressões faciais e posição corporal fechada, mas, se apresenta confortável, o que indica solitude, que se diferencia por ser propositalmente uma atitude de introspecção, sem a conotação negativa da solidão em si.
Nota-se que o foco está totalmente na personagem, os demais itens rabiscados vão se dissolvendo à medida em que se distanciam, com um claro interesse de chamar atenção do espectador apenas para a figura central.
“Nighthawks“, (1942), foi uma de suas obras mais famosas, servindo até de referência para o seriado Os Simpsons, que reproduziu a cena no episódio 17 da segunda temporada.
A fachada de um restaurante com uma grande janela de vidro, permite avistar os clientes, e um fragmento da rua escura. A claridade da luz na parede no lado direito da tela chama atenção para o garçom que parece atender um casal que não demonstra grande entusiasmo, e embora estejam próximos, seus olhares parecem distantes. Mais à esquerda, Hopper posicionou no centro da tela uma figura masculina de costas e cabeça baixa, como se estivesse encarando seu copo com desânimo.
A falta de comunicação entre os personagens, aliadas às cores sóbrias e linhas retas, constrói uma atmosfera densa e uma cena na qual o silêncio se corporifica como um personagem por si só.
Early Sunday Morning. 1930. Imagem: Google arts & culture.
Na tela “Early Sunday Morning”, (1930), vemos o edifício com lojas e a incidência da luz do sol nesse pequeno recorte da rua, com os estabelecimentos fechados e sem personagens. Esse último é um recurso proposital do pintor. Retirar todas as figuras humanas de um lugar público transforma a maneira como olhamos para o espaço. Quantas vezes encontramos uma rua comercial completamente deserta? Olhar a cena nos faz projetar narrativas sobre os eventos que circundam a imagem.
Em algumas obras o artista retratou cenas através de uma prática chamada “voyeurismo”. A palavra voyeur, tem origem no francês e significa “aquele que vê”, ou seja, uma pessoa que gosta de observar momentos privados e íntimos de outro indivíduo sem participar. Em uma leitura não erotizada, demonstra o interesse dele em retratar diferentes atividades dos moradores da cidade em momentos privativos. Em “Night Windows”, (1928), outro fator nos chama atenção, o ângulo de observação está levemente na diagonal, de cima para baixo. Essa é uma característica recorrente em suas obras, que insere diferentes direções, menos lineares, em maior ou menor grau a depender da imagem.
Sua originalidade foi tamanha, que segundo a doutora em história da arte, Cristina Susigan, o norte americano “foi referência para grandes cineastas apropriarem-se de sua estética e recriarem seus filmes”. Sua influência chegou ao ponto de criarem o termo “hopperiano” para remeter sua iconografia, servindo como inspiração para roteiristas, cantores e escritores. O filme “Janela Indiscreta” (1954) do cineasta Alfred Hitchcock, no qual um personagem entediado observa seus vizinhos pela janela com um binóculo após quebrar a perna e ser obrigado a ficar confinado em casa. Nesta produção é possível identificar semelhanças entre muitos dos ângulos que Hopper desenvolveu em sua pintura, na observação de fragmentos da vida doméstica.
Em “Ground Swell”, (1939), temos um simples veleiro navegando na imensidão e periculosidade do mar. A separação entre céu e mar é dada pela gradação de diferentes tonalidades e intensidades da cor azul. Essa é uma das obras mais iluminadas do artista, com tons claros. De acordo com a socióloga Eva Heller, em seu livro Psicologia das Cores, o azul é uma cor fria e distante, apesar de ser a predileta das pessoas. É interessante observar que, ainda que iluminada, a cena é composta por uma paleta de tons frios e sóbrios como azul, bege, marrom e cinza, além de traços marcados entre luz e sombra, o que confere à cena uma construção em blocos de cor rígidos.
Quando se fala em arte do início do século XX, as vanguardas europeias são mais discutidas do que as demais manifestações artísticas mundiais pelo caráter revolucionário desses movimentos, e por ser considera Paris a capital da arte – fato que muda nos anos subsequentes ao final da Segunda Guerra Mundial. Com a Europa destroçada, Nova York passa a ser considerada a nova capital artística. Os conflitos sociais, políticos e as guerras, impactaram as produções artísticas que refletiam interesses ou críticas aos acontecimentos da época. Nesse sentido, é interessante chamar atenção também àqueles artistas que não se alinharam a manifestos ou coletivos e foram “um ponto fora da curva” na história da arte, que de certo modo, evidencia constantemente e principalmente esses movimentos europeus.
Nos Estados Unidos, devido a situação social e econômica das primeiras décadas do século XX, inferiu na pintura, críticas à arte acadêmica, que valorizava o belo e equilíbrio na composição, com temas em ambientes aristocráticos e de naturezas-mortas. Seguindo essa tendência da arte moderna, os artistas buscam novos temas e linguagens. Edward Hopper, apesar de se manter acadêmico, por não sofrer grandes mudanças em sua expressão pictórica, direciona seu olhar ao cotidiano norte-americano moderno, ainda não muito explorado. O artista, além de trazer essa nova visão, insere sua interpretação melancólica, e provável frustração com a vida moderna na metrópole.
Analisando suas produções a partir de uma ótica atual, a compreensão que o artista tem da sociedade norte americana do início do século XX, converge e retrata drasticamente a angústia que nos acompanhou durante a pandemia do coronavírus, e que ainda se faz presente nesse retorno gradual da vida social e presencial, onde estamos reaprendendo a socializar.
A casa localizada em Upper Nyack (NY), em que Hopper nasceu e morou até se mudar para um apartamento também em Nova York, se transformou em um centro de arte não lucrativo poucos anos após sua morte. Atualmente o Edward Hopper House Museum & Study Center está no registro nacional de lugares históricos dos EUA, com concertos, leituras e eventos especiais acontecendo anualmente, além de diferentes exposições de arte.
No Brasil, obras do artista estarão expostas em uma mostra prevista para agosto de 2022 na Pinacoteca do Estado de São Paulo, uma das maiores instituições culturais do Brasil. A mostra “Pelas Ruas: Vida Moderna e Diversidade na Arte dos EUA (1893-1976)”, trará obras de Andy Warhol, Georgia O’keeffe e Edward Hopper e pretende examinar o crescimento das cidades nos Estados Unidos, através de aspectos sociais, econômicos e de classe na vida urbana estadunidense entre 1893 e 1976.
Daniken Domene é técnico em audiovisual e graduando em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
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