Manoel Canada (São Paulo – 1966), é mestre em Artes Visuais pela Unesp. Com graduação em Artes Plásticas na Faculdade Belas Artes de São Paulo e Filosofia na PUC SP. É restaurador, artista plástico e professor de História da Arte na PUC SP, desde 2007. Nos anos 90 participou como artista do Grupo Santa Ifigênia, dividindo um ateliê no bairro. Foi premiado no salão de artes plásticas contemporâneas Luís Sacilotto em Santo André e premiado no 12 salão de arte contemporânea de São Bernardo do Campo. E realizou uma individual na Pinacoteca de São Bernardo do Campo.
Manoel Canada limpando uma pintura. Registro pessoal.
Artsoul: Para começar, poderia falar sobre como você teve um primeiro contato com as áreas de conservação e restauro?
Manoel Canada: Eu fui fazer a faculdade de Belas Artes com intuito de ser artista. Mas com o tempo descobrimos que nos tornamos artistas no processo. E durante esse processo de conhecimento técnico com a faculdade, eu soube de uma equipe que estava restaurando o Theatro Municipal de São Paulo, que precisava de mão de obra de artistas para executar algumas coisas – isso em 1987. Eu tinha acabado de entrar na faculdade e fui ver o que podia aparecer, pois entre outros amigos da faculdade, um tinha interesse em ser restaurador. Não existia um curso específico na área na cidade de São Paulo e ele entrou na faculdade de Belas Artes para poder ter habilidade técnica. E nós conversávamos sobre isso.
Então fui contratado por essa equipe e aprendi algumas coisas, desde forjar e modelar uma placa de ferro para fazer o portão, até a aplicação de folha de ouro nos metais do teatro. E lá eu conheci um restaurador, ele viu meu trabalho e gostou, e quando acabou o trabalho no Theatro ele me chamou para trabalhar com ele.
Era uma maneira de ganhar dinheiro sendo um estudante que fazia duas faculdades. Lá aprendi mais coisas, desde restaurar uma moldura até limpar telas, remover verniz, reentelar… Aprendi de tudo, e fiquei por lá por muito tempo. Tenho mais ou menos 30 anos de especialização na área.
Mais tarde eu entrei na PUC SP para dar aula no curso de restauro, especificamente na área de pintura mural. Depois de 6 anos nesse curso, eu me transferi para o curso de Arte: História, Crítica e Curadoria para dar aula de história da arte.
Hoje eu ainda presto serviço para alguns ateliês, faço alguns trabalhos, algumas pessoas trazem coisas aqui para restaurar. Então uso meu ateliê um pouco com essa função também, apesar de ser um ateliê de pintura especificamente.
Artsoul: Então na sua carreira as atividades como artista e restaurador estão juntas quase desde o começo. Você acha que o trabalho de restaurador foi determinante para o olhar que você tem para pintura também?
MC: Olha, de um lado sim. Vou te contar uma história. Recentemente, dentro de um programa de televisão sobre a pintura impressionista, comentaram sobre o Renoir. Dizem que ele inicia como impressionista, mas o movimento se dispersou depois de algumas exposições, e cada um vai fazer o seu trabalho. E o documentário dizia que o Renoir faz uma viagem à Itália e vê os grandes Mestres. Ali ele percebeu que ele era péssimo pintor [risos].
Artsoul: [risos] E quando você passou por isso?
MC: Eu passei por isso quando eu fiz a minha primeira viagem à Europa também. É um choque, porque é impecável. E a área do restauro me possibilitou entrar em contato com muitas obras bonitas ao longo de quase 30 anos. Eu já restaurei de tudo, dos artistas brasileiros importantes aos europeus, da escola de Rembrandt a Dalí, Picasso, etc. É legal você pegar essas obras, manipular, retocar, remover verniz.
O papel do restaurador, antes de tudo, é de conservar. Nós restauramos aquilo que se permite restaurar. E existem categorias, com regras dentro da área do restauro: até onde você pode avançar, no que você mexer, etc.
Artsoul: Existe um regulamento?
MC: Existe, mas não existe um consenso. Existem visões diferentes. Por exemplo, existem os restauradores específicos que são figuras relevantes, que trabalham em um museu. E existe um outro lado do restauro que não atende ao museu, mas que atende aos colecionadores – e mesmo que não seja um colecionador, mas alguém que tem alguma obra herdada pela família – uma gravura, uma pintura, etc. Isso é muito comum.
Artsoul: Dentro disso, a maioria dos casos de restauro que você realizou foi para coleções particulares ou públicas?
MC: Coleções particulares. No caso, eu nunca trabalhei como conservador em um museu. Sempre foi em um ateliê particular. E chega de tudo para restaurar, de biombo japonês/chinês, jóias, esculturas, pinturas e gravuras, desenhos, fotografias, etc. A prática do ateliê te possibilita entrar em contato, pesquisar e ver procedimentos. Nós usamos procedimentos muito próximos um do outro, vendo a fragilidade do suporte, por exemplo.
Mas existem algumas coerências. Sempre olhamos a pintura pelo verso, além da frente. O verso nos conta muita coisa, a gente consegue identificar se a obra realmente é antiga, se o chassi foi removido ou trocado, como está o suporte, se a pintura já foi reintelada…
Manoel Canada restaurando uma tapeçaria. Registro pessoal.
Conseguimos fazer várias avaliações que chamamos de organoléptico – que seria um exame sem nenhuma relação química. Ou seja, apenas com os seus sentidos, você faz uma pré avaliação visual, do cheiro, do possível ruído de cupim, de alguma broca que tenha no quadro ou numa peça de madeira.
Geralmente os colecionadores têm o olhar mais atento a isso. Porque as obras precisam passar por uma conservação para não deteriorar. E se deteriora você precisa de restauro, entende?
Artsoul: Então podemos falar de dois protocolos: de conservação e de restauro. Dentro deles existem alguns procedimentos padronizados?
MC: Dentro das artes visuais as categorias são bem distintas. Por exemplo, na pintura mural não se restaura, se conserva o máximo que puder. Numa pintura óleo – a não ser que tenha uma perda muito grande – isso não se faz.
No Museu do Prado, por exemplo, tem um quadro que foi retalhado e perdeu várias partes, e eles têm três ou quatro quadrinhos que compõem uma cena – foram cortados e emoldurados separadamente. Eles não agregaram nada, mostraram só o jeito que é – porque não se tem um todo, não dá para você agregar. Agora, quando são partes faltantes, pequenas lacunas, cantos, um rasgo que você não perdeu muita coisa, você integra, você retoca mesmo, porque tem como remover.
Já na arte imaginária – que são os santos -, como regra você não agrega. Perdeu, perdeu. Agora, no particular, as pessoas não querem os santos com partes faltantes. Porque geralmente são imagens devocionais ainda. Não é necessariamente uma “obra de arte”.
Artsoul: A relação é outra, certo?
MC: A relação é outra com o objeto. A gente vê um Aleijadinho hoje como uma obra de arte. Uma obra dele pode estar realmente sem uma mão porque não dá para agregar nada, porque é algo original. Agora, um santo que perdeu alguma parte, geralmente querem que integre, e quase todos os ateliês integram. Eu pelo menos não conheci nenhum até hoje que não integrasse.
Manoel Canada e uma obra sacra. Registro pessoal.
MC: Tem uma história muito interessante sobre essa questão do restauro, acho que pode ser bem ilustrativa.
O Michelangelo iniciou a carreira falsificando peças. Existe uma história de que ele enterra com iogurte e fezes uma peça para ela poder manchar, criando toda uma situação de deterioração do mármore. Depois ele escavou e vendeu como relíquia, como antiguidade. E descobriram depois de algum tempo que aquilo era falso, mas o comprador – que pertencia ao clero – percebeu que a peça era tão boa, que Michelangelo era um grande escultor, e queria conhecê-lo. E assim ele entra no meio das artes da igreja, até chegar no Vaticano.
Quando Michelangelo estava no Vaticano fazendo o túmulo do Júlio II, recebeu uma ordem do Papa – tinham achado próximo do Vaticano uma escultura antiga, possivelmente grega, e o Papa tinha interesses na peça, mas queria saber a autenticidade. E como o Michelangelo era um escultor, o Papa acreditava no conhecimento dele. Quando ele vê, fica abismado, era autêntico – uma peça muito particular, porque até então não tinha nenhuma como aquela, que é o Laocoonte.
Laocoonte e Seus Filhos. 27 b.c. – 68 a.d. Reprodução Epoch Times.
Quando acharam a escultura, estava toda quebrada, o Papa comprou e escolheu Rafael [Sanzio] para organizar o restauro. Veja, um artista foi fazer um restauro. Não propriamente o restauro, mas definiu qual seria o procedimento a ser tomado, e um ateliê executou a obra.
E levantou-se uma discussão, porque no Laocoonte não foi encontrado um braço todo a partir do ombro – não existia. Tinha toda essa estrutura do corpo levantada, então eles sabiam que o braço estava para cima. Decidiram fazer uma prótese do braço, já que tinha sido perdido. E como seria o braço do Laocoonte?
Na discussão todo mundo achava que ele estava com o braço erguido, em posição de glória – e Michelangelo questionou essa escolha e falou que a figura estava se defendendo – o braço estava erguido, mas ele estava se defendendo, e não se louvando. Então ele pôs em xeque essa questão, só que de uma maneira ou outra o braço erguido venceu, e foi colocado.
Em 1950, no mesmo terreno, na mesma região, encontraram um cotovelo. E foram ver… era do Laocoonte. Não tinha a mão. Vinha do ombro até o antebraço, era uma pedra só que se perdeu, mas estava de modo a comprovar a tese de Michelangelo. E aí retirou-se a prótese e colocaram a parte encontrada. Removeram todas as partes que eram falsas – porque os filhos do Laocoonte tinham mãos também perdidas e puseram próteses. Algumas obras passaram novamente por restauro para conservar aquilo que é original.
Tanto que depois isso virou regra. Você não inventa um falso testemunho – se é uma parte muito grande, uma lacuna muito grande como um braço, você não inventa. Essas próteses aos poucos se tornaram um problema, porque iam colocando em todas as esculturas – ou às vezes achavam um braço e colocavam em uma escultura que cabia… Faziam os frankenstein das estátuas gregas. Isso já vinha sendo discutido desde o século XIX – que é quando o restauro ganha força. E vem sendo discutido até os dias de hoje em seminários, congressos, etc.
Artsoul: Vamos falar mais dos processos técnicos de conservação e restauro?
MC: No restauro de pintura se fala muito de veladuras, porque a gente remove o verniz de cobertura. E as veladuras são as camadas. Às vezes os artistas utilizavam verniz junto com tinta para pintar – e como você vai remover o verniz?
Geralmente quando removemos o verniz, a tinta permanece. Claro, se o produto químico usado for muito abrasivo, ele pode começar a derreter a tinta. Então nós neutralizamos o produto até um momento em que ele não remove mais a tinta e consegue remover apenas o verniz.
Remoção de verniz em uma pintura, por Manoel Canada. Registro pessoal.
Existe todo um processo de experimentação de efeito e causa até chegarmos em uma fórmula de equilíbrio de um coquetel de produtos químicos de mistura, para poder remover os vernizes. E tem que tomar muito cuidado com essas veladuras, principalmente de quadros muitos antigos que usavam realmente esse método.
Hoje as pessoas quase ignoram esse procedimento de veladura – na arte contemporânea, podemos dizer. Mas dentro do contexto de uma arte que vem do século XV, que passa até o século XIX, era muito comum. E como a tinta se mistura com o verniz, ela sai mais facilmente.
Artsoul: Isso explica porque a Monalisa não tem o verniz removido?
MC: Exatamente, porque nós não sabemos quanto de veladuras ali tem derramadas, de tinta que pode se dissolver da remoção do verniz. E como a gente acredita que podem surgir materiais mais adequados, às vezes algumas obras ficam esperando até aparecer um procedimento confiável para remover o verniz sem prejudicar nada da pintura.
E ela tem uma aura já com aquela pátina do tempo. Foi o que aconteceu com Michelangelo no teto da Capela Sistina e depois no Altar do Juízo Final, e eles fizeram um procedimento que foi descoberto na época que era um gel. Você põe um produto químico nesse gel que você não precisa colocar muito que a gente trabalha com um palito com algodão, e a gente faz aquele mergulho no produto químico e vai passando sobre o verniz e remove. E foi uma surpresa. Ficou super colorido. Porque imagina, aquilo tinha 400 anos de fuligem de vela, sujeira, poluição. Então é um susto realmente.
No início que eu trabalhava com restauro, essa relação de remover verniz chegavam alguns quadros com verniz tão oxidados tão velhos, que um deles – eu lembro até hoje, era uma Marinha – você não via quase nada e quando eu venho limpando quadro apareceu um barquinhos navios no fundo e que não dava para ver.
O restauro me deu uma compreensão também paralelamente à estrutura do quadro. Aquela camada de gesso, a inclinação, a camada pictórica, o verniz, os procedimentos – retomando a sua pergunta sobre minha relação como artista e restaurador -, eu acho que o restauro me deu algumas soluções. A proximidade com obras de arte me fez ver melhor as referências, tive que retocar muita coisa, você tem que aprender a ver que tinta que o artista misturou. Isso te dá possibilidades de compreensão – e como eu sei misturar a tinta isso também me auxilia muito no retoque.
Outra coisa que me ajuda de uma maneira são as aulas de história da arte e o conhecimento sobre os artistas, que me leva a compreender melhor cada obra. Por exemplo, algumas tintas foram descobertas no século XIX, não existia antes então você já vê se o quadro é falso se tem lá no azul da Prússia – que foi descoberto no século XIX – o quadro não tem mais do que 200 anos. Antes disso não tinha essa tinta, então aí com a análises, você vai descobrindo coisas.
Artsoul: Isso exemplifica como essas profissões não são estritamente manuais.
MC: Mostra que não é uma profissão apenas tecnicista. Para você ser um restaurador você precisa de outra bagagem paralela. Só saber que misturar produtos químicos não basta. É uma profissão de risco. Quem vai remover o verniz da Monalisa?
*Esta entrevista foi concedida por Manoel Canada em seu ateliê e gravada em fevereiro de 2022.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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