Paul Cézanne (1839 – 1906) – reconhecido por críticos e historiadores como “o pai da arte moderna”, nasceu e morreu em Aix-en-Provence – França, cidade inúmeras vezes retratada em suas pinturas. O pintor não foi compreendido em sua época e recebeu maior reconhecimento após a morte.
Desde jovem, Paul Cézanne tinha um temperamento introvertido, de poucos amigos, carrancudo e depressivo. Seu pai era um chapeleiro estabelecido e chegou a abrir o primeiro banco de Aix-en-Provence, principal fonte da renda de Cézanne, que não enfrentou grandes preocupações financeiras – fato relevante que favoreceu sua dedicação e pesquisa artística.
Antes de se dedicar à pintura, Cézanne estudou direito e trabalhou no banco da família por imposição paterna. Em 1861, interrompeu o curso e aos 22 anos fez sua primeira viagem para tentar a vida como artista em Paris. Não conseguiu se estabelecer no meio artístico e, devido a uma forte depressão, destruiu todas as suas telas e voltou para Provence. Após um ano de tédio trabalhando no banco, ele decidiu voltar para Paris, onde, posteriormente, constituiu uma família e viveu boa parte da vida.
Segundo o museu Kunstmuseum Bern, na Suíça, o artista pintou cerca de 150 retratos, e entre eles, cinquenta autorretratos. Em Self-portrait with Palette, (Autorretrato com Paleta) Cézanne retrata sua atividade diária. A atenção de seu olho direciona-se à tela posicionada no plano direito da pintura. O terno escuro contrasta com o fundo em tons mais claros. A cor da madeira do chassi, apresenta a mesma paleta tonal de seu rosto, possibilitando uma bela analogia da fusão entre o pintor e sua paixão: a pintura.
Além de sua personalidade excêntrica e solitária, em carta escrita ao amigo e mestre Camille Pissarro em 1876, Cézanne relata: “Se os olhos das pessoas ao redor daqui pudessem lançar flechas mortíferas, eu já teria ido há um bom tempo. Eles não gostam do meu estilo.” A data do relato é próxima de seu autorretrato acima, no qual Cézanne aparece calvo, barbudo e sério, encarando fixamente o espectador, com roupas sem muita definição na pintura. Ao fundo, são vistas formas orgânicas e irregulares em tons de vermelho, bege e laranja, assemelhando-se a um papel de parede.
Cézanne não foi famoso e tampouco reconhecido como pai da modernidade em vida. Ele participou de algumas exposições impressionistas em 1874 por intermédio do artista Pissarro, entre outras, sem muito destaque. Ao longo da vida trabalhou sozinho, sem alunos, sem admiração da família, sem incentivo por parte da crítica. Se inscreveu e foi recusado algumas vezes no Salão de Belas Artes, organizado pela Escola de Belas-Artes de Paris – evento em que eram exibidas as obras admiradas na época. Foi aceito apenas no Salão de 1882, expondo um retrato.
Em 1895, aos 46 anos, Cézanne teve sua primeira exposição individual, organizada pelo Marchand e galerista Ambroise Vollard – também foi Marchand de Renoir, Gauguin, Matisse, entre outros. O galerista foi uma figura relevante no cenário artístico e contribuiu para o reconhecimento do pintor.
Cézanne não tinha um grande público admirador, sua obra foi compreendida principalmente por outros jovens artistas, entre eles Maurice Denis, Émile Bernard e Pablo Picasso. Seu título de “pai da modernidade” não foi à toa, ele foi uma grande inspiração para outros artistas, incluindo Picasso que disse: “Ele é mesmo o pai de todos nós”. Picasso identificou e levou a estrutura geométrica de Cèzanne a um outro patamar, em uma desconfiguração e geometrização completa do objeto, desenvolvendo o cubismo – uma das maiores rupturas da arte moderna.
Hommage à Cézanne (Homenagem à Cézanne) é um óleo sobre tela de Maurice Denis, o qual foi um dos defensores da obra do artista provinciano e também um dos artistas que faziam excursão para ateliê de Cézanne em Aix-en-Provence – já no final de sua vida. O quadro de Denis apresenta figuras importantes ao redor de uma natureza morta de Cézanne, fixada em um cavalete. Entre as figuras retratadas encontra-se os artistas Odilon Redon, Édouard Vuillard, Paul Sérusier, Paul-Élie Ranson, Ker-Xavier Roussel, Pierre Bonnard, o crítico André Mellerio, o galerista Ambroise Vollard, e o próprio Maurice Denis e sua esposa, Marthe Denis.
A valorização de sua obra se deu postumamente. Uma tela de Cézanne foi a protagonista do maior valor pago por uma obra moderna até outubro de 1958, data do leilão que ocorreu na casa de leilão Sotheby, em Londres. A pintura Boy in a Red Waistcoat (O rapaz de Colete Vermelho) foi adquirida pelo colecionador norte americano Paul Mellon, por 616 mil dólares.
Cézanne raramente pintava retratos com modelos que não fossem seus familiares. Boy in a Red Waistcoat faz parte de uma série em que ele fez quatro telas retratando diferentes poses do italiano Michelangelo di Rosa. O figurino do jovem se confunde com as formas do cenário, onde é possível identificar o encosto de uma cadeira no canto inferior esquerdo, e a cortina que toma toda a extremidade direita da obra. O jovem aparece em pé, com a mão na cintura – pose comum em retratos de nu -, o colete vermelho centralizado destaca-se do resto da composição cromática.
Cézanne produziu inúmeras pinturas com o tema de natureza morta, gênero já representado em séculos passados, em que o artista monta o cenário com frutas, alimentos, flores, animais, utensílios, instrumentos, entre outros objetos. Cézanne pintou diversas telas com esse tema, variando os elementos como: cebola, laranja, maçã, vaso, jarra, garrafa, escultura, toalhas, entre outros.
The Blue Vase (A floreira Azul) é um exemplo ímpar de natureza morta, no qual apresenta simultaneamente uma composição simples e complexa. O vaso azul ligeiramente inclinado para a esquerda se destaca do resto da composição. No arranjo, borrões que formam flores brancas, vermelhas, roxas, brotos laranjas e alguns galhos. Na folhagem verde se vê maior precisão do pincel. Todos os elementos apresentam mínima distorção diagonal, exceto a garrafa incompleta, na lateral esquerda, peça que inclusive auxilia a visualizar a falta de perspectiva linear da mesa, dos objetos e até do fundo.
As cores saturadas das flores são harmônicas e formam uma composição surpreendentemente agradável. Cézanne também é famoso pela saturação em suas telas, termo em que se refere à intensidade da cor. À medida que a saturação aumenta, as cores parecem mais puras.
A adorada cidade natal de Cézanne foi outro tema frequente em sua obra. Ele chegou a pintar a montanha Sainte-Victoire em 44 telas a óleo e 43 aquarelas, em diferentes ângulos e cores. Algumas pinturas de natureza são mais naturalistas, detalhadas e com elementos como casas e estradas, como em Mont Sainte-Victoire with Large Pine (Montanha Sainte-Victoire com grande pinheiro).
Aos poucos sintetizou sua busca apenas nas formas e cores, formando composições expressivas. As pinceladas soltas e fortes dificultam a identificação dos elementos da paisagem, a terra, a vegetação e as construções se misturam, sendo identificadas pelas cores e diferentes direções da pincelada, como é possível ver nas representações da montanha nas imagens abaixo.
A vida pessoal e, principalmente a sexualidade do artista, não implicam na qualidade e no resultado de sua produção, esses aspectos, no máximo impactam nos temas retratados. Entretanto, é uma questão relevante sociologicamente, pois ainda vivemos em uma sociedade homofóbica. Nesse sentido, Cézanne protagoniza uma vida amorosa instigante e misteriosa.
Em 1869 ele conheceu Hortense Fiquet, com a qual manteve um relacionamento escondido da família por cerca de 17 anos. Ela foi o primeiro e único envolvimento sério do artista e, segundo trecho publicado no livro Os Grandes Artistas, ele “jamais se sentiu à vontade na companhia de mulheres, pois temia que elas o aprisionassem.”
Em 1872, nasceu Paul, o único filho do casal. Cézanne manteve a família em segredo até 1886, ano em que se casou oficialmente com Hortense. Mesmo antes e depois de assumir a família, não configuraram uma relação típica, por diversos períodos moraram em cidades e residências diferentes, ainda assim, ele sempre os sustentou com a mesada que recebia do pai.
Desde a infância, Cézanne criou fortes laços de amizade com o escritor Émile Zola (1840 – 1902). O artista rompeu a amizade em 1886, após se identificar com a personagem principal do romance L’ouvre (A Obra), escrito por Zola, no qual narra a vida de um artista fracassado, “o pintor Claude Lantier que, apesar do esforço e tenacidade, não alcança nenhum resultado positivo em seu trabalho: é um confuso, enfim, um maluco fracassado que termina por se enforcar no seu próprio ateliê.” Ao se identificar com a personalidade do personagem, e até fatos reais vivenciados juntos, Cézanne mandou uma carta de agradecimento pelo presente sem comentar o dissabor e, a partir disso, eles não voltaram a ter nenhum tipo de contato.
Zola chegou a afirmar que eles tinham personalidades opostas e se aproximaram “em virtude de afinidades secretas”. Conta-se ainda que, quando Zola partiu para Paris em 1858, deixou Cézanne em profunda depressão – até então, Cézanne não havia se mudado para Paris, o que ocorreu apenas em 1861.
O filósofo Merleau-Ponty em seu capítulo A dúvida de Cézanne, – título que refere-se a dúvidas pictóricas do pintor – relata que o artista atravessou uma paixão ardente e atormentada durante seis meses, aos 46 anos. Além disso, o filósofo conta que o desfecho não é conhecido e “do qual não falará nunca”. Ainda que não haja como constatar a sexualidade do artista, essas e outras pontas soltas sobre sua vida intrigam e possibilitam questionamentos.
Na tela Paul Alexis Reading a Manuscript to Zola (Paul Alexis lendo um manuscrito a Zola) – pertencente ao MASP – Cézanne pinta uma cena de lazer entre seus amigos. Embora a figura de Zola esteja em um segundo plano, chama mais atenção pelo ponto de luz que Cézanne captou, suas vestes se dissolvem no acolchoado, ambos de cor branca, as pinceladas escuras e soltas definem e diferenciam sutilmente os elementos: o paletó, as luvas, a posição das pernas, a almofada e o estofado. Posicionado na esquerda, Paul Alexis lê um manuscrito, objeto que na pintura de Cézanne, é formado por pinceladas expressivas. O terno escuro de Alexis entremeia-se com a cadeira, representada praticamente por rabiscos alaranjados.
Em carta à Zola, em 1866, Cézanne escreveu: “As telas pintadas dentro de um estúdio nunca foram tão boas quanto as feitas ao ar livre”. Desde a década de 1870 o artista produziu ao ar livre, premissa do impressionismo. Cézanne chegou a assimilar e se aproximar desse movimento, mas não por muito tempo, ele se interessava mais pela estrutura e formas dos objetos e natureza do que no movimento, luz e cor – como os impressionistas.
Cézanne e os demais pós-impressionistas, Vincent Van Gogh e Paul Gauguin receberam essa atribuição após a morte, o responsável pelo título foi o crítico inglês Roger Fry, a partir da exposição que organizou “Manet e os pós impressionistas”, em 1910, nas Grafton Galleries, em Londres. O pós-impressionismo compreende o período entre meados de 1880 e 1907, até o surgimento do cubismo.
Enquanto os impressionistas se interessavam pelo movimento, luz e reflexo das cores, os pós impressionistas buscavam aspectos técnicos e científicos, além da pesquisa estilística. Cézanne declarava: “Tudo na natureza modela-se como cilindros, esferas e cones”.
A dedicação e paixão do artista pela arte, foi de certa forma a causa de sua morte. No final da vida viveu mais solitário que nunca, dedicando-se totalmente à pintura. Em outubro de 1906, pegou uma forte tempestade enquanto pintava ao ar livre, adoecido, sua condição se agravou para uma pneumonia, levando-o a óbito uma semana depois.
Atualmente o ateliê do artista, localizado na estrada Les Lauves, em sua cidade natal, se tornou uma casa-museu aberta ao público, com esboços, desenhos, móveis e objetos que utilizava para suas pinturas.
A obra do artista francês está presente em diversos museus conceituados ao redor do mundo, como: Musée d’Orsay, em Paris, França; The Metropolitan Museum of Art, em Nova York, EUA; Kunstmuseum Bern, em Berna, Suíça; National Gallery of Art, Washington, EUA; Masp, em São Paulo, Brasil, entre inúmeros outros museus e coleções particulares.
Daniken Domene é técnico em audiovisual e graduando em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
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