Flávia Junqueira (São Paulo, Brasil, 1985) lida principalmente com fotografia. Seus trabalhos constam em acervos como MAM-SP, MIS-SP, MABFAAP, Museu do Itamaraty, RedBull Station, World Bank e Instituto Figueiredo Ferraz. Doutoranda pelo Instituto de Arte da Universidade Estadual de Campinas- UNICAMP, mestre em Poéticas Visuais pela Universidade de São Paulo e Bacharel em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, a artista cursa também a pós-graduação em fotografia na FAAP. Já participou de projetos e exposições em cidades brasileiras e em outros países, como França e Lituânia.
ArtSoul : A fotografia encenada é o gênero predominante na sua produção. Poderia nos contar um pouco sobre esse gênero e como suas ideias se materializam nele?
A fotografia encenada ou fotografia construída constitui o que podemos chamar de um tipo ou gênero fotográfico, que surge com essa nomenclatura a partir dos anos 1980, fortemente usado na época por curadores e exposições de arte.
(Vale ressaltar que a fotografia encenada, como forma de expressão, existe desde o surgimento da própria fotografia, mas nessa época ainda não era um gênero).
A fotografia encenada é aquela que na maioria das vezes é vista ou descrita como uma fotografia que foi “montada”, porque para sua elaboração todos os elementos reproduzidos, até mesmo o ângulo da câmera, são reunidos, produzidos e planejados previamente, exclusivamente para o quadro fotográfico, com o o intuito de expressar uma idéia (conceito) elaborada muito antes do clique.
Como um dos conceitos da minha pesquisa é falar sobre teatralidade e criar realidades diferentes do senso comum, assim como, pretende mergulhar nas memórias de nossa infância e reconstruir imagens com características de fabulação, magia e encenação, obviamente a fotografia encenada passou a se tornar um instrumento essencial para eu criar as imagens, pois ela me permite criar deslocamentos, colagens e cenas que não existem no mundo real.
ArtSoul : Nos vídeos de making of de suas fotografias, podemos ver um intenso trabalho em equipe. Quais profissionais estão envolvidos no processo de planejamento e execução de uma fotografia encenada? Quanto tempo todo esse processo demanda geralmente?
Sim, o processo da realização das fotografias encenadas não é solitário, eu trabalho com uma equipe que se consolidou ao longo dos anos. Costumo dizer que é um trabalho muito próximo a uma produção de direção de arte: Tenho um assistente direto para a parte de comunicação e agenda, um assistente para execução e produção de materiais e locações para as fotografias, um fotógrafo que nos acompanhada para realizar os registros em vídeo e fotos do making of dos trabalhos, um asistente de fotografia e iluminação para a foto encenada e eu que entro em todas as etapas: criação, pré-produção e produção das imagens. A pós-produção também é feita por outra pessoa, que cuida do tratamento de imagem. Em casos específicos onde preciso da habilidade de algum outro profissional, eu agrego pontualmente a equipe da locação; por exemplo, quando a foto demanda bolhas de sabão, eu chamo um terceiro técnico para realizá-la, etc. O processo do começo ao fim da produção demora de 1 a 3 meses, dependendo da imagem. O processo só da captação da imagem dura em torno de 8 a 12h em uma locação, podendo repetir o numero de dias, se necessário.
ArtSoul : Além da fotografia, você também já trabalhou com performance e instalações. Como funciona a elaboração de projetos entre essas diversas linguagens?
Sim, há muitos trabalhos que abordam outras linguagens, principalmente instalações ou objetos. A parte da criação desses projetos é semelhante às outras, pois são todos trabalhos de arte em que desejo dividir minhas idéias com o espectador, então independente do suporte a ser trabalhado, eu anoto e desenho tudo em cadernos.
Sobre a parte da elaboração, é bastante semelhante também, porque no fundo minhas fotografias encenadas são nada mais que instalações ou cenários realizados para o clique fotográfico. Ou seja, ambos demandam um conhecimento de materiais e adereços reias. De todo modo, quando faço uma instalação de grande escala, como a que está atualmente em cartaz no Farol Santander, sempre há uma montagem duradoura, com equipe técnica profissional, segurança e cuidados de manutenção diários.
ArtSoul : O universo da infância é central em sua poética. O que te levou a adentrar esse universo e trazê-lo na sua produção visual?
O que me levou entrar nesse universo não foi o assunto “em si” da infância e sim o que ele me propõe: Sempre me senti declinada a pensar em realidades alheias ao nosso cotidiano comum, assim como também, sempre tive um interesse forte pelos elementos mágicos, teatrais e cenográficos. Quando era adolescente e jovem, continuava a gostar muito dos objetos e atividades das crianças, porque eram sempre divertidos, leves e sem preconceitos; quando entrei na faculdade de artes plásticas, estudei cenografia teatral com J.C Serroni e entrei no mundo de “faz de contas” dos cenários teatrais. Todo esse universo sempre me conquistou energeticamente e visualmente.
Buscar saídas para nosso cotidiano comum, através dos elementos lúdicos e atípicos, sempre foi um caminho para falar de nossas memórias, lidar com nossos medos e principalmente criar estratégias para lidar com a morte e com nossos traumas, a consciência da finitude das experiências, relações, etc.
A infância, essa fase em que parece estarmos em suspensão mágica, onde posso idealmente sonhar ser quem eu quiser, sempre me acolheu para recriar esses mundos avesso ao senso comum. Estudá-la e me apropria-la é a maneira que tenho buscado para me distanciar de algumas realidades e criar outras.
ArtSoul : Muitos dos cenários criados para as fotografias são montados a partir de objetos de coleções, como brinquedos, por exemplo. Quando você começou a colecionar esses objetos, e o que mais se encontra nessas coleções?
Coleciono brinquedos desde criança, mas minha coleção se intensificou quando comecei a ganhar minha independência, já mais velha. Essas coleções são compostas principalmente por bonecos, carrosséis e cavalinhos de carrossel, dos quais sou completamente apaixonada. Normalmente guardo em vitrines e cristaleiras, algo que trouxe da minha família, que sempre gostou de mobiliários antigos, quadros, bibelôs, etc. Os objetos que aparecem nas primeiras fotografias, assim como os figurinos usados, estão todos guardados como uma espécie de “coleção” de matérias, dos quais muitas vezes empresto para amigos que trabalham com publicidade ou uso nas aulas de fotografia encenada quando leciono na SP escola de teatro ou SESC.
ArtSoul : Nos conte um pouco sobre os critérios de escolha dos locais onde realiza as fotografias. Qual relação sua poética busca estabelecer com esses lugares?
A primeira série de trabalhos em que os balões passam a ser o protagonista da imagem foi nos principais teatros do Brasil, essa é uma catalogação de Teatros históricos, que ainda está aberta em processo, e começou há 2 anos atrás. O critério nesse caso é encontrar os Teatros mais relevantes do nosso país, cuja época em que foi construído, na maioria datados séc. XIX, em que a arquitetura e conservação, apresentavam verdadeiras fábulas visuais e conceituais sobre um período determinado da história do país. Independente dos Teatros, a maioria dos espaços escolhidos (edifícios, salões, igrejas, monumentos) tem características marcadas por serem na maioria das vezes, símbolos culturais, históricos, tombados ou de grande relevância para uma cultura específica.
A relação que busco estabelecer vem principalmente em duas mãos, num primeiro momento desejo me apropriar desses espaços em que a memória do passado e magia da teatralidade estão fortemente presentes e reafirma-lós como potencia, pois muitos desses locais estão abandonados ou a grande maioria das pessoas nem sabe que eles existem. Por outro lado, ao inserir objetos como balões ou elementos lúdicos da infância, reitero uma desconstrução e crio um deslocamento do que se espera comumente encontrar ali, abrindo a criação de novas camadas de realidades, mais próximas da fabulação, sonho e fantasia. É uma maneira de olhar para nosso passado e ao mesmo tempo reinventa-ló.
ArtSoul : Nas suas fotografias produzidas em grandes espaços públicos, como os teatros, não há presença humana. Em tempos de isolamento social, estes espaços permaneceram fechados. Este período te trouxe reflexões, novos olhares para sua produção, ou mesmo ideias para novos trabalhos?
O período de isolamento foi bastante duro no sentindo de que foi um abalo emocional e muito ameaçador para todos, ainda estamos vivendo esse momento, então tudo é muito incerto. Durante o isolamento, algumas reflexões vieram à tona, mas principalmente a convicção de que lidar com o vazio e o silêncio reiterou minha vontade de estar presente no mundo através de um trabalho em que a imagem pode falar mais alto que o seu conceito, e está tudo bem, ou um trabalho que alcança diferentes públicos, e não só ao circuito da arte. Para mim isso que gera força, liberdade e construção de novos caminhos, sem julgamentos.
Obs: durante a pandemia Realizei um projeto intitulado “palco presente” com a prefeitura de São Paulo, em que eu entrava nos teatros vazios da cidade de São Paulo, e os coloria com a “presença” dos balões, trazendo essa poética da magia para um momento obscuro. Estar ali foi muito forte, pois tudo estava realmente muito abandonado, os operadores técnicos que trabalhavam nos teatros estavam tristes, sem trabalho, e essa experiência me marcou muito.
ArtSoul : Como você vê a relação entre a arte contemporânea e as crianças atualmente? Seu trabalho busca uma aproximação com o público infantil também?
Acredito que de modo geral, a relação das crianças com o contato com a arte contemporânea e o aprendizado nas escolas, ainda é distante e raro, mas ao mesmo tempo vejo pontualmente a formação de mais grupos independentes e escolas dedicadas a levar as crianças em galerias, ateliês de artistas e exposições que tratem de uma produção mais recente. Particularmente, por trabalhar com esse tema, eu busco uma aproximação direta com as crianças, tanto no sentido de estar sempre em contato e manter conversas com crianças, assim como produzir material educativo nas minhas exposições e fazer oficinas para apresentá-las meu trabalho, pois elas também são um público que desejo formar.
ArtSoul : Por último, poderia nos falar sobre o que você tem produzido recentemente, e se tem planos para os próximos meses?
Tenho dado sequência a catalogação dos Teatros Brasileiros, e também focado na exposição que está em cartaz no Farol Santander São Paulo, pois estou aprendendo muito ao observá-la. Também estou paralelamente produzindo alguns projetos e parcerias para fora do país, ainda de longe, pois não é permitido sair do Brasil. Para os próximos meses estou produzindo a próxima exposição REVOADA que será em Porto Alegre, no farol Santander do Sul, mas com trabalhos diferentes dos apresentados em São Paulo.
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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