Em uma rua tranquila no bairro do Real Parque, na região do Morumbi, casarões se escondem por trás de grandes muros e calçadas arborizadas. Em meio a esse cenário, uma construção do início da década de 1970 se destaca: é a residência da arquiteta e designer Chu Ming Silveira. A cerca de 20 minutos deste endereço, já no bairro do Campo Belo, outra casa gera curiosidade em quem a cruza – dessa vez, em uma via bem mais movimentada, onde restaurantes, academias e farmácias provocam um entra e sai constante. É o local onde viveu e trabalhou a artista Tomie Ohtake.
No último domingo essas duas raridades da arquitetura paulista foram abertas para visitação na mostra de arte e design Aberto3. Ultrapassando o circuito tradicional de museus e galerias, o projeto tem como objetivo promover exposições itinerantes em espaços nunca abertos ao público. Em sua primeira edição, ocorrida em 2022, a Aberto ocupou o único projeto residencial de Oscar Niemeyer em São Paulo, que fica localizado no Alto de Pinheiros. Depois, em 2023, ocupou a Casa Domschke, projetada por Vilanova Artigas no Alto da Boa Vista, com obras até então inéditas assinadas pelo arquiteto. Em apenas cinco semanas de exibição, as mostras alcançaram um público de aproximadamente 8 mil visitantes.
Agora, em 2024, além de ampliar a exposição para que ela aconteça simultaneamente em dois lugares, o trio de curadores formado por Filipe Assis, Kiki Mazzucchelli e Claudia Moreira Salles escolheu, ainda, 150 obras de diferentes períodos para cada espaço. Na residência de Chu Ming Silveira, o foco é dado à uma seleção de Masters e arte pré anos 2000, com produções de artistas renomados como Tunga, Lygia Clark, Amelia Toledo, Mira Schendel e Judith Lauand. Já na casa-ateliê de Tomie Ohtake, a arte contemporânea rouba a cena e estabelece diálogos com o estilo arquitetônico dos Ohtake. Nomes como Allan Weber, Luísa Matsushita, Luiz Roque, Luiz Zerbini, Torkwase Dyson e Arlene Shechet marcam presença no local.
Com os imóveis vazios, sem quaisquer mobílias ou itens de decoração, o uso do concreto em estado bruto – um traço central na arquitetura brutalista – fica ainda mais evidente. Assim, as moradas das duas arquitetas imigrantes asiáticas (Chu vinda de Xangai, na China, e Tomie de Kyoto, no Japão) servem como plano de fundo para obras de arte que se apropriam dos ambientes, complementando suas histórias e atmosferas únicas.
Silveira é conhecida por ter criado, em 1972, aos 30 anos de idade, o design do orelhão telefônico, um aparelho de uso público que perpetuou nas ruas brasileiras por muitos anos, até ser descontinuado pela chegada da telefonia celular e da internet sem fio. É claro que, em sua casa, o antigo ícone das cidades não poderia ficar de fora: o orelhão aparece na área externa, ao lado da piscina redonda e de outros elementos que remetem à vida náutica, uma referência aos anos que a designer passou em Ilhabela, no litoral de São Paulo.
Na sala de estar da casa, acessada por escadas, foram colocadas obras de grandes mulheres, algumas das quais o reconhecimento pela história da arte foi tardio – como nos casos de Carmen Herrera, Eleonore Koch e Anna Maria Maiolino (esta última homenageada com o Leão de Ouro pela Carreira na 60a Bienal de Veneza). Elas dialogam com outros nomes célebres da cultura brasileira, como Maria Leontina, Lygia Pape e Wanda Pimentel. Ao fundo, no jardim, uma única escultura se mistura às flores e aos bambuzais: “Àngel”, do mexicano Pedro Reyes, formada por rochas vulcânicas.
Um rebaixamento no nível da construção acompanha a área íntima da casa. Os quartos misturam obras quase hipnóticas como uma pintura de Luiz Sacilotto e um “Aparelho Cinecromático” de Abraham Palatnik com o “Palíndromo Incesto” de Tunga e suas pinturas minimalistas. Na sala de jantar, obras inteiramente brancas contrastam as cores do ambiente anterior, e um tipo de ruína arquitetônica é marcada na cozinha pelos “Arabescos barrocos” de Adriana Varejão. No térreo, há três projetos de Alan Chu, um dos filhos da arquiteta. São mesas de estética minimalista que brincam com suas próprias sombras. Elas foram dispostas onde antes era a garagem da família e o escritório de Clóvis, viúvo de Chu.
Uma diferença autoral marca as duas casas. Enquanto o imóvel do Morumbi foi projetado pela própria Chu Ming Silveira para viver com o marido e os filhos, a de Tomie, no Campo Belo, foi desenhada pelo filho mais velho, Ruy Ohtake. Embora ambas as edificações sigam características do estilo brutalista, algumas distinções podem ser feitas entre elas, a começar pelo relevo do terreno. A casa da artista chinesa é térrea, mas está distribuída entre diferentes níveis, o que faz com que a luz do sol atinja todos os cômodos quase que igualmente. Já no caso dos Tomie, o pé direito baixo acentua uma sensação de recolhimento – apesar de seus 750 m2. Além disso, esta segunda incorpora cores vibrantes típicas da produção artística da pintora.
Dessa forma, as peças de arte ali colocadas parecem encontrar um lugar próprio, como se as paredes já esperassem o encaixe perfeito: telas redondas de Sandra Cinto conversam com as formas circulares de Ruy Ohtake; cores vibrantes de Sophia Loeb e Ana Elisa Egreja complementam o azul e o amarelo da construção; no jardim, duas esculturas de Erika Verzutti observam a elegante onda de Tomie sobre a piscina.
A casa foi construída em três partes, cada uma em uma década – começando em 1968. Ao longo dos anos, algumas tradições da família migraram de lugar. A sala de jantar, onde costumavam servir comida baiana e macarrão japonês aos domingos, passou do lado esquerdo do jardim para a frente da piscina. O ateliê, por sua vez, recebeu um espaço mais amplo e cheio de luz natural. Ali, as tintas e os pincéis usados podem ser vistos na Aberto, junto a uma série de obras que conta com cerâmicas, pinturas, esculturas e mobiliários.
Assim como na casa de Chu Ming Silveira, em que a produção Alan se mistura à obra da mãe, na casa de Tomie, peças de Ruy e Rodrigo Ohtake se juntam ao espaço e complementam o legado de família sinalizado pela Aberto. A mostra é uma oportunidade única de conhecer dois patrimônios culturais da cidade de São Paulo e conferir de perto a seleção de arte moderna e contemporânea realizada pelos curadores.
Serviço
Exposição: ABERTO3
11 de agosto a 15 de setembro
Ingressos: https://aberto03.byinti.com/#/ticket/
De quarta a sexta 60,00 (inteira) 30,00 (meia entrada)
De sábado e domingo 80,00 (inteira) 40,00 (meia entrada)
Duas casas no mesmo dia: 20% desconto
Residência de Chu Ming Silveira
Endereço: Rua República Dominicana, 327 – Real Parque, São Paulo
Horário de visitação: quarta-feira a domingo, das 10h às 18h – última entrada 17h
A Casa Ateliê de Tomie Ohtake
Endereço: Rua Antonio de Macedo Soares, 1,800 – Campo Belo, São Paulo
Horário de visitação: quarta-feira a domingo, das 10h às 18h – última entrada 17h
Gostou desta matéria? Leia também:
Centro Cultural FIESP é reinaugurado após reforma com exposição de peças afro-brasileiras