Além de artista e professor de história da arte, tenho como ofício a conservação e restauração. Mais ou menos, quarenta dias atrás chegou em meu ateliê, duas telas do artista Chico da Silva. Surpreendi-me de vê-las, já havia restaurado outros quadros do artista diante a minha atuação. As pinturas de Chico da Silva são realizadas em telas muito simples, com a camada preparatória rala e de pouca aderência, causando trincamentos, rachaduras e perda da camada pictórica. Sua pincelada, refinadíssima, porém também frágil, geralmente muito diluída com solventes para obter um traço preciso, ajuda a desencadear essa patologia. Suas obras se desvalorizaram no mercado, nas últimas décadas, era comum encontrar em feiras e lojas de antiguidades, pinturas suas, abandonadas, num canto e de preço simbólico, já que sempre se apresentavam em péssimo estado de conservação.
Outro fator, sobre o descaso, foi o descrédito que Chico vivenciou, após o sucesso nos anos de 1960 e 70, sendo conhecido na França e de ganhar menção honrosa na XXXIII Bienal de Veneza, foi acusado de apenas assinar as obras que eram executadas por assistentes. O historiador José Roberto Teixeira Leite relata em seu livro Dicionário Crítico da Pintura no Brasil, que Chico ficou rico, colocou ouro nos dentes (Boca Rica), boêmio, começou a exceder na bebida e nos gastos, desencadeando uma redução na produção. Para manter-se decidiu ter assistentes para ajudá-lo e essa questão aos olhos do mercado tirava a autenticidade de suas pinturas.
Jean Pierre Chabloz, um suíço, que morava em Fortaleza, “descobriu” Chico Da Silva pintando os muros da cidade. Chico recebe pelas mãos de Chabloz materiais de pintura, desenvolvendo sobre os novos suportes toda a sua imaginação e habilidade. O suíço consegue promovê-lo no Brasil e no exterior e será o próprio Chabloz que vai dar o atestado de óbito na carreira do artista, após saber que 90% da produção era executada por assistentes e Chico apenas assinava. Desgostoso e arruinado, no final da vida, doente, passa 4 anos num hospital psiquiátrico e morre na miséria.
Sua arte passou o milênio marginalizada, foi lembrada na Mostra do Redescobrimento, em São Paulo, aparecendo no segmento Arte Popular. Interessante notar que 23 anos atrás, a crítica e a curadoria, ainda rotulavam a arte do Chico da Silva como popular, naif, ingênua. A modernidade nos mostrou Rousseau. Na inauguração do Museu de Arte de São Paulo, Lina e Bardi, sabendo da importância do museu, como um museu contando a história da arte ocidental e majoritariamente europeia, decidem expor simultaneamente uma exposição intitulada “A Mão do Povo Brasileiro” expondo diversas obras do mundo do “artesanato” e do “popular”. Dando dimensão à cultura brasileira diante da “grande” arte. Uso isso como exemplo para que essa questão entre artista e artista popular, já devia ter acabado. Ou você é artista, e produz, tem algo a dizer ou não. A história da arte moderna é todo esse levante sobre fazer arte, rupturas com o passado, com a representação, do fazer técnico, da espontaneidade, da criação, da liberdade, das emoções… e isso Chico da Silva tem a mais.
Nasce numa data incerta, por volta de 1910, no Alto Tejo, Acre. Filho de pai indígena peruano e de uma mãe cearense. Na adolescência reside em Fortaleza, trabalha em diversas áreas, de consertador de tamanco a escafandrista. No final da década 1930 começa a pintar os muros das casas dos pescadores, junto ao passeio público. Com carvão e outros materiais precários, decorou as paredes com seus seres imaginários. Um muralista, atividade tão em voga nesse período no Brasil, com a vinda dos Mexicanos, o contato de Di Cavalcanti com Siqueiros. O muralismo de Portinari. Os murais de Chico já falam desse universo mágico que encontramos em sua pintura de cavalete, desse surrealismo primitivo, como foi rotulado.
Ainda com as pinturas de Chico em meu ateliê, vejo a notícia de uma exposição, uma retrospectiva da carreira de Chico da Silva e o Ateliê de Pirambu na Pinacoteca do Estado de São Paulo. E depois outra exposição numa galeria. A legitimação do Artista. Em 2006, no Espaço Cultural dos Correios em Fortaleza uma exposição sua é realizada ao lado do Ateliê Pirambu, o curador Roberto Galvão nessa aproximação traz a questão dos assistentes, que na verdade era uma escola, um lugar de aprendizado, um ateliê. Diversos artistas durante a história da arte tiveram assistentes e alunos, isso nunca foi problema. Um pequeno centro cultural, experiência que tivera em contato com a universidade, um analfabeto, mas pintor.
A surpresa que coloco no início do texto, foi que de um certo modo, eu também o havia ignorado, não comprei nenhuma tela nessas feirinhas na cidade. Tinha dó do descaso da produção e como elas eram expostas, mas também não valorizei sua obra. Ao me deparar novamente com suas pinturas e ver a delicadeza do traço em contraste da sua assinatura, mostrava o domínio da fatura.
A surpresa também foi com a temática do Chico, seus seres e animais fantásticos, numa atmosfera onírica, me remeteu a temática atual que encontramos na produção de artistas como Jaider Esbell, Daiara Tukano, Denilson Baniwa, Israel Maxakali… Como historicamente o artista indígena foi ignorado pela colonização, a presença dessas manifestações, que estão ocorrendo nos últimos anos, todo o processo decolonial em que desencadeia na América, traz à tona a necessidade da manifestação artística de todos, já que estamos falando de uma democracia. Torna-se necessário e urgente a colocação do Chico da Silva na história da arte como merece. Chico da Silva cria um elo com os novos artistas, uma aproximação histórica, imagética, técnica e cultural da população indígena.
Durante o processo de restauro das pinturas de Chico, fui mostrando a obra para alguns amigos, apresentando como uma obra de Jaider, todos surpresos com a obra, pela beleza, expressividade e temática. Ao saberem que não se tratava desse, mas de outro, outra surpresa. Ninguém sabia quem era Chico da Silva.
Manoel Canada é formado em Artes plásticas na Belas Artes e Filosofia pela PUC-SP, mestre em artes visuais pela Unesp, artista visual, restaurador e professor de História da arte na PUC-SP.
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3 Comments
Artigo excelente. Obrigado, Manoel Canada.
artigo impecável e esclarecedor.
Eu tenho 2 quadro do artista chico da silva gsnhei e nao sabia de quem se tratava .estou vendendo