Neste mês de setembro foi inaugurada a 13ª edição da Bienal do Mercosul. A mostra, que aconteceu pela primeira vez em 1997, é hoje um dos mais importantes eventos para o cenário latinoamericano de arte. Conheça o tema e os destaques desta edição.
Após o trauma vivido em escala global causado pela pandemia de COVID-19, a proposta curatorial desta edição gira em torno de proposições artísticas que buscam expressar aquilo que transborda de experiências traumáticas e ultrapassa as limitações da linguagem verbal. Com o título Trauma, Sonho, Fuga, a 13ª Bienal do Mercosul articula estes três conceitos provocando artistas e público a pensarem (e sentirem) como a arte pode ser um veículo para se processar experiências traumáticas, sonhar realidades alternativas e traçar rotas de fuga para se alcançar estes novos espaços de existência.
A pandemia é, neste sentido, um importante disparador de reflexões, mas não um tema único. A curadora pedagógica do projeto educativo, Germana Konrath, comentou em entrevista exclusiva para a Artsoul que podemos pensar no trauma como uma experiência metabólica, num sentido de algo que passa pelo corpo e não é totalmente processado, gerando efeitos complexos que precisam ser revisitados de outras formas, para que esses excessos possam ser liberados por outras vias, daí a noção de fuga.
Com curadoria geral de Marcello Dantas e os curadores adjuntos Tarsila Riso, Laura Cattani, Munir Klamt e Carollina Lauriano, além da curadoria pedagógica do projeto educativo de Germana Konrath, a mostra esse ano conta com obras de 100 artistas de 23 países, e 11 espaços culturais de Porto Alegre. Alguns desses espaços são tradicionais na cena gaúcha, como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, a Casa de Cultura Mário Quintana e a Fundação Iberê Camargo. Porém, locais inusuais estão sendo apresentados, é o caso de diversas instalações em espaços públicos no centro da cidade e do novo Instituto Caldeira.
Esta edição da Bienal inova com ações inéditas na história da mostra. Neste ano, houve pela primeira vez uma chamada aberta para que artistas do mundo inteiro enviassem propostas que relacionassem arte e tecnologia. O processo seletivo às cegas analisou mais de 800 projetos e os finalistas estão em exibição no Instituto Caldeira. Destes selecionados, surpreende uma abordagem do conceito de tecnologia por um viés mais orgânico. Ou seja, propostas que dialogam com tecnologias ancestrais e naturais. Uma noção de que o futuro só será possível se olharmos para formas de vida ancestrais em suas relações de respeito com a natureza. Como expressa o ditado do povo aymara: olhando para trás e para frente (ao futuro-passado) podemos caminhar no futuro-presente.
Este é um dado interessante do projeto curatorial desta edição e se estende por toda a mostra. O curador geral, Marcello Dantas, tem um histórico em propostas que aliam arte e tecnologia. Dantas participou da criação de projetos reconhecidos pelo uso de tecnologia interativa, como a Japan House e o Museu da Língua Portuguesa.
A curadoria da 13ª Bienal do Mercosul não trata da dimensão tecnológica por um viés futurista de realidade aumentada. Antes disso, trata-se de proposições que borram constantemente as fronteiras entre dentro-fora e tecnológico-biológico, ao entender como tecnologia fenômenos como redes elétricas ou códigos de comunicação computacional, mas também olhar para as tecnologias biológicas das redes neuronais ou mesmo os sonhos.
Outro destaque desta edição em relação à edições anteriores é que, diferente de propostas passadas que contavam com grande apelo à obras com peso histórico, neste ano, a maioria das obras que compõem a mostra foram comissionadas especificamente para a Bienal. O que traz para a mostra um caráter ultra contemporâneo. Ainda assim, existe um resgate histórico por parte da curadoria, mas este fica reservado ao prédio do Memorial do Rio Grande do Sul. Lá, o público pode visitar uma mostra que traça um panorama da história da Bienal.
Em relação ao projeto educativo, este sempre foi um dos fatores mais valorizados da Bienal do Mercosul, ação presente desde as primeiras edições. O curso de formação de mediadores promovido pela Fundação Bienal do Mercosul tem importância histórica no cenário artístico nacional. Fomentando a profissão, incentivando a criação de outros cursos – mesmo a nível universitário – estimulando a valorização da educação através e a partir da arte.
Neste ano, o projeto educativo vai além das visitas mediadas no que diz respeito à formação de agentes integrantes no campo da arte. Partindo da noção de que na contemporaneidade não é possível se produzir arte individualmente e de que é preciso reconhecer as redes que permitem a atuação artística, o projeto educativo pensou numa série de ações que abrem os bastidores da mostra, articulam trocas de saberes com profissionais de outros campos e promovem a instrumentalização de professores da rede pública de forma continuada.
Na série de encontros Conversas de Cozinha – Bastidores da Bienal, por exemplo, estão sendo realizados encontros presenciais e gratuitos, onde se reúnem integrantes das equipes do projeto educativo, da produção, da arquitetura, da engenharia e da montagem do evento para abordar o desenvolvimento de propostas artísticas, desde a concepção até a execução e inserção na exposição.
Já no seminário Zonas de Contato, são propostos encontros reunindo pesquisadores com distintas formações e experiências para um diálogo ativo a partir da linha conceitual desta edição da mostra. São nomes como o do neurocientista Sidarta Ribeiro, referência na articulação entre ciência ocidental e saberes naturais. Além de outras propostas que podem ser conferidas no site da Bienal.
O grande interesse dos projetos curatorial e educativo deste ano é o da democratização do acesso à arte. Seja através de uma linguagem acessível a públicos variados, seja através da acessibilidade e gratuidade das propostas, mas principalmente através da escolha por obras que dialogam diretamente com o público. Obras com grande apelo sensorial.
Neste sentido, um dos grandes destaques da mostra é a possibilidade de o público experimentar em primeira pessoa os objetos relacionais desenvolvidos por Lygia Clark na proposição a qual a artista denominou A Estruturação do Self. Lygia Clark é um dos maiores nomes da história da arte brasileira, sendo conhecida principalmente por suas esculturas. O final de sua carreira, contudo, foi marcado pela atuação da artista em experimentações que envolviam os sentidos. Clark desenvolveu um conjunto de objetos que tensionavam noções complementares (como leve-pesado, macio-duro, vazio-cheio e assim por diante), utilizados por ela em sessões de psicoterapia.
Para a 13ª Bienal do Mercosul foi criado um ambiente no qual são disponibilizados objetos idênticos aos utilizados pela artista, como conchas, sacos plásticos, entre outros. Além disso, é proporcionado ao público, pela primeira vez, acesso aos diários nos quais a artista fazia anotações acerca do processo e das sessões com seus clientes.
Além de Lygia Clark, a mostra conta com obras de outros grandes nomes da arte como Marina Abramovic e Tunga. Porém, para a curadora Germana Konrath, os maiores destaques da edição (além da obra já citada de Clark) são as obras abaixo.
Obra na qual o artista tensiona os limites entre drogas lícitas e ilícitas. A instalação Placebo apresenta ao visitante uma mesa com mais de 20 mil comprimidos feitos à base de café e açúcar. A instalação também é composta por um vídeo feito a partir de imagens apropriadas mostrando a produção de drogas legais e ilegais, enquanto as legendas narram um passo a passo das etapas da produção de café.
Partindo da reflexão de que bilhões de sonhos são produzidos todas as noites e desaparecem com a chegada do dia, a obra de Pedro Reyes se propõe a criar uma enciclopédia de sonhos. Diversos relatos de sonhos de pessoas variadas foram reunidos em uma espécie de coleção. Em Hypnopédia, uma instalação cria um lugar etéreo que convida o visitante a relaxar e ouvir os sonhos compartilhados por desconhecidos.
A obra consiste em um site através do qual é possível compartilhar segredos de forma anônima. Esses relatos são, então, traduzidos para o código Morse e transmitidos por sinais luminosos de um potente holofote na cúpula da Casa de Cultura Mário Quintana. Uma experiência entre orgânica e tecnológica, íntima e pública.
A 13ª Bienal do Mercosul: Trauma, Sonho, Fuga pode ser visitada até o dia 20 de novembro. Mais informações e programação completa podem ser acessadas no site da mostra.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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