A arte moderna europeia modificou inúmeros aspectos técnicos do fazer artístico e foi determinante para a individualização do artista, desencadeando o surgimento de várias mitificações em relação a esta figura, presentes no senso comum até os dias atuais.
Primeiramente, podemos citar o mito do gênio absoluto, muito atribuído a Pablo Picasso, que teve sua imagem construída como se nenhum fator externo ou consciente o tornasse o artista que foi, aclamado por sua inexplicável genialidade. O segundo mito é de uma certa patologização da arte, na qual o artista é tido como louco, como desvio da sociedade, nenhum fator além da loucura contribui para sua boa trajetória na arte, o nome mais famoso deste segundo é Vincent Van Gogh.
Estes mitos surgiram na produção intelectual do início do século XX e foi absorvida pelo público já que não se tinha métodos concretos para compreender e avaliar as novas linguagens que dominavam as artes plásticas. São aspectos negativos para arte de modo geral, visto que estabelece um tabu em que artistas apenas são, ou seja, não é possível tornar-se um bom artista, é preciso nascer um bom artista. Essas concepções distanciam a arte do campo do conhecimento e até mesmo do campo do trabalho.
Com a arte contemporânea propondo a desmistificação do artista, na busca de tornar mais democrático e acessível esse lugar, críticos e artistas propõem constantemente novas e densas abordagens em relação à carreira de alguns artistas. Esse movimento é bem recebido já que responde a uma demanda do mundo contemporâneo, como o livro Van Gogh: A salvação pela pintura do escritor Rodrigo Naves, que visita sua trajetória centralizando o papel da religião em sua vida. É encarando esse movimento de analisar uma chave que não a da loucura que pretendemos passar pela trajetória de Van Gogh que será rememorado em exposições individuais em pelo menos cinco países no ano de 2022, incluindo o Brasil, que receberá em março a exposição imersiva Beyond Van Gogh com reproduções sensoriais de suas obras.
O pintor holandês viveu de 1853 a 1890 e ocupa os grandes livros de história da arte como integrante da geração pós-impressionista, um conjunto de artistas que seguia inovando a linguagem plástica de forma autêntica, mas que não correspondia mais aos impressionistas.
Sua vida foi cercada por arte, sempre desenhou e trabalhou com venda de obras antes mesmo de se dedicar à produção, que se iniciou em 1881. O pintor se debruçou majoritariamente em duas técnicas: a aquarela e a tinta a óleo. Desde o início gostava de trabalhar ao ar livre e seus temas eram o seu universo, seus arredores, seu cotidiano, tudo sob sua dramática perspectiva.
Telhados, 1882. Vincent Van Gogh. Imagem: Wikipedia.
Telhados é a vista do ateliê em que estudava a técnica de aquarela em Haia, na Holanda, aqui vemos sua observação apurada e o gosto por trabalhos vibrantes. Fato interessante é que o pintor saiu do ateliê após desentendimento com o professor, uma prática recorrente em sua carreira. Manter-se em academias era uma dificuldade de Van Gogh, sempre retornando a uma vivência solitária com trabalhos construídos sob linguagens próprias.
Em 1886, Van Gogh muda-se para Paris, na França, onde reside por dois anos. Na cidade das luzes o artista conhece Paul Gauguin, o pintor pós-impressionista que dá vazão ao movimento fauvista e passa a explorar uma paleta ainda mais brilhante além de dramatizar suas pinceladas.
Pontes através do Sena em Asnières, 1887. Vincent Van Gogh. Imagem: Wikipedia.
Em Pontes através do Sena em Asniéres vemos uma tela de pinceladas expressivas e como ele usa universos complementares, a paleta do azul e a paleta do amarelo, de modo a criar contrastes intensamente vibrantes.
É interessante pontuar que antes dessa fase em Paris o pintor vivia um momento artístico bem diferente em seus dois anos em Nuenen, em que usava obsessivamente o marrom, um exemplo é a famosa tela Os Comedores de Batatas. A intensidade dramática se dá pelas cores escuras, sob grande influência do realismo, a cena da família camponesa com olhar aflito é mais que melancólica, é denúncia de miséria e pobreza.
Os comedores de batatas, 1885. Vincent Van Gogh. Imagem: Wikipedia.
Deixando Paris em 1888, Van Gogh vai viver em Arles, também na França, onde desenvolve a maior parte de sua produção, somando cerca de 200 telas à óleo e 100 desenhos. Nesse período enriqueceu seus trabalhos com azul e amarelo, como O Quarto em Arles. O quarto aparece distorcido, as paredes parecem querer se encontrar no centro da tela, a sensação de vertigem impera na imagem. Van Gogh faz justamente isso, atribui sensações e emoções a cenas e paisagens comuns.
O Quarto em Arles, 1888. Vincent Van Gogh. Imagem: Wikipedia.
Foi no mesmo ano dessa pintura que Van Gogh passou pelo lamentável episódio em que cortou sua orelha esquerda, não se sabe ao certo se total ou parcialmente. O episódio é rodeado de lendas, mas o fato é que o pintor não teve memórias do incidente, reforçando que possa ter se tratado de uma espécie de surto mental, como diagnosticado na época.
Autorretrato com Orelha Enfaixada e Cachimbo, 1889. Vincent Van Gogh. Imagem: Wikipedia.
Após o trágico incidente, em 1889, Van Gogh se internou no hospital psiquiátrico de Saint-Paul de Mausole, perto de Arles. Van Gogh tinha dois quartos com janelas gradeadas e um deles se tornou seu estúdio, desse modo, ele continuou pintando o que via e vivia e assim fez uma de suas telas mais famosas, a vista do seu quarto: A noite estrelada.
A noite estrelada, 1889. Vincent Van Gogh. Imagem: Google Arts & Culture.
Em A noite estrelada vemos diversos elementos que já estavam presentes em seu trabalho como as cores e a intensa pincelada, contudo, a tela apresenta um elemento plástico que vai se tornar muito recorrente: o uso de espirais. Esse recurso acrescenta uma sensação de movimento para a tela e, aliada a abundância de tinta, estabelece uma sedutora profundidade, dessa forma suas pinturas são inquietas. A vila na parte inferior não fazia parte da vista do seu quarto, mas Van Gogh usava a arte para inserir elementos em sua realidade.
Sua produção no hospital foi fundamental para revelar que ele não conseguia trabalhar em estado de surto, ao contrário do que se imagina, o artista só pintava em momentos de clareza mental.
Van Gogh faleceu em 1890, horas depois de ter atirado contra seu peito com um revólver. Há algumas divergências a respeito de sua morte, contudo, o suicídio é a teoria mais popular entre os pesquisadores. O artista deixou um legado enorme em quantidade de obras e qualidade de inovação, apesar de ter destruído um número considerável de obras, estima-se que ele tenha feito aproximadamente 860 pinturas em sua vida. No padrão de sua produção, fez muitos retratos, o tema que mais o possibilitava de ganhar dinheiro; autorretratos, que geralmente se davam em períodos de transições estilísticas e técnicas; também podemos citar a reincidência de ciprestes, como em A noite estrelada, pomares e campos de trigo.
Uma série importantíssima em sua carreira que o faz ser muito celebrado até hoje, é a série de flores. Já sabemos de seu gosto pela cor azul e principalmente amarela e ao usá-las, Van Gogh produziu inúmeras telas de girassóis morrendo. Algumas dessas telas decoraram o quarto de hóspedes que recebeu Paul Gauguin enquanto estava em Arles, encantando o pintor assim como as gerações futuras.
Natureza morta: vaso com doze girassóis, 1888. Imagem: Wikipedia.
Contrastando o fundo azul com a composição amarela, Van Gogh revela todo o trajeto de seus pincéis. As flores morrem mesmo com cores tão vivas, como se ele conseguisse subverter o estado natural delas por meio da pintura.
Van Gogh não foi amplamente reconhecido em vida e a história do suicídio, a internação e o episódio da orelha colaboram para ideia romântica do artista não compreendido, da produção como resultado da loucura, entretanto, não podemos reduzir a figura do artista a isso. É preciso um processo de humanização e reconhecimento do trabalho, Van Gogh aprimorou de modo extenuante sua técnica, tinha um estilo único e queria desesperadamente viver de sua arte.
Van Gogh participou de algumas exposições no fim da década de 1880, recebendo reconhecimento crescente no circuito das artes, porém, as maiores exibições foram póstumas.
O artista tinha cinco irmãos, Theo era um dedicado promotor de seu trabalho, suporte financeiro e emocional. Se hoje há tanta informação a respeito dos pormenores de sua vida, é em decorrência das cartas que Vincent trocava com Theo, são aproximadamente 600 cartas que abarcam o período de 1872 a 1890. A publicação delas se deu em 1914, divididas em 3 volumes e foi fundamental para alavancar sua carreira. A narrativa de sua vida potencializou a boa recepção do seu trabalho. Neste percurso, o pintor veio então nas primeiras décadas de 1900 a influenciar e ser peça indispensável para o expressionismo alemão.
Atualmente, as obras de Van Gogh estão entre as mais caras do mundo, a obra Uma cena de rua em Montmartre foi leiloada por 13 milhões de euros em 2021. O artista possui também diversos espaços dedicados a ele, sua casa em Londres e o local de seu suicídio na França são preservados como espaço cultural, além do Museu Van Gogh, nos Países Baixos, inaugurado em 1973 que possui um dos fluxos mais significativos de visitantes da Europa.
A produção exaustiva acerca do artista extrapolou os muros da academia, virou desde produção cinematográfica com indicação ao Oscar a estampas de camisetas e coleções de tênis de grandes marcas como a Vans.
A obra de Van Gogh ultrapassa gerações e comove jovens até os dias atuais. Com um trabalho sedutor e quase hipnótico, ele se faz presente com uma vida de histórias registradas e anedotas criadas, sua produção estilizada não caminhava em direção à abstração, mas sim ao entendimento da realidade como sentimento.
*O título faz referência ao retrato que Paul Gauguin fez de Van Gogh e intitulou “O pintor de girassóis”
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: Historia, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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2 Comments
adorei essa exposição e comentario sobre parte da vida do artista Vincent Van Gogh. sempre o admirei muito e num dado momentoda minha vida de artista plastica, procurei mais informacões sobre ele e tentei entender o “porque da sua não inclusão aos impressionista da época”.
parabéns a Giovanna Gregório que tão bem colocou esse bom e breve relato de momentos do pintor.
abs Maria Helena (lenabey)
legal