Por Carla Gil
Quem cruza a esquina das alamedas Lorena e Ministro Rocha Azevedo, no bairro dos Jardins, pode se deparar com uma pequena placa azul indicando: Vila Flávio de Carvalho. A placa, que faz parte do projeto Memória Paulistana, iniciativa do Departamento de Patrimônio Histórico, relembra o conjunto de casas que teve um papel relevante na história da arte brasileira e que hoje sedia uma série de lojas, restaurantes e galerias importantes para o circuito artístico da cidade.
A Vila Modernista, também conhecida como Vila América, foi projetada entre os anos de 1936 e 1938 pelo artista e arquiteto Flávio de Carvalho. Acompanhando o gesto de modernização da arquitetura residencial que havia se iniciado em São Paulo com a construção da primeira Casa Modernista – realizada por Gregori Warchavchik no bairro da Vila Mariana, o projeto teve como objetivo transformar a relação das pessoas com seus lares e a cidade. Embora exista uma relação entre o trabalho dos dois, a obra de Warchavchik esteve mais relacionada à Bauhaus, escola que inovou a arquitetura moderna unindo estética e funcionalidade, enquanto a obra de Flávio de Carvalho esteve ligada mais ao experimentalismo e a liberdade de criação, características que estiveram presentes em todos os seus trabalhos como artista.
Flávio Resende de Carvalho nasceu em 1899, na cidade de Amparo da Barra Mansa, no Rio de Janeiro. Quando tinha apenas um ano de idade, sua família mudou-se para São Paulo, onde ele passou toda a infância, até completar 12 anos e se mudar para a Europa. Em terras parisienses e londrinas, Flávio de Carvalho completou o ensino básico e ingressou em cursos de engenharia civil e artes. Em 1922, após concluir seus estudos, voltou para o Brasil e passou sua vida entre a capital paulista e a cidade de Valinhos, onde morreu aos 73 anos.
Foi um artista multifuncional: pintura, arquitetura, cenografia, decoração e muitas outras foram as suas áreas de atuação no campo das artes. Em todas elas, destacou-se por adotar uma postura provocadora, radical e crítica em relação aos costumes burgueses e moralistas da sociedade. Seu desempenho no teatro ficou marcado por ações que abriram espaço para novas formas de pensar os processos artísticos no Brasil, como no caso de sua performance “Experiência n° 3”, de 1956, em que desfilou pelas ruas da capital paulista vestindo uma blusa, saia curta e meia-arrastão. Na ocasião, seu “traje tropical” causou polêmica entre o público e a discussão sobre gênero na moda gerou repercussão na imprensa local.
No ano de 1930, participou do Congresso Pan-Americano de Arquitetos apresentando a conferência “A cidade do homem nu”, em que defendia a construção de uma nova cidade, sem preconceitos ou “tabus escolásticos”. Já em 1932, fundou o Clube de Artistas Modernos (CAM), junto a Antônio Gomide, Di Cavalcanti e Carlos Prado, com o intuito de incentivar a vida cultural paulistana e o debate entre diferentes linguagens artísticas, tais como a pintura, a literatura e a música.
Como arquiteto, Flávio de Carvalho participou de diversos concursos públicos para realizar seus projetos modernistas, mas nunca venceu nenhum deles. Suas únicas obras arquitetônicas executadas foram o conjunto de casas da Vila Modernista, de 1938, e a Fazenda Capuava, de 1939. Esta última teve a decoração como fator importante para sintetizar o ideal modernista do arquiteto, que utilizou elementos como chapas de alumínio, tecidos coloridos e espaços amplos, sem grandes paredes divisórias.
O conjunto que formou a Vila Modernista é composto por 17 casas, sendo 10 independentes e voltadas para a rua, e outras 7 geminadas e voltadas para o interior do quarteirão, com acesso por uma viela. O projeto apresentou três tipos de plantas, cada uma com cerca de 100 m2. Com fachadas brancas e estruturas semicirculares, as casas têm espaços internos amplos e poucas paredes, sugerindo maior integração entre os cômodos e unindo as áreas social e de serviço.
O terreno que abrigou a vila pertencia à família de Flávio de Carvalho e a construção foi inteiramente custeada pelo artista. Acompanhados pelo anúncio “casas frias no verão e quentes no inverno”, os imóveis foram feitos para serem alugados e utilizados de acordo com um manual de instruções criado pelo artista.
Através destes panfletos, Flávio de Carvalho ensinava seus inquilinos a utilizarem as casas de maneira adequada. Sua ideia era proporcionar conforto e praticidade para a vida moderna que começava a surgir nas cidades. Com espaços menores e ambientes integrados, a Vila Modernista incentivava os moradores a frequentarem mais espaços públicos e de convivência, estendendo o ambiente da vida privada para o quintal da vila e, posteriormente, para a rua.
No entanto, a construção não agradou grande parte da população da época e Flávio de Carvalho precisou, aos poucos, vender suas casas de aluguel. Alguns artistas e intelectuais chegaram a se interessar pelos imóveis, como o caso da escritora e militante Patrícia Galvão, a Pagu, que morou na vila durante um período, mas isso não foi o suficiente para manter as locações. O próprio arquiteto do conjunto viveu em uma das casas: na esquina entre as duas alamedas, Flávio utilizou o andar de cima do imóvel como lar, enquanto manteve no piso térreo a loja “Vaca”, onde comercializava laticínios produzidos em sua fazenda de Valinhos, no interior de São Paulo. Anos depois, entre as décadas de 1950 e 1960, a casa de esquina foi demolida para dar lugar a um prédio residencial.
Sem um número expressivo de famílias para ocupar as casas, a Vila Modernista enfrentou uma série de mudanças que provocaram a descaracterização quase completa do espaço. Ao longo dos anos, o lugar deixou de acomodar lares, para receber diferentes tipos de comércios e serviços. Entre as reformas e obras estruturais que essa mudança de público gerou, a maioria das casas perdeu sua forma original. Atualmente, o conjunto modernista pode até passar despercebido por quem não conhece sua história, em meio a tantos edifícios construídos nos arredores.
Em dezembro de 2017, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico (Conpresp) decidiu não tombar a Vila Modernista, alegando que as construções já estavam muito adulteradas. Anos depois, o local foi incluído no Inventário Memória Paulistana, projeto da Secretaria Municipal de Cultura que mapeia lugares importantes da cidade que devem ser reconhecidos e lembrados. A partir daí, diferentes galerias têm ocupado as casas modernistas, devolvendo ao espaço a possibilidade de uma função coletiva, como almejava Flávio de Carvalho.
Hoje, 85 anos após a inauguração, a Vila Modernista pode ser considerada um polo cultural recente, que vem ganhando força e notoriedade na metrópole. O lugar tem recebido cada vez mais visitantes interessados em conhecer o projeto arquitetônico e os espaços de arte ali instalados. Entre os fatores que influenciam a troca de endereço das galerias entre bairros nobres e centrais da capital, estão a busca por novos colecionadores e a vontade de explorar outros ambientes como espaços expositivos. Nesse sentido, a utilização da vila diz respeito a uma retomada da história da arte brasileira como forma de impulsionar o circuito artístico contemporâneo.
Nos últimos anos, algumas galerias se mudaram para a Vila Modernista e contribuíram para o fortalecimento do local como um núcleo cultural da cidade, como a Sé Galeria, o Espaço C.A.M.A. e a CASANOVA Arte. Até o início deste ano, a galeria Gomide & Co também integrou o grupo de expositores da vila. Sua sede foi, inclusive, a única que conseguiu manter, após uma série de reformas e restauros, a estrutura inicial projetada por Flávio de Carvalho. Em março, a galeria foi transferida para um edifício na Avenida Paulista e a residência modernista abriu espaço para abrigar uma parceria com a Casa SP-Arte. Agora, o edifício da Alameda Ministro Rocha Azevedo funciona como centro permanente de exposições da mais tradicional feira de arte e design da América Latina, a SP-Arte.
Com o objetivo de promover exposições e encontros entre galeristas e curadores de todo o país, o projeto foi inaugurado com a mostra “Hélio Oiticica: Mundo-Labirinto”, organizada pela Gomide & Co. Reunindo obras de diferentes fases da produção do artista, a curadoria buscou sintetizar a essência inovadora e experimental de Oiticica em um ambiente doméstico, de forma que os trabalhos dialoguem diretamente com o local no qual estão inseridos. Em entrevista à Folha de São Paulo, Fernanda Feitosa, diretora da feira, afirmou que “o Flávio foi um artista inquieto e visionário, assim como Hélio”, e “uma exposição dele realmente faz a inauguração perfeita para essa nova fase da casa”.
A abertura de espaços de arte na Vila Modernista faz parte de um investimento mais amplo no destino da cultura da cidade de São Paulo. Apesar de o circuito das galerias ser considerado um meio mais fechado e elitista do que instituições públicas como museus e centros culturais, a expansão destes lugares pretende contribuir para a difusão do trabalho de arte na capital, bem como para a fruição coletiva intencionada por Flávio de Carvalho.
Carla Gil é pesquisadora independente e graduanda em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
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