Em abril deste ano, uma suposta tela de Tarsila do Amaral gerou controvérsia ao aparecer ‘escondida’ na 20ª edição da SP-Arte, a principal feira de arte e design da América Latina. Agora, passados quatro meses do evento e das discussões que levantaram suspeitas em relação à procedência do quadro, a perícia contratada para analisar a obra afirmou: é uma Tarsila. Mesmo assim, a pintura segue gerando questionamentos por parte de familiares da artista e de agentes do mercado que não reconhecem seu laudo de autenticidade.
“Paisagem 1925” foi o título atribuído à tela. Nela, um lago com pedras e plantas aparece em primeiro plano, seguido de um gramado com mais pedras, plantas e um cacto. No centro, casas coloridas são dispostas entre grandes palmeiras e copas de árvores. Ao fundo, dois morros antecedem um céu azul. E no canto inferior esquerdo, a assinatura é de “Tarsila 25”. Pela data e seus elementos pictóricos, a pintura faria parte da fase “Pau-Brasil” da artista, a mais valorizada de sua carreira.
Desde que foi oferecida à venda no estande da OMA Galeria, no começo do ano, muitos especialistas têm duvidado de sua veracidade. O que acontece é que o quadro não consta no catálogo raisonné da pintora, uma publicação elaborada por estudiosos especializados em Tarsila do Amaral que reúne todos os trabalhos oficiais da modernista. Além disso, a maneira como a obra chegou à feira também foi bastante questionada – inclusive pela organização do evento, que alegou não saber de sua existência. Ela não estava exposta ao público, mas guardada dentro de uma mala, de forma que apenas colecionadores muito exclusivos pudessem acessá-la.
De acordo com o proprietário da obra, Moisés Mikhael Abou Jnaid, a tela estava no Líbano desde 1976 e, por isso, não havia sido vista em outro país. Ela teria sido comprada como um presente de casamento e mantida no local desde então. Foi apenas em dezembro de 2023 que, com o crescimento da guerra entre Israel e Hamas e o receio do conflito atingir o Líbano, a pintura foi trazida de volta ao Brasil. Sem quaisquer registros ou documentos que comprovem sua autoria, parte do circuito da arte, como galeristas e especialistas em autenticação de obras de arte, teve dificuldade de reconhecer o trabalho.
Na última semana, no entanto, contrariando a maioria das expectativas, a OMA Galeria e a Tarsila SA – empresa responsável por administrar o espólio da artista em nome de parte dos herdeiros – anunciaram a conclusão da análise científica que confirmou a atribuição da tela. Com o laudo divulgado no dia 19 agosto, a obra, que antes estava avaliada em R$16 milhões, passou a valer R$60 milhões, ultrapassando “A Caipirinha” e tornando-se a obra mais cara de Tarsila no mundo.
A partir daí, um embate foi travado no universo das artes: mesmo com a certificação da perícia, existe, ainda, uma resistência de parte dos envolvidos em aceitar a obra. No dia seguinte à divulgação do parecer, a AGAB (Associação das Galerias de Arte do Brasil) lançou, junto a um grupo de herdeiros que não fazem parte da Tarsila SA, comunicados à imprensa afirmando que não concordam com a autenticidade do quadro.
Assinado por 15 galerias, o texto diz que a Câmara Técnica “não reconhece e não acata nenhuma conclusão em processos de certificação de autenticidade e autoria de obras atribuídas a Tarsila do Amaral que não tenham participação direta de Aracy Amaral, Vera d’Horta, Regina Teixeira de Barros, Maria Izabel Branco Ribeiro e Tarsilinha do Amaral, que formaram a equipe que realizou a ampla e detalhada pesquisa que resultou na publicação do Catálogo Raisonné da artista em 2008”.
Tarsilinha, como é conhecida a sobrinha-neta de Tarsila, foi a principal responsável pelo espólio da artista durante cerca de 20 anos. Foi figura central no trabalho de popularização das obras, tendo participado também da organização de importantes mostras retrospectivas, como as realizadas no MoMA, em Nova York, em 2018, e no MASP, em São Paulo, em 2019. Nos últimos anos, porém, uma briga judicial pelo controle dos direitos autorais da pintora a afastou da empresa da família. Tarsilinha teria deixado um rombo de 1,5 milhão na Tarsila SA, devido à sua contabilidade falha. Hoje, quem responde legalmente pela marca é Paola Montenegro, sobrinha-bisneta da modernista.
Em entrevista ao Jornal Nacional, Tarsilinha disse que a perícia, em um caso como esse, não é suficiente para afirmar se a obra é verdadeira ou não. Para ela, o reconhecimento por parte de uma equipe de estudiosos também é fundamental. “No catálogo Raisonné da Tarsila, nós tínhamos a comissão que avaliava as obras, uma comissão de experts. Então, essa comissão conhece a obra dela como ninguém. Então, a partir desse conhecimento – claro, o histórico da obra também é importante -, mas a partir desse conhecimento técnico sobre a obra dela tão apurado, a maioria das coisas eram resolvidas muito facilmente, nem precisando da perícia”, afirmou.
Em resposta aos questionamentos, Douglas Quintale, perito contratado para examinar “Paisagem 25”, afirmou não ter dúvidas em relação à autoria do quadro. Também entrevistado pelo Jornal Nacional, ele explicou que foram realizadas análises profundas e minuciosas da composição química das tintas utilizadas na imagem, bem como de seus traços e pinceladas.
Segundo Tarsilinha, a decisão de autenticar o quadro foi tomada sem a aprovação da maioria da família. Ela defende que a obra não tem adesão suficiente dos parentes e nem do mercado – que é por onde a tela vai circular -, e que o parecer deveria contar com o aval de todos os herdeiros, como foi feito durante a elaboração do catálogo raisonné.
Se a venda for concretizada, os herdeiros de Tarsila do Amaral receberão 5% do valor total. Prevista na legislação brasileira, essa porcentagem se dá pelo “direito de sequência”, que confere ao artista ou à sua família uma compensação financeira toda vez que a obra for vendida. No caso dos 60 milhões de reais, como está avaliada a pintura atualmente, os herdeiros podem receber o equivalente a R$ 3 milhões.
No dia 21 de agosto, parte dos sucessores da artista, insatisfeitos com o desdobramento do caso, emitiram uma carta aberta à imprensa manifestando seu repúdio à certificação anunciada. Com uma lista de mais de 20 nomes, a manifestação também informou que os familiares adotarão medidas cabíveis de acordo com a gravidade do caso.
Confira o texto na íntegra:
Carta aberta de herdeiros de Tarsila do Amaral
No último dia 19 de agosto, mais de 50% dos sucessores da renomada artista plástica Tarsila do Amaral foram surpreendidos por uma matéria veiculada no Jornal Nacional, afirmando que a família da artista Tarsila do Amaral teria confirmado a autenticidade de uma tela depois de quase 100 anos.
Diante da gravidade de tal situação e do risco à credibilidade das obras de Tarsila do Amaral, seus herdeiros e sucessores, que esta subscrevem, manifestam seu completo e total repúdio às afirmações lançadas por pessoas que não estão autorizadas pela maioria da família para alterar e certificar a autenticidade de obras da renomada artista plástica.
Durante quase quatro anos, foi elaborado o Catálogo Raisonné das obras de Tarsila do Amaral, sob a coordenação de um colegiado de especialistas, reconhecidos nacional e internacionalmente. Nesse catálogo foram enumeradas e avaliadas as obras de Tarsila do Amaral, servindo de verdadeiro guia para museus, casas de leilão, colecionadores, historiadores, etc.
A obra referida na matéria jornalística não foi submetida ao colegiado do Catálogo Raisonné, portanto, sua autenticidade não foi legitimamente reconhecida. Tal obra foi vista, ao que indicam, por poucas pessoas, apareceu numa feira de arte em abril desse ano e, de acordo com o galerista Thomaz Pacheco, o dono seria Mikael Abouij Naid que teria adquirido diretamente de Tarsila em 1951.
Os herdeiros mais próximos de Tarsila do Amaral nunca ouviram falar dessa obra, sendo inverossímil que ela tenha permanecido oculta por tanto tempo.
É importante ressaltar que um pequeno grupo de pessoas, dentre elas herdeiras de Tarsila do Amaral, não possuem legitimidade para afirmar a autenticidade de obras de Tarsila do Amaral, sem submetê-la ao colegiado que elaborou o Catálogo Raisonné. Nem mesmo a empresa TALE (Tarsila do Amaral Licenciamento e Empreendimentos S.A.) possui qualquer autorização para promover tal ato.
Os argumentos apresentados na matéria pela Sra. Paola Montenegro, para certificar a obra como autêntica, são inadmissíveis, por afirmação de que “basta um técnico de laboratório dizer que a tinta e a tela são compatíveis com a época”. Essa declaração revela total despreparo dessa pessoa e falta de capacidade técnica para apresentar, em rede nacional, uma conclusão dessa, sem qualquer discussão prévia com os demais herdeiros de Tarsila do Amaral, colocando em risco todo acervo da artista.
Após anos de divulgação e discussão com as maiores autoridades do Brasil e de outros países, a artista Tarsila do Amaral passou a ser reconhecida internacionalmente e suas obras, cuja autenticidade é demonstrada no Catálogo Raisonné, são objeto de grande admiração e valorização.
Essa tentativa irresponsável de divulgar uma obra de Tarsila, não indicada no Catálogo, põe em risco a credibilidade conquistada durante anos de árduo trabalho, podendo sujeitar pessoas de boa-fé a adquirirem obras não autênticas. Essa atitude vem se repetindo no curso dos últimos meses, tendo havido a inacreditável tentativa de venda de NFTs (non-fungible token) de obras não autênticas de
Tarsila do Amaral, iniciativa essa que foi suspensa por determinação judicial, após a apresentação de medida judicial urgente de herdeiros de Tarsila do Amaral.
Os herdeiros e sucessores de Tarsila do Amaral, que esta subscrevem, não compactuam com esse desrespeito às obras autênticas da artista e informam que adotarão as medidas cabíveis que a gravidade do caso exige.
ALEXANDRE ALBERTO ESTANISLAU DO AMARAL
ALEXANDRE GALVÃO BUENO
ANTONIO AUGUSTO DE SOUZA LIMA
MARIA LUIZA DE SOUZA LIMA
MARIA THEREZA VIEIRA DE CARVALHO ZAIDAN
MARIO SERGIO ESTANISLAU DO AMARAL
CAROLINA ESTANISLAU DO AMARAL NAPOLITANO NORBERTO AMARAL FACCIO
GUILHERME ESTANISLAU DO AMARAL
HELOÍSA MARIA DO AMARAL
HELOISA MARIA VIEIRA DE CARVALHO
ISABELLA ESTANISLAU DO AMARAL
JULIANA DO AMARAL GONÇALES NAPPO
LÉA MARIA ESTANISLAU DO AMARAL
LIANA MARIA MARTINS DO AMARAL
LÍLIA GALVÃO BUENO GONÇALVES
MARIA ANGELA A. L. VIEIRA DE CARVALHO
MARIA CLARA ESTANISLAU DO AMARAL
MARIA DO CARMO ESTANISLAU DO AMARAL
PATRICIA DO AMARAL GONÇALES PALÁCIOS
PAULO VIEIRA DE CARVALHO
PEDRO AUGUSTO DE SOUZA LIMA
PHILIPPE AUGUSTO ESTANISLAU DO AMARAL
RAUL VIEIRA DE CARVALHO NETO
RICARDO AMARAL FACCIO
TARSILA DO AMARAL
THAIS AMARAL PERROY
THALES ESTANISLAU DO AMARAL SOBRINHO
VIVIANE SOUQUIRES GRISANTI DO AMARAL
São Paulo, 21 de agosto de 2024