O Canal Curta!, canal independente dedicado a documentários sobre arte, cultura e humanidades, lançou a série Designers do Brasil. Composto por duas temporadas, o programa, que tem curadoria de Adélia Borges e direção de DJ Dolores e Pedro Gorski, destaca a criatividade nacional e os processos por trás de peças emblemáticas de 20 importantes nomes do design brasileiro, abrangendo diferentes áreas como moda, design de produto, design gráfico, mobiliário, entre outros. Mais do que biografias, a série do Canal Curta! é uma investigação sobre como as especificidades da cultura brasileira estimulam, de inúmeras formas, belas e inventivas criações.
Ao comentar as obras de Rico Lins, conhecido por incorporar em seu trabalho a energia e os ruídos das ruas e das multidões, Adélia Borges cita uma metáfora do icônico designer Aloísio Magalhães. Segundo ele, o design é como um estilingue: quanto mais para trás você for, maior e mais abrangente será seu resultado. Essa analogia ajuda a compreender não apenas o trabalho de Rico Lins, mas o legado de diversos dos profissionais apresentados durante a série como, por exemplo, Ronaldo Fraga. Natural de Minas Gerais, Ronaldo despontou na moda brasileira ainda nos anos 90. Em seus primeiros desfiles, trazia para as passarelas roupas inspiradas por grandes nomes da literatura, como Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa. Com o passar dos anos, suas influências se tornaram mais sutis, mas sempre remetendo ao contexto nacional, como nas coleções inspiradas pelo Rio São Francisco ou pela noite do sertão. Um processo semelhante é realizado por Lino Villaventura, profissional abordado na segunda temporada. Também designer de moda, Lino cria, a partir de uma grande variedade de técnicas manuais, texturas e construções têxteis tipicamente brasileiras. Porém, o mais interessante é observar como cada peça é transformada pela visão única do estilista, que é celebrado por sua surpreendente dramaticidade.
O mergulho na cultura nacional continua a ser explorado em outros momentos da série, como no episódio sobre Renato Imbroisi, designer conhecido por sua colaboração com comunidades artesãs. Ao discorrer sobre o trabalho de Renato, Adélia lembra que, no Brasil, a institucionalização do design ocorre na academia, sem incorporar ou referenciar o artesanato tradicional. Assim, durante muitos anos essas duas práticas foram entendidas de forma separada. Renato e outros artistas desempenham um papel crucial ao aproximar os dois universos. O designer é um dos responsáveis por promover a valorização do artesanato em capim-dourado, uma tradição da comunidade quilombola Mumbuca, no Jalapão.
Um processo semelhante é realizado pelo designer Marcelo Rosenbaum. Bastante conhecido por sua presença na grande mídia, Marcelo utiliza sua projeção para atuar como porta-voz de produções periféricas, muitas delas advindas de práticas e saberes ancestrais. Para isso, trabalha frequentemente em parceria com comunidades indígenas e ribeirinhas. Como exemplo, a série mostra o caso dos cobogós da Comunidade de Vergel, em Alagoas. Marcelo utilizou sua posição de destaque para apresentar para grandes empresas os cobogós feitos a partir da casca do sururu, um material abundante naquela região. Com isso, foi possível que a comunidade criasse novas parcerias e ampliasse suas possibilidades.
O artista e designer J. Cunha, que abre a segunda temporada, apresenta uma nova camada a esse movimento de mergulho ao passado. Negro e natural da Bahia, J. Cunha traz consigo importantes influências de sua própria ancestralidade. Suas criações são permeadas por referências africanas, além de uma profunda espiritualidade que se manifesta em suas peças de diferentes formas.
Talvez, o feito mais conhecido de J. Cunha seja a colaboração com a cantora Daniela Mercury. Há décadas ele é o responsável por pensar visualmente os trabalhos da artista. Quando convidado para comentar o legado de J. Cunha, o artista plástico Ayrson Heráclito afirma que o designer é o protagonista na criação da visualidade pop afro-baiana, uma identidade reconhecida nacional e internacionalmente.
Na linha da ancestralidade, a série mostra como a paulista Marina Sheetikoff também realiza um processo de revisão da sua origem, porém de forma distinta. De origem russa, a designer incorpora histórias de seus antepassados na criação de joias. Com isso, seu trabalho, apesar de muito delicado, ganha uma força significativa. Ao ser entrevistada, ela explica, por exemplo, como a criação de uma de suas peças parte da migração forçada de seus avós, motivada pela guerra. Essa história a levou a pensar na oposição dessa situação, na qual de um lado existe uma enorme hostilidade exterior e, do outro, o amor e o conforto encontrado no núcleo familiar.
Outro episódio de destaque é o que aborda a trajetória de Fred Gelli, responsável pelo Estúdio Tátil, uma das maiores referências do design brasileiro. Entre seus trabalhos, destaca-se aquele feito para as Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, cujo logo teve como inspiração as curvas do Pão de Açúcar. As obras de Fred possuem sempre um caráter lúdico, muitas vezes convidando ao toque, ao riso e à brincadeira. Ao falar sobre seu processo criativo, o designer explica que as conexões humanas passam, invariavelmente, pela emoção e, em sua visão, o riso é uma das emoções mais convidativas. Ao transportar essa ideia para o design, temos como resultado criações que são a cara do Estúdio Tátil: provocativas, cheias de personalidade e muito bem-humoradas.
O mesmo caráter lúdico está presente no trabalho do ,ovo, estúdio de São Paulo conhecido por seus móveis curiosos e instigantes. Luciana Martins e Gerson de Oliveira, designers por trás do estúdio, explicam que seu interesse está em explorar os limites da funcionalidade do objeto. Assim, frequentemente desafiam o usuário a investigar, descobrir e, em alguns casos, até mesmo subverter a função original de suas criações. Por sua pesquisa constante, na qual a utilidade do objeto muitas vezes acaba ficando em segundo plano, Adélia afirma que o trabalho do ,ovo, está no limite entre arte e design. Ainda sobre obras que cruzam essa frágil fronteira entre as duas áreas, a curadora explica como, nos últimos anos, houve um aumento no colecionismo de design, um movimento no qual colecionistas adquirem peças não pela sua função, mas por motivos como o prestígio do estúdio, pela beleza estética, ou simplesmente pelo interesse gerado por aquele item.
Na segunda temporada, Adélia comenta a origem da palavra design. Apesar de ser um termo inglês, sua raiz vem do latim: designare, designo. Assim, a curadora afirma que esta é uma área de conhecimento que necessariamente pensa o futuro. Este é um comentário interessante pois, para muitos dos profissionais da série, o pensar o futuro se faz a partir de uma observação delicada do passado, ou, como na metáfora de Aloísio Magalhães, “indo para trás”. Em outros episódios, entretanto, a reflexão sobre o futuro se mostra de forma mais clara, principalmente naqueles que abordam o uso da tecnologia aliada ao design. Nesse sentido, ganha destaque o trabalho de Guto Requena. O designer e arquiteto paulista adota uma abordagem centrada no design de sistemas e softwares, incentivando a participação do público nesse processo. Um exemplo disso é sua releitura da cadeira “Girafa”, um ícone do mobiliário brasileiro criado por Lina Bo Bardi, que Guto refaz incorporando os sons e ruídos das ruas de São Paulo.
No episódio sobre o estúdio Questtonó, o questionamento sobre o futuro se torna ainda mais presente. Talvez o estúdio mais “vanguardista” dos apresentados, o Questtonó manifesta, desde sua origem, uma profunda preocupação com um design alinhado à projeção de uma sociedade melhor. Esse movimento se reflete, por exemplo, na preocupação com questões ambientais que é característica do grupo. Um dos produtos destacados demonstra como uma simples mudança em uma embalagem de cosméticos reduziu resíduos, economizou matéria-prima e potencializou o uso do produto. A tecnologia também é fortemente presente no trabalho do Questtonó, que, utilizando equipamentos avançados, busca soluções para diversos problemas atuais, como transporte e locomoção. Suas criações abrangem desde bicicletas personalizadas até carros autônomos. É interessante observar como, nesse caso, o conceito de design é bastante abrangente e não necessariamente resulta em um produto final. O que interessa é a ideia, o conceito e os caminhos realizados pelo grupo para a resolução de problemas.
Ao assistir os 20 episódios, entramos em contato com diferentes perspectivas, processos e visões de mundo. No entanto, há uma constante: a intrincada e complexa realidade na qual os designers desenvolvem seus trabalhos. Para além de sua estética e funcionalidade, os produtos concebidos por esses profissionais carregam uma história profunda. E, ao adquirir suas peças, os consumidores não estão adquirindo apenas um objeto, mas todo o contexto, todo o caminho percorrido que está, de certa forma, impresso naquele item. Ao acompanhar essas narrativas, que se desdobram em grafias, publicações, móveis, decorações, softwares e até mesmo conceitos e ideias, revela-se a criatividade e a conexão singular entre ancestralidade, tecnologia e natureza, traços distintivos do design nacional contemporâneo. E, na série “Designers do Brasil”, essa potência se mostra em todo seu esplendor.
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