O dia 21 de abril é o marco da morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um personagem marcante da história brasileira presente nos episódios do que hoje chamamos de Inconfidência Mineira, no final da década de 1780.
Único dos inconfidentes levado à morte, Tiradentes foi esquartejado e teve seu corpo exposto em praça pública, como um gesto do governo português de inibir qualquer movimento de origem republicana.
São inúmeros os retratos literários e pictóricos nos quais Tiradentes está retratado em seus mais diversos aspectos, seja na vida privada ou como militante, revolucionário e mártir. Estes retratos têm raiz em dados históricos mas incluem, sem dúvida, nuances de um imaginário que o transforma em figura mítica, com projeções de narrativas enviesadas que servem a diferentes leituras da história.
O jornalista Pedro Doria, autor do livro “1789 : A história de Tiradentes, contrabandistas, assassinos e poetas que sonharam a Independência do Brasil”, fala em entrevista sobre a importância de abandonar a figura do mito e revisitar as figuras históricas diante de sua complexidade. Contar “não uma história romanceada, mas a história como ela é. Tiradentes como ele realmente foi. Um homem que gostava de beber, que apreciava a companhia de prostitutas, muito ressentido, até corrupto. Fazia favores como funcionário público em troca de favores dos poderosos. Também um homem capaz de se empolgar com ideias, sonhador, carismático e, sim, corajoso. Que assumiu a culpa por todos. Mais do que nunca, me parece que o real Tiradentes simboliza, mais do que nunca, o Brasil como ele é”, afirma o autor.
Para este dia 21 de abril, a Artsoul selecionou quatro obras, de diferentes artistas, protagonizadas por Tiradentes, cada uma com propostas artísticas particulares.
Este talvez seja o retrato mais famoso do tema. “Tiradentes Esquartejado” foi feito pelo pintor Pedro Américo no ano de 1893 e finalizada em 12 dias. Centralizando o corpo fragmentado de Tiradentes na tela, a condição de morte do personagem e a forma sangrenta a partir da qual é representado, o afastam da idealização do herói, daquela figura edificante típica da iconografia padrão de poder.
Contudo, a perspectiva contra-plongée coloca o observador aos pés do personagem, traduzindo a ideia de uma figura sacra, de um mártir, o que demonstra uma intenção do pintor de adotar uma estética realista em detrimento do mito. Segundo a curadora Fernanda Pitta, “é uma imagem associada à figura de Cristo por ser alguém que se sacrifica por um ideal, quando a ideia de herói nacional passa a ser calcada não em mitos, mas em figuras reais”.
Essa obra é uma instalação montada numa sala cúbica de 3 metros em que o espectador se depara com pinturas do reflexo do corpo de Tiradentes em um espelho. Adriana Varejão é uma referência contemporânea no que se refere à exposição das feridas do Brasil colonial. Uma composição visceral da carne e dos aspectos físicos humanos fazem parte das suas obras. Aqui, não é diferente, ainda que se apresente de forma menos violenta e mais surrealista.
Na obra de Pedro Américo, é intuitiva a tentativa do olhar de reconstituir o corpo fragmentado de Tiradentes, dada a composição triangular da imagem e seu caráter histórico. Na obra de Varejão, o que se vê é uma apropriação das partes do corpo para um campo exterior ao da historiografia. O que interessa aqui é a individualidade das formas em si, que impede a reconstituição de um corpo completo. Os pedaços suspensos em uma sala branca remetem à estética surrealista de puro estranhamento da disposição das formas, como aponta a pesquisadora Maraliz de Castro Vieira.
Sobre o processo de produção, a artista comenta:
“O trabalho que estou preparando para a XXIV Bienal de São Paulo baseia-se no quadro de Pedro Américo, o seu Tiradentes, que também estará presente na Bienal. Meu interesse nessa pintura é mais de ordem semântica do que pictórica. É um quadro com que muitos de nós estamos familiarizados, pois está presente nos livros de História que costumamos estudar no colégio. Além disso, interessou-me a representação da fragmentação do corpo e do corpo em pedaços, algo que está em Géricault, que também estará na Bienal. Construí um manequim e o desmembrei justamente como no quadro a que me referi: duas pernas, um tronco com um braço, uma cabeça. Dispus as partes especialmente dentro de um quarto seguindo a mesma composição da pintura de Pedro Américo. Era como se o quadro estivesse em terceira dimensão. Coloquei vários espelhos nas paredes num total de 21, que refletiam as partes do corpo e também se refletiam uns aos outros. Partindo de um mesmo ponto de vista, fotografei cada espelho e reproduzi as imagens em pintura. Os quadros estarão dispostos no lugar dos espelhos, tendo as mesmas dimensões.”
Antônio Parreiras foi um artista brasileiro reconhecido em 1925 como o maior pintor brasileiro vivo pela Revista Fon Fon. Parreiras tem em seu currículo um amplo estudo de pinturas de paisagem mas ao final do século XIX, incorpora importantes pinturas de momentos históricos encomendadas para serem expostas em palácios e prédios públicos como Proclamação da República, Morte de Estácio de Sá e Prisão de Tiradentes. Esta última, a que mais nos interessa, retrata Tiradentes momentos antes da sua prisão. O personagem é encontrado pelos agentes em uma postura altiva e nobre diante da captura iminente que culminará na sua morte e exposição pública.
Já na obra de Oscar Pereira da Silva, vemos o retrato de um rosto plácido, ilustrativo do que seria a sacralização da imagem. Com cabelos longos, barba e rosto fino, a semelhança de Tiradentes com a figura amplamente conhecida de Jesus Cristo é inegável. Aliada à corda e às roupas brancas, o pintor contribui para a consolidação da imagem do mártir, aquele que se sacrifica por um ideal. É uma tela tardia, feita em 1922, mais de um século depois da morte de Tiradentes e faz parte de uma revisão que transforma o estigma de traidor em uma valorização do ideal revolucionário ou representante dos ideais da república, que passaram a ganhar força paulatinamente em meados do século XIX no Brasil.
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho, por ser alferes, ou seja, aspirante militar, Tiradentes “nunca usou barbas longas, cabelos escorridos ou bigodes vultosos, como muitos livros buscam caracterizá-lo. Em seu enforcamento ele portava cabelos aparados e barba raspada”. Muitas das imagens dele foram idealizadas para evitar a imagem de um ativista radical, “mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro“.
Notamos, com isso, que a elaboração de um retrato está suscetível aos interesses dos poderes vigentes em seu tempo, ou ainda, que a fama e a circulação dessas peças pode ser manipulada, assim como a narrativa escrita também é revisitada e revisada de tempos em tempos.
Outros artistas como Candido Portinari, José Wasth Rodrigues, Leopoldino de Faria, Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, por exemplo, também pintaram suas próprias narrativas de Tiradentes, sejam retratos com intenções de legitimar uma imagem na história ou o momento anterior ao enforcamento.
Os múltiplos retratos de Tiradentes nos induzem a voltar ao argumento de Pedro Doria e exercitar um estudo da história que acompanhe a sua complexidade; levantar as afirmações que o fizeram legítimo representante de uma (quase) revolução, sem ignorar as contradições próprias da existência humana.
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