Mestre da xilogravura e da literatura de cordel, admirador do sertão e dos costumes nordestinos. Este foi J. Borges, artista que levou o imaginário popular do Brasil para o mundo e fez da dificuldade um combustível para sua obra. Na última sexta-feira (26), ele faleceu aos 88 anos em Bezerros, sua cidade natal, em Pernambuco, por problemas cardíacos.
Nascido em 1935, na zona rural de Bezerros (PE), José Francisco Borges teve uma infância bastante humilde. Sem acesso aos estudos, precisou trabalhar desde cedo para ajudar a família. Antes de se tornar artista, trabalhou como carpinteiro, pedreiro, mascate, pintor de parede e oleiro. Foi somente aos 12 anos de idade que ele pôde frequentar a escola e aprender a ler, escrever e fazer contas.
A alegria de estudar, no entanto, não durou mais que um ano: J. Borges rapidamente teve de abandonar a sala de aula para voltar ao trabalho. O adolescente fabricava colheres de pau para vender na feira. Interessado pela literatura de cordel – gosto herdado de seu pai, um agricultor que lhe contava histórias -, buscava ler jornais e revistas velhas sempre que possível, a fim de manter o hábito da leitura.
A partir da década de 1950, começou a comprar lotes de folhetos de cordel para revender em feiras populares. Apaixonado pela escrita regional, J. Borges logo sentiu vontade de produzir suas próprias histórias. A primeira publicação aconteceu em 1964, com “O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina”, ilustrado pelo mestre cordelista e xilogravurista Dila (José Soares da Silva). Sucesso absoluto, vendeu cinco mil exemplares em apenas dois meses.
Em seguida, criou “O Verdadeiro Aviso de Frei Damião”, mas percebeu que precisaria de um ilustrador fixo. Lançou-se sobre a arte da xilogravura e, entalhando a madeira, sentiu um enorme entusiasmo – agora, além de assinar os contos, assinaria também as imagens. Deu início, então, a sua trajetória como gravador.
Nas mais de cinco décadas que se sucederam, J. Borges dedicou-se a retratar símbolos típicos da cultura nordestina. Talhou temáticas como o cotidiano da vida simples do campo, o amor romântico, os animais, o cangaço, a religiosidade, os folguedos e todo o imaginário popular que compõe o sertão. Com uma originalidade expressiva e notável, o autodidata fazia de cada quadro uma história.
Sem o auxílio de esboços, estudos ou rascunhos, desenhava direto na madeira e não se preocupava rigorosamente com a perspectiva ou a proporção das gravuras. Tinha os títulos como motes para criar suas imagens.
“Eu fazia umas gravuras muito tronchas. E pensava: “Só podem comprar por gozação, porque isso é muito malfeito”. Depois conheci outros artistas primitivistas e descobri que arte moderna é essa loucura. Arte popular também podia ser feita daquela maneira. Se fizesse bem feito, ninguém ia gostar.”, afirmou J. Borges em entrevista à Folha de São Paulo em 2003.
Apesar de vender bem os cordéis, até à década de 1970, J. Borges ainda não era muito conhecido. A vida de artista era difícil. Quando Ariano Suassuna teve contato com suas obras, por intermédio do artista Ivan Marquete, as coisas começaram a mudar. O dramaturgo se encantou pelo trabalho do xilogravurista e passou a divulgá-lo.
O primeiro encontro entre os dois mestres aconteceu na Universidade Federal de Pernambuco. Na ocasião, Suassuna levou jornalistas e uma equipe de televisão para entrevistar coletivamente o pernambucano, que depois da conversa os levou à sua oficina, em Bezerros. O resultado foi imediato: na semana seguinte, já havia visitantes querendo conhecer e comprar novas gravuras.
Como agradecimento de tal gesto, J. Borges deu a um de seus filhos o nome do companheiro: Ariano. Depois, vieram os outros. Tornou-se uma prática comum dar às crianças o nome de amigos. Além de Ariano, teve ainda “Pablo”, em homenagem a um suíço dono de galerias, muito amigo da família, e “Baccaro”, artista italiano também próximo de J. Borges.
Daí em diante, o reconhecimento formal não parou de chegar. J. Borges ganhou uma série de prêmios e homenagens, como a medalha de honra ao mérito da Fundação Joaquim Nabuco em 1990, em Recife, e a insígnia de honra do Palácio do Planalto em 1990, em Brasília. No mesmo ano, foi nomeado Patrimônio Vivo Imaterial de Pernambuco, título que lhe rendeu uma bolsa vitalícia e possibilitou a instituição do Memorial J. Borges.
Outras personalidades importantes também admiraram sua obra. José Saramago, por exemplo, recebeu uma gravura do artista e tornou-se fã de seu trabalho. Após o falecimento do escritor, sua viúva, Pilar del Río, decidiu relançar o livro “O lagarto” com uma ilustração de J. Borges na capa. O uruguaio Eduardo Galeano também o procurou para ilustrar um de seus livros, “As palavras andantes”. No ano passado, em visita ao Vaticano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva presenteou o Papa Francisco com uma obra do artista, o quadro “Jesus, Maria e José. A Sagrada Família”.
Com a morte de J. Borges, o mundo se despede de um dos maiores ícones da arte popular brasileira. Seu legado pode ser visitado no Memorial J. Borges, em Bezerros, e também no Museu do Pontal, no Rio de Janeiro, na exposição “J. Borges – O Sol do Sertão”, em cartaz até março de 2025 com mais de 200 peças exibidas.
Gostou desta matéria? Leia também:
Bill Viola: a trajetória de um dos nomes mais influentes da videoarte