Uma das maiores artistas do Brasil, Maria Martins foi reconhecida primordialmente no exterior, e vem sendo resgatada na cena nacional nas últimas décadas, após certo “apagamento” pelos movimentos nacionais decorrentes do século XX.
Maria Martins, ou apenas Maria, como gostaria de ser chamada, acompanhou seu segundo marido, o diplomata Carlos Martins Pereira e Souza em suas atividades diplomáticas e de embaixada, fato que permitiu que morassem em alguns países como França, Luxemburgo, Bélgica, Japão e Estados Unidos, durante as décadas de 1930 à 1950. As viagens possibilitaram o contato de Maria com artistas internacionalmente renomados, que por vezes, foram seus professores. E também ocasionou uma relação extraconjugal com Marcel Duchamp por alguns anos.
Em 1936, estuda com Oscar Jespers, renomado artista, na Bélgica. Em seguida, em Washington, se dedica principalmente a escultura em terracota e gesso. Aprende a esculpir bronze com Jacques Lipchitz e produz também gravuras e poucas pinturas ao longo de sua carreira, mas são suas esculturas icônicas que ganham destaque na história.
Após a reconhecida Feira Mundial de Nova York em 1939, Maria herda os exemplares de toras de madeiras típicas do Brasil, como jacarandá, e outras das melhores espécies, expostas no pavilhão brasileiro, projetado pelos arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Nessas produções de peça única, sem emendas, percebe-se uma verticalidade, são estreitas e compridas em decorrência da matéria prima.
Sua produção inicia com obras figurativas, onde identificamos objetivamente o que a artista representa. Já nesse início pode-se observar algumas características que seguem toda a produção de Maria, como o erotismo sutil e a feminilidade representada em Samba Flows in Her Veins, Samba corre em suas veias – em tradução. Na parte frontal se vê uma figura feminina a qual o manto não cobre toda nudez, e na parte traseira, a pose flexionada destaca a silhueta, o qual demonstra sensualidade e despojamento. Maria explora perenemente o erotismo em suas obras tridimensionais, faz questão de representar, e por vezes até evidenciar, as genitálias das figuras.
Ainda no início de sua carreira, Maria chegou a expor sua primeira grande individual, nomeada apenas “Maria”, na Corcoran Gallery of Art, em Washington (EUA), em 1941. Christ, é uma das obras desse período, talhada em peça única, e de pose bem singular em comparação a outras representações de Cristo. Esta foi inclusive a primeira obra da artista a ser incorporada a um museu norte americano. A obra é adquirida por Nelson Rockefeller, político estadunidense, que doa ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 1941.
Nos Estados Unidos, a artista também chega a expor ao lado de Mondrian, na Valentine Gallery, em Nova Iorque. Visionária, por perceber a potencialidade do artista holandês, Maria adquire por U$800 dólares a famosa obra Broadway Boggie-Woogie, de Piet Mondrian, e no mesmo ano doa ao MoMA.
Em sua mostra simultânea com Mondrian, intitulada “Maria: News Sculptures” e “Mondrian: New paintings” expõe algumas obras com figuras metamórficas, meio humanas e meio plantas. As lianas, reconhecidas como cipós, pertencem a família das trepadeiras lenhosas, encontradas na flora amazônica. Essa espécie de planta inserida nas obras da primeira e importante individual da artista, apresenta-se em diferentes fases em gravuras e esculturas, inclusive em sua última obra “O Canto da Noite”. As figuras humanas que ela molda e desenha, ganham braços, pernas e novos membros em formato de lianas, e até folhagem no cabelo. Além da flora, Maria também apropria-se da fauna e folclore nacional e de religiões afro-brasileiras , como nas esculturas: Cobra Grande, Yara e Iemanjá.
Ao longo de sua produção escultórica que perdura cerca de três décadas, suas obras incorporam os moldes surrealistas, movimento das vanguardas europeias que ganha proporção mundial. Maria fez parte não por modismo, mas por genuína identificação. A identidade da artista pelo movimento pode ser observada em seu retorno para o Brasil, que apesar de ter sua produção rejeitada, não abandona as representações de cunho surrealistas.
Nos Estados Unidos, Maria esteve ao lado dos artistas surrealistas que se refugiam da Segunda Guerra Mundial, no mesmo período em que a artista está acompanhando o marido embaixador. O Manifesto Surrealista é escrito por André Breton, figura importante que escreve críticas positivas de Maria. Chegou a descrevê-la posteriormente como original do “primitivo”, (um elogio considerável, tendo em vista que no surrealismo havia uma busca pelo primitivo) e destacando sua admiração “no que a Amazônia deu a ela – abundância imediata da vida”.
“SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.” Trecho do Manifesto Surrealista de 1930.
Seu retorno definitivo ao Brasil em 1949, coincide com início do concretismo, movimento que justamente se contrapõe ao surrealismo. Maria não é bem recepcionada pelo circuito artístico em decorrência das características surreais e subjetivas de sua produção, que entra em atrito com as produções nacionais. Enquanto no Manifesto Surrealista há uma recusa do racional e valorização do onírico, pela liberdade de criação e relações ávidas do inconsciente, influenciado também pelas teorias da psicanálise, no ideário concretista, há uma busca pelo racional, pelo geométrico, o que resulta em obras de abstração geométricas com cores e formas cada vez mais limitadas e padronizadas. Segundo a curadora Veronica Stigger, no documentário Maria, Não Esqueça que Venho dos Trópicos, o crítico de arte Mário Pedrosa, chega a acusar Maria por “excesso de personalidade”, como uma crítica rígida. Contudo, esses aspectos da arte concreta parecem não fazer sentido e nem são incorporados aos seus trabalhos, e se mantém fiel à sua subjetividade até a última obra.
“As três graças”, um clássico da mitologia grega e já retratado desde a arte renascentista, em “A Primavera” de Sandro Botticelli, ou no barroco, pintada por Peter Paul Rubens, e tantos outros artistas, também foi representado por Maria. Nessa aquarela, a artista atribui suas formas orgânicas e metamórficas. Essa releitura emprega, portanto, aspectos do modernismo em conjunto com detalhes singulares expropriado da nacionalidade de Maria.
Embora Martins tenha eventualmente produzido mais de uma peça, com o mesmo título e de grande similaridade, como em: O Implacável, O impossível, Saudade, e outras, nenhuma é exatamente igual. Maria utilizava uma técnica de escultura denominada cera perdida, o que permite apenas uma cópia de cada obra, não havendo como reutilizar o molde. Sendo assim, cada escultura torna-se intrinsecamente única, com convergências e divergências atraentes.
Atualmente Maria está presente no acervo de diversos museus no Brasil e no mundo. Uma de suas obras mais reconhecidas, “O Impossível”, com 4 peças diferentes, encontram-se no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – RJ, Museum of Modern Art, Nova York – EUA, Museo de Arte Latinoamericana de Buenos Aires – Argentina, e no Acervo do Banco Itaú, São Paulo.
O impossível é uma obra visceral e quase canibal, pois parece haver um desejo de deglutir o outro. Do personagem mais baixo que representa o homem, sai um falo que permeia a mulher, representada pela figura mais alta. As figuras parecem estar sexualmente interligadas, em um processo de atração, mas também em atrito, devido a ferocidade das formas em suas faces.
Principalmente no Brasil, nas décadas de 50 e 60, suas esculturas ganham proporções monumentais, sua maior escultura é “Rito dos Ritmos” com cerca de 7 metros de altura, instalada na área externa no Palácio da Alvorada em Brasília. A dimensão das obras demonstra coragem, mesmo com a falta de adesão de seu trabalho no circuito nacional.
Maria também é uma figura imprescindível para estabelecer contato e seleção de artistas nas primeiras bienais de arte de São Paulo e no projeto de criação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Exemplo de sua influência nas artes é pelas relações privilegiadas que cria ao longo de suas viagens e mudanças.
Num possível e eventual fetichismo com desejo de conhecer o final da vida do artista ou de sua produção, com Maria não é diferente. Especula-se que sua última obra seja “O Canto da Noite”, de 1968, pois, não há registros de trabalhos posteriores. A escultura encontra-se atualmente no Palácio do Itamaraty. Nessa obra, curiosamente parece uma síntese de características e detalhes que Maria utilizou em outras obras ao longo de sua vida: a peça em bronze apresenta uma figura feminina, em metamorfose, com lianas, linhas orgânicas e boca entreaberta. O título é emprestado de um poema do filósofo Nietzsche, filósofo que Maria dedica um livro. Ela chega a dedicar-se em outros dois livros; Ásia Maior, Brama, Gandhi e Nehru e Ásia Maior, o Planeta China.
A potência e singularidade de Maria foi tamanha que percorreu e manteve-se presente mundialmente, cada dia mais forte, conseguindo superar a oposição que sofreu no ideário concretista vigente. Em 2013 é feita uma grande individual “Maria Martins – Metamorfoses” no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2021-2022 tem uma sala dedicada no MASP, em “Maria Martins, Desejos Imaginantes”, e na mesma data tem algumas obras expostas na mostra “Clarice Lispector” no Instituto Moreira Sales em São Paulo.
Daniken Domene é técnico em audiovisual e graduando em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC-SP.
Gostou desta matéria? Leia também:
Finalmente uma mulher no papel, a pintura moderna de Georgia O’Keeffe
1 Comment
Um universo à parte. Não nós deixa passíveis , porém em conflito em tentativa de entender o que se passa no interior e no motivo da artista se sentir no momento da sua criação. Não dá para ficar sem tentar entrar no mesmo universo.