O extenso campo da arte está entrelaçado a todo e qualquer tipo de expressão cultural na contemporaneidade, podendo dialogar e extrair referências de outras áreas criativas. Desses diálogos, gera-se novos sentidos e ideias para outros campos, como a moda e o design, por exemplo.
Assim como a moda bebe da arte, em diversos momentos a arte pode ter a moda como ponto de partida – enquanto centro de suas discussões e elaborações plásticas. Neste texto, uma série de obras expostas na Artsoul mostram-se referências de como a moda pode ser um campo de investigação para as artes visuais e suas linguagens, como a pintura, a fotografia e a escultura.
Em tradições culturais, uma série de elementos – vestimentas, músicas, padrões visuais e outros – são reunidos ao longo do tempo para contar histórias e reafirmar a identidade de um coletivo. Na fotografia de Renan Cepeda abaixo, por exemplo, o foco da narrativa são as tradicionais vestes dos bailarinos peruanos que caminham até a base de uma montanha durante um festival.
Trata-se do Senhor de Quyllurit’i, um festival que anualmente movimenta milhares de pessoas até Ausangate, a quinta maior montanha do Peru. Celebra-se o reaparecimento da constelação das Plêiades no meio do ano, a qual os povos originários relacionam com a colheita e o Ano Novo. A festa, que nasce do encontro da fé cristã com elementos da cultura andina, ocorre há muito tempo, remontando a história de um menino que viveu na região em cerca de 1780.
Na fotografia de Cepeda, as vestes dos bailarinos realçadas pela técnica de light painting destacam seu papel e os contextualizam na paisagem peruana. Caracterizada pelas cores vibrantes, sobreposição de tecidos e o rico padrão de estampas, a vestimenta é valorizada pelo fotógrafo e adquire novas visualidades por uma técnica contemporânea.
A moda possui dimensões históricas e sociais muito profundas, em que elementos dos mais sutis aos mais elaborados conectam gerações. Para além da veste, existem cortes de cabelo e penteados, modos de se ornamentar o corpo, gestualidades e demais recursos que mediam o corpo e a moda. Tais heranças passam de forma orgânica para futuras gerações e se adaptam a novos tempos.
Na fotografia acima, David Diaz Gonzales registra mulheres do povo Shipibo-Konibo, da Amazônia peruana, em um momento mais íntimo: a preparação visual coletiva, incluindo o corte de cabelo e a produção com maquiagem. A fotografia une encenação e espontaneidade, de algo que acontece genuinamente no cotidiano dessas mulheres, mas é reconfigurado pelo ato de posar para Gonzales. Nesta imagem, os elementos de vestuário como a roupa estampada, os colares e brincos, e outros detalhes como o corte de cabelo, são determinantes para comunicar a identidade dessas mulheres e suas especificidades.
O universo da moda se constitui no mundo real, ao mesmo tempo em que é o lugar perfeito para a imaginação e para o fantástico. Unindo as linguagens da fotografia e da pintura, Adriana Duque constrói imagens partindo de referências como a nobreza retratada na história da arte. A artista não se limita a reproduzir as imagens de nobres, mas as reinventa, especialmente ao contextualizar uma série de símbolos tradicionais dentro da contemporaneidade.
Na obra acima, por exemplo, está um exemplo da pesquisa de Duque centrada na figura da criança, sempre ornamentada com artigos nobres como coroas, jóias e, em alguns casos, cenários super elaborados. Artigo com grande peso simbólico na história da arte, a coroa é reimaginada pela artista como um fone de ouvido de ouro, fundido de forma a ilustrar um conjunto de animais extremamente elaborados. A moda, neste caso, é chave para brincar com essas possibilidades entre o real e a ficção.
Uma peça de roupa pode ser icônica o suficiente para carregar grandes simbologias construídas ao longo da história – especialmente na era das mídias contemporâneas. O salto alto, por exemplo, é utilizado pela artista Monica Piloni como um tipo de sinalizador em sua obra Succubus, o Início.
O título da obra faz referência a um demônio feminino que visita os sonhos de homens para roubar deles a energia vital. O scarpin, um dos símbolos máximos de feminilidade na moda ocidental, é empregado pela artista na escultura que representa uma figura com membros multiplicados e a cabeça coberta, com identidade indefinida. Piloni reduz ao máximo as informações externas ao próprio corpo humano e, quando acrescenta esse salto, consegue resgatar uma série de sentidos, por tratar-se de um símbolo tão forte.
A depender da linha de pensamento, o salto pode ser compreendido como uma ferramenta de dominação do corpo feminino, ou de empoderamento. A nudez do corpo escultórico construído pela artista lembra, de certa forma, como o feminino é visto como ameaça na sociedade patriarcal, especialmente quando não é mostrado para agradar. De tantos símbolos possíveis para a construção da imagem de um demônio, a artista escolhe o salto alto, que traz consigo esse lugar entre poder e repressão.
Verônica Alkmim França é uma dessas artistas que intersecciona os campos criativos para gerar diferentes reflexões em torno deles. Na obra PRIMA VESTIS, a artista investiga a sustentabilidade na arte através de uma intensa pesquisa com materiais orgânicos. A escultura vestível é composta de materiais como fibra de algodão colorido, bucha vegetal Luffa e sementes. A obra é resultado de uma série de estudos recentes para adaptar o algodão colorido para a produção de tecido, já que este ainda não é produzido de forma ideal como o algodão branco – usado em larga escala na indústria têxtil.
A intersecção da moda, da arte, da comunicação e outros campos é um sinal de como os caminhos criativos são inesgotáveis, e cada campo pode encontrar novas perguntas e soluções. Na contemporaneidade é possível ver de modo claro como a arte não mais ilustra a moda em pinturas ou fotografias, mas a investiga, questiona, influencia e por ela é influenciada.
Para ver mais obras que dialogam com a moda:
Diogo Barros é curador, arte educador e crítico, formado em História da Arte, Crítica e Curadoria pela PUC SP.
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