Entrelaçando preocupações estéticas e funcionais, criadores no campo do design autoral modulam formas que nos adornam, acolhem, encantam e estimulam o olhar. Do mobiliário à joalheria, do decorativo ao utilitário – sempre prezando por uma qualidade formal – designers atuam na criação de objetos que nos afetam diariamente. Uma peça especialmente projetada carrega em si o potencial de causar pequenas rupturas nos olhares automatizados, que se acostumaram com as formas padronizadas e simplificadas na contemporaneidade.
No terceiro bloco de novos expositores na plataforma Artsoul, fruto da parceria com a consultora de arte Cristina Tolovi, estão Patricia Faragone, Roberta Cardoso e Juliana Sedó. Para Tolovi, é significativo apresentar um grupo de mulheres que atuam nesse mercado e reivindicam seu lugar em uma área especializada.
O cotidiano é fonte germinal para o exercício de todos que trabalham com design, afinal o dia a dia é a ponta final dessas produções. Parte do trabalho de Patricia Faragone consiste justamente em repensar a formalidade presente no cotidiano para criar objetos que irão habitar o ambiente, seja de forma utilitária, ou como elemento decorativo.
Nas peças agora disponíveis na Artsoul, por exemplo, é notável o interesse da designer pelo universo da cozinha, desde os objetos e suportes que permeiam esse ambiente e o adornam, até as próprias formas dos alimentos.
“Um dos aspectos que me fascinam nos artistas e designers, de modo geral, é como eles revelam detalhes do cotidiano que muitas vezes passam despercebidos. A beleza na própria existência e do processo criativo que nasce dela (ou seja, da criação que surge da vivência cotidiana). Além disso, Patricia consegue fazer com que o vidro pareça ter uma outra materialidade e consistência, mexendo na nossa memória afetiva, algo muito presente nas peças mais simples da designer”, destaca Tolovi sobre a produção em vidro de Faragone.
Produzidas manualmente pela própria designer, as peças de vidro surgem de um processo extremamente técnico e delicado – próprio da linguagem da vidraria artesanal. Em conversa com a Artsoul, Tolovi chama a atenção para a atuação prática de Faragone em uma área ainda pouco comandada por mulheres, o sopro de vidro, e exalta o protagonismo da designer em todo o processo.
Ao desenvolver acessórios como colares a partir da fluidez possibilitada pelo vidro, a designer também reinventa o potencial de adaptação desse material, que habitualmente está mais ligado a outras funcionalidades domésticas e comerciais.
O ramo do design autoral pode, por muitas vezes, remeter a uma visão de produção mais tecnicista, em que as expressões mais subjetivas podem parecer ficar em segundo plano. Todavia, processos de criação ligados a saberes antigos e permeados por poéticas ligadas às esferas emocionais e pessoais, mostram outros caminhos possíveis para uma área que tem se especializado com novas tecnologias.
Com um processo multifacetado, Roberta Cardoso possui uma poética de resgate, propondo a confluência entre anatomia do corpo e o desenho da natureza. A artista e designer tem como fonte de inspiração não apenas esse encontro entre a corporalidade humana e o natural, mas as relações ritualísticas presentes nesse universo.
Nas peças apresentadas na Artsoul, seu trabalho em cerâmica é capaz de sintetizar uma série de dinâmicas que Cardoso estabelece a partir de suas pesquisas. Algumas das peças trabalhadas pela criadora são garimpadas em antiquários, e depois recebem uma intervenção, proporcionando uma outra vida para esses objetos carregados de história.
Para Tolovi, essa prática de garimpo e produção manual fortalece a singularidade de cada trabalho: “Quando vemos as peças dela, sabemos que uma peça nunca é igual a outra. É o que ocorre quando ela faz um vaso ou pinta sobre um prato encontrado em um antiquário. Ela percorre o caminho da arte para o design, transitando livremente entre ambos”.
O trabalho de Cardoso demonstra, dessa forma, a força da criação a partir de uma esfera mais afetiva. Seus objetos fabulam conexões a partir de uma visão própria de corporalidade – que atinge um status universal na medida em que circula por novos espaços.
“Se pensarmos no design em sua essência, trata-se de encontrar soluções que unam funcionalidade, estética e usabilidade. Juliana Sedó exemplifica bem esse olhar. Formada em Design Industrial, ela leva em consideração ergonomia, funcionalidade e outros aspectos técnicos que fundamentam seu trabalho. Enquanto muitos designers e artistas desenvolvem suas criações por meio de um processo intuitivo ou empírico, ela se apoia em uma abordagem estruturada, orientada por métodos técnicos e não apenas por processos intuitivos e empíricos.”
Nessa fala, Tolovi introduz a matriz do trabalho de Juliana Sedó, designer de produto de formação, que possui uma atuação tão ampla quanto coesa. Trabalhando em diversas frentes na produção de mobiliário, objetos decorativos ou lúdicos, Sedó exemplifica o esmero empregado por profissionais na hora de combinar beleza e adaptação dos objetos no cotidiano.
Uma das características marcantes do trabalho da designer é a versatilidade inerente às suas criações, em que uma peça pode ocupar diversos tipos de espaço e protagonizar mais de uma função. Um banco com iluminação própria e um garrafeiro composto por partes que podem ser combinadas à preferência, gerando novos conjuntos, exemplificam como o destino final desses exemplares é definido por quem o consome.
Três produções tão distintas quando aproximadas oferecem uma boa introdução ao universo do design autoral, e as múltiplas formas que essas peças podem habitar nossa vida. Entre o resgate e a inovação, elas articulam uma sensibilização sobre o valor do pensamento artístico e técnico por trás de cada objeto. É possível afirmar, assim, que o design autoral resguarda a importância da complexidade na projeção de tudo que nos cerca.
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