Se na expografia anterior — assinada pelo estúdio VÃO de arquitetura — o projeto partiu do reaproveitamento de materiais de mostras passadas para fechar o vão central do pavilhão e propor percursos que subvertessem a ordem tradicional de visitação, sugerindo novas sequências de deslocamento e percepções temporais, agora a proposta assume o conceito de “estuário expandido”, incorporando a fluidez das águas e das paisagens brasileiras à totalidade do espaço expositivo.
Concebida por Gisele de Paula e Tiago Guimarães, a expografia se destaca pelo uso inovador da verticalidade e pela integração de cores e formas que evocam a paisagem formada pelo encontro entre rios. Pela primeira vez, uma mulher negra lidera o projeto expográfico da Bienal, trazendo ao desenho do espaço uma perspectiva até então inédita e urgente em sensibilidade.
Em diálogo poético com o Rio Capibaribe, cada andar do pavilhão parece evocar diferentes camadas da ambiência de um estuário: o térreo em azuis profundos sugere a água corrente; o primeiro andar, com verdes suaves, remete à vegetação; e o segundo, em tons terrosos e avermelhados, lembra a lama fértil. Conectando os variados níveis dessa metáfora em um diálogo não só visual mas material e palpável.
O estuário, na natureza, é o ponto de encontro entre rio e mar, onde águas doces e salgadas se misturam, criando vida, movimento e diversidade. Na Bienal, essa metáfora se expande: a montagem de certas obras atravessa todos os andares conferindo continuidade entre os espaços, provocando atravessamentos estéticos e conexões inesperadas. Cortinas sinuosas e elementos suspensos permitem que os visitantes circulem livremente sem que a percepção geral de espacialidade se perca, enquanto obras monumentais percorrem verticalmente o prédio, convidando o corpo a “serpentear pelo espaço”, como se seguisse linhas e fluxos fluviais por entre margens. Cada encontro é singular e cada percurso, renovável.
Os recursos expográficos reforçam essa experiência: bancos em semicírculos oferecem pausas abertas para o encontro e a contemplação, pilares circulares concentram informações que insinuam uma leitura em movimento, e o uso da luz natural abraça o espaço, reduzindo o uso de paredes e diluindo a sensação de hierarquias visuais. Fora do pavilhão, algumas obras também estão expostas e ampliam sua continuidade, lembrando que o estuário se conecta além de seus limites, assim como a arte se espalha e se encontra em novos contextos.
Se em seu título, “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática” a 36ª Bienal parecia de forma orgânica nos conduzir para a reelaboração de possíveis formas de pensar humanidade, a expografia nos sugere no encontro entre as águas a possibilidade de viver esses outros percursos e relações. O conceito espelha paisagens que montam, não somente histórias brasileiras, mas histórias de toda humanidade. Relembrando na prática que arte e experiência não se limitam a uma única forma de ver, experimentar ou visitar – mas pedem que estejamos disponíveis para renovar caminhos, sentidos e escutas.
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