O recém lançamento do livro “Enciclopédia Negra” revela um projeto minucioso e preciso ao coroar a individualidade de personagens negros que marcaram a história do Brasil.
A proposta é ousada: abarcar a complexidade e profundidade do país ao protagonizar pessoas até então invisibilizadas pela historiografia e por privilégios sociais brancos.
A pesquisa teve início em 2018 e foi finalizada em meados de 2020 com 550 biografias, 36 retratos e 720 páginas.
Os autores Flavio Gomes, Jaime Lauriano e a autora Lilia Schwarcz, trazem a diversidade do Brasil à pesquisa. Lilia Schwarcz e Flávio Gomes já organizaram outro título juntos, o “Dicionário de escravidão e liberdade”, lançado em 2018 no qual foram reunidos ensaios sobre os conceitos de escravidão e liberdade. Neste, porém, Jaime Lauriano compõe a pesquisa e, juntos, transformam o ponto de partida que agora não é mais um olhar sobre a escravidão, mas sobre a devolução da dignidade das pessoas que tiveram suas biografias apagadas.
Com currículos direcionados à pesquisa e historiografia do tema racial, é perceptível a responsabilidade social que norteou esta nova obra.
É dado conhecido que a história das pessoas negras foi reduzida à condição de escravidão e racismo, ao ponto de ser raras as abordagens que falam de um sem o outro. Mas neste volume, apesar de não negar a condição de escravizado de alguns dos retratados, a sua história foi pensada enquanto valorização do indivíduo, sua cultura e influência no coletivo.
As imagens foram cuidadosamente construídas para compor o livro de forma afirmativa aos verbetes. Os autores reforçam que não são ilustrações, no sentido de imagens coadjuvantes que acompanham o texto. São, na verdade, como verbetes avulsos por carregarem elementos simbólicos e terem a potência de representar uma narrativa própria.
Os retratados escolhidos são pessoas negras que viveram desde o século XIX até a atualidade. Além do recorte temporal, a abrangência geográfica é mais um acerto desta obra. Há uma predominância da valorização do eixo Rio-São Paulo na maior parte dos levantamentos históricos brasileiros. Neste volume, porém, houve a intenção de contemplar a diversidade das regiões. Como disse Flávio Gomes: “foi feito o exercício de incluir tudo o que era Brasil, não só litoral, mas também agreste”.*
Os artistas convidados para a composição dos retratos partiram das informações que foram entregues pelos pesquisadores, ao mesmo tempo que em muitos casos, os dados não eram muito conclusivos, o que levou a uma tarefa de reconstrução desses personagens de forma a não reproduzir o olhar histórico de população brancas às pessoas negras.
Aqui, a coerência foi levada ao limite, por valorizar as diversas nuances de cada representação em uma variedade de aspectos relativos à sexualidade, ao gênero e até, ao nome completo dos biografados.
Além da publicação, a Pinacoteca do Estado de São Paulo organiza uma exposição com abertura prevista para o mês de abril de 2021, na qual apresenta os 100 retratos de personalidades negras que foram produzidos por 35 artistas negros contemporâneos que integrarão, ao final da mostra, a coleção fixa da Pinacoteca, iniciando um movimento de ampliação da representatividade racial na instituição.
Esses dados inserem o projeto no escopo de publicações de forte caráter educativo que, somada à imensa abrangência de dados históricos, sensibilidade artística e responsabilidade social, o livro se torna candidato irrecusável ao currículo de uma educação democrática no Brasil.
Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
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*Citação extraída da conversa de lançamento do livro realizada em 30 de março com os autores no canal do Youtube da Companhia das Letras (disponível aqui).
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