Quando se menciona o nome de Damien Hirst é quase inevitável não pensar em cifrões. O artista já foi indicado como o artista visual vivo mais famoso e rico do mundo (1), já bateu seu próprio recorde em leilão, além de ter trabalhos vendidos antes mesmo de serem expostos pela primeira vez. Mas há muitas outras situações que o mantém no circuito e alimentam sua imagem de celebridade.
Damien Hirst iniciou sua carreira em 1986 quando entrou para o curso de Belas Artes na Goldsmiths College, sendo parte dos chamados young british artists. Os YBA’s foram um grupo de artistas que na década de 1990 expunham juntos e exploravam a liberdade de materiais não convencionais em seus processos criativos, além de adotarem uma postura ativa na comercialização do seu trabalho. Deste grupo, Damien Hirst é o de mais destaque internacional, mas artistas como Matt Collishaw, Gary Hume, Michael Landy, Sarah Lucas e Fiona Era são contemporâneos a ele nessa frente que representa mais uma postura de abertura a novos materiais e processos do que uma estética comum.
Dado interessante é que a Goldsmiths College tinha um processo seletivo diferente das outras da época: não exigia testes de pintura ou desenho ou grandes habilidades plásticas, o que faz muito sentido quando se olha para a obra de Hirst. O trabalho do artista é, como ele defende, um trabalho de arte das ideias e a execução dos seus projetos requer o envolvimento de vários assistentes de diversas áreas técnicas e artísticas. “Gosto da ideia de uma fábrica para produzir a obra, que separa o trabalho das ideias, mas não gostaria de uma fábrica para produzir ideias.” (2)
The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991), Damien Hirst – Imagem: Casa Vogue, O Globo
O trabalho mais famoso do artista, The physical impossibility of death in the mind of someone living (1991), consiste em um tubarão embalsamado em 3 tanques de formaldeído. Financiado pelo marchand Charles Saatchi e exposto em 1992 na exposição “Young British Artists I” da Saatchi Gallery, a obra foi vendida em 2005 por 12 milhões de dólares, fato que chocou o mercado e incentivou o economista Don Thompson a investigar a economia da arte contemporânea em seu livro “O tubarão de 12 milhões de dólares” lançado em 2012.
É curioso que essa peça tenha ganhado tanta repercussão em livros, periódicos e menções no circuito. Olhando pela perspectiva técnica, um animal embalsamado poderia integrar qualquer acervo de museus de biologia como um registro de uma espécie e exposto para conhecimento científico. Não há nesta obra de Damien Hirst elementos plásticos. Com exceção do título. E é neste ponto que toda a atenção voltada para a peça se transforma. A impossibilidade da morte na mente de alguém vivo é um animal que sabemos estar morto, mas sua perfeita conservação o faz despertar em nós a sensação de estar vivo.
Atribuir a grandiosidade de um animal como um tubarão à reflexão filosófica sobre a recusa social da ideia de morte é o que torna o trabalho relevante do ponto de vista artístico. Ainda que seja apenas uma curta menção, é o título que desperta o interesse no público. Somados o título, a grandiosa dimensão da obra e o valor de venda, estava dada a espetacularização do trabalho de Damien Hirst.
Durante sua carreira o artista desenvolveu outros trabalhos que igualmente causaram grande eco no mercado, como os outros animais embalsamados de “Mother and Child (Divided)” (1993) e “The Kingdom” (2008).
Para além das questões econômicas e artísticas, é possível uma leitura ética sobre a atuação de Hirst. Diferente do Porco (1967) de Nelson Leirner que já foi adquirido pelo artista morto e embalsamado para posterior montagem do trabalho, os animais de Hirst foram caçados. Houve uma encomenda feita à Vic Hislop, o pescador responsável pela venda do animal, que envolvia a caça de tubarões de espécies específicas exclusivamente para a realização da obra. A legislação para controle deste tipo de caça “esportiva” é fraca a depender do país, o que torna a obra possível de ser realizada, combinada à clara falta de ética e preocupação ambiental por parte de Damien Hirst.
Na época, viciado em drogas e embriagado pela fama que seu trabalho alcançou, o artista comenta em entrevista para Folha que suas obras “passaram a ter menos a ver com arte e mais a ver com dinheiro” (3). Essa fala demonstra que quanto mais o mercado incorporava suas propostas, mais o artista produzia, a fim de tornar seu nome de fato uma marca. Não raro se vê colecionadores, galeristas e marchands se referindo ao trabalho dele como “um Hirst”. Não há um interesse focado em uma obra por sua proposta individual mas há o interesse de se adquirir um produto da “marca” Hirst. Algo semelhante acontece na indústria da moda quando o selo de autenticidade de uma marca é mais relevante do que o produto em si. O grande mercado da arte e da moda operam de formas semelhantes nesse sentido, em ambos, existe um fetiche na aquisição de um objeto como uma espécie de commodity. O próprio artista comenta: “Vi que tudo virou uma commodity, que as pessoas compravam só para revender[…].Compravam meus trabalhos e nem tiravam da caixa, vendiam para alguém que também não tirava da caixa e revendia. Ninguém via mais os trabalhos. Eram caixas passando de mão e mão.” (4)
O gatilho que faz um objeto integrar a lógica de fetiche é a criação de narrativa. Uma vez criada a aura em torno de um artista, todas as suas produções estão passíveis de interpretação fetichizada. Isso aconteceu em certa medida com a obra de Van Gogh, embora não em termos de valor de venda mas a leitura do seu trabalho caminhou por anos em torno de suas condições mentais, que, embora nunca comprovada ganhou vazão em livros e filmes até ser debatida e invalidada recentemente pelo crítico brasileiro Rodrigo Naves.
A interpretação do público, principalmente do público especializado envolvido no mercado, é uma das estratégias de Damien Hirst: “Quero enganar as pessoas, quero que pensem que estou dizendo alguma coisa quando na verdade são elas que dizem com a interpretação que fazem”. (5) Através disso, gera ainda mais repercussão para seu trabalho.
Apesar de muitas vezes trabalhar de forma harmônica com o mercado, Damien Hirst também desafia e experimenta suas próprias regras.
Damien Hirst posa com seu trabalho “The Incredible Journey” em leilão de 2008 na Sotheby ‘s. Imagem: Artsy
Em 2008 fez um leilão na Sotheby ‘s em 223 obras suas produzidas no mesmo ano por 120 assistentes. Por três motivos essa ação foi considerada inusitada. Primeiro que os leilões costumam trabalhar com obras do mercado secundário, ou seja, com obras que já foram compradas do ateliê de artistas e estão no acervo de colecionadores. Ao fazer um leilão direto do ateliê para a casa de leilão, Hirst exclui da “jogada” os galeristas e os negociadores que o representam, negando a comissão habitual de 40 a 50% para esse setor, enfraquecendo o campo de ação desses profissionais.
O segundo ponto é que os leilões também trabalham com obras feitas com mais de 2 anos de lançamento, mas as obras oferecidas por Hirst foram feitas no mesmo ano e aceitas pela Sotheby ‘s. Neste evento, vendeu mais de 200 peças ao todo e arrecadou mais de 78 milhões de dólares nos primeiros noventa minutos. Por último, vale notar que esse leilão foi promovido no que se chamou de “Segunda-feira negra”, no dia em que o banco de investimentos Lehman Brothers declarou colapso financeiro ao anunciar concordata, confirmando uma crise financeira mundial.
Damien Hirst e Mark Carney com as obras numeradas da série “The Currency” – Imagem: Financial Times
Sua mais recente produção é a série “The Currency”, um desdobramento da famosa “série das bolinhas”, chamada Spot Paintings, desenvolvida desde 1986. Nesta série, o artista diz: “matematicamente, com as pinturas de pontos, provavelmente descobri a coisa mais fundamentalmente importante em qualquer tipo de arte. Que é a harmonia de onde a cor pode existir por si mesma, interagindo com outras cores em um formato perfeito” (6).
Dessa vez, porém, o artista surfa na onda dos NFTs e produz 10 mil desenhos desta série com uma versão equivalente em NFT. Uma vez que um NFT só pode existir como peça única, o comprador é obrigado a escolher entre a obra digital e a física. A escolha implica a permanência de um e a destruição do outro. O artista disse, em entrevista para Financial Times: “Sim, estou forçando as pessoas a fazer uma escolha. Mas o comprador sempre tem uma escolha. Não é só ‘onde está o valor?’ mas também ‘onde está o prazer?”. (7)
O lançamento desse trabalho acompanha a discussão latente sobre a autenticidade e unicidade das obras digitais e a intensa presença da tecnologia no mundo da arte.
Para o artista, é um “experimento interessante” e a iniciativa demonstra a enorme sagacidade do trabalho de Hirst que se mantém sempre atualizado e pronto para surpreender o mercado a qualquer momento.
Victoria Louise é redatora da ArtSoul formada pela PUC-SP em Arte: História, Crítica e Curadoria e Gestão Cultural
(1) Folha de São Paulo: Artista visual mais famoso e rico do mundo, Damien Hirst expõe em SP
(2) THOMPSON, Don – “O Tubarão de 12 milhões de dólares”, publicado em 2012. Editora BEI, página 98.
(3) Folha de São Paulo – A arte é a moeda mais poderosa do mundo de hoje
(4) Folha de São Paulo – A arte é a moeda mais poderosa do mundo de hoje
(5) Folha de São Paulo – A arte é a moeda mais poderosa do mundo de hoje
(7) Entrevista ao Financial Times
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