Em 2022, Abdias do Nascimento foi um dos nomes integralmente presentes no circuito de exposições de museus como MASP e Inhotim. Um dos grandes expoentes da cultura e da política negra no Brasil e no mundo. Nasceu em 1914, no interior de São Paulo, e deixou uma extensa produção plástica. Sua influência na arte e no pensamento negro no Brasil é inegável.
Nascimento teve múltiplas atuações em sua trajetória. Foi escritor, docente, político, ativista, pesquisador, dramaturgo, ator, poeta, jornalista e artista.
Neto de escravizados, durante sua infância absorveu os saberes de pretas e pretos mais velhos pela oralidade das rodas de conversa. Quando criança, encantava-se com as festas religiosas e com o circo. Nascimento atribuiu a esses momentos o início do que viria a ser seu encantamento pelo teatro. Sua primeira experiência profissional se deu na área de contabilidade, em uma fazenda na sua cidade natal, Franca. Demitiu-se do emprego devido ao racismo com o qual sofria.
Pouco antes da maioridade, Nascimento mudou-se para São Paulo e se alistou no exército. Enfrentou, também no serviço militar, o racismo cotidiano. Cada vez mais ligado ao movimento negro, desligou-se do exército – quando, então, começou a ser perseguido pela polícia de São Paulo, o que o levou a mudar-se para o Rio de Janeiro em 1936. Com a instauração do Estado Novo, chegou a ser preso no Rio de Janeiro por envolver-se em ações panfletárias contra ações militares.
Depois de solto, envolvido com um grupo de poetas brasileiros e argentinos, viaja pelo Brasil e pela América Latina. Nessas viagens conhece a cidade de Lima (Peru) e lá passa por um grande ponto de inflexão em sua vida. Nesta ocasião, o teatro municipal estava com a peça O Imperador Jones em exibição. Todos os atores da peça eram brancos e os que representavam personagens negros estavam pintados de preto. O episódio fez com que Nascimento refletisse sobre a falta de presença de pessoas negras no teatro.
Anos depois, de volta ao Brasil, Abdias do Nascimento viria a fundar o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, em 1944, ao lado de Aguinaldo Oliveira de Camargo, Wilson Tibério, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim, Ilena Teixeira e, mais tarde, uniria também a atriz Ruth de Souza. Como não poderia deixar de ser, a primeira peça encenado pelo TEN foi O Imperador Jones – composta somente por atores negros.
O TEN se tornou o projeto formador de uma primeira geração de atores e atrizes negros e fomentou uma dramaturgia que centralizou a experiência vivida de afro-brasileiros. O TEN foi a primeira instituição afro-brasileira a ligar a luta pelos direitos civis dos negros à recuperação e valorização da herança cultural africana no Brasil.
Entre 1950 e 1968, Nascimento foi o curador fundador do projeto Museu de Arte Negra – iniciativa do TEN. O projeto teria sua exposição inaugural no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro em 1968. No mesmo ano, devido à perseguição política, e com apoio de instituições de ensino do exterior, Nascimento decidiu se exilar no Estados Unidos.
Foi durante seu longo exílio que Abdias do Nascimento dedicou-se profundamente à arte plástica. Ao longo dos trezes anos que viveu fora do Brasil, além de pintar, também expôs e foi convidado a curar uma série de exposições em galerias de universidades estadunidenses.
Pintor prolífico, sua produção artística se dá, principalmente, pelo diálogo com uma tradição de abstração geométrica ligada à representação de símbolos da afro-religiosidade. Personagens, iconografias, insígnias, símbolos e cores ligadas a orixás. Os quadros de Abdias do Nascimento formam uma poderosa coleção de significâncias ligadas à cultura afro-brasileira.
Os movimentos políticos afrocentrados estiveram presentes não só na produção escrita e na atuação política de Nascimento. O pan-africanismo foi um movimento político adotado por Abdias do Nascimento e por ele divulgado no Brasil. No país, cunhou o conceito do “quilombismo” – expandindo o entendimento sobre a atuação de resistência, valorização e persistência da experiência negra a partir do projeto de transformação social sobre bases que retomam a experiência dos antigos quilombos.
A influência do pan-africanismo também aparece em suas obras. O movimento intelectual propunha a união e unidade política entre as nações africanas e as culturas de sua diáspora. Os debates, tomados em proporções atlânticas, traziam à Nascimento reflexões sobre o nacionalismo, sobre o que seria ser brasileiro – e, além, ser negro e brasileiro.
Okê Oxóssi e Shango Takes Over (Xangô Sobre) são duas famosas releituras de bandeiras nacionais – do Brasil e dos Estados Unidos, respectivamente – de Nascimento. Nelas, o artista passou a orientação de ambas as bandeiras para a vertical, redistribuiu suas estrelas e pintou, sobre a bandeira do Brasil, o arco e flecha do orixá Oxóssi – senhor da floresta, da natureza e do conhecimento –, e, sobre a dos EUA, o machado do orixá Xangô – orixá da justiça, dos raios e do trovão. Ainda sobre a bandeira do Brasil, o artista substitui a frase “ordem e progresso” por “okê okê okê okê” – que significa “salve o grande caçador”. O artista também emprega cores que possuam associação com os orixás representados em suas obras – como o verde e o vermelho das bandeiras de suas releituras (mais um alinhamento identificado por Nascimento já existente entre as bandeiras e nações com os orixás de suas releituras).
O artista teve uma exposição individual dedicada à sua obra realizada no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) de fevereiro a junho de 2022. Aproximando o artista do pensamento de Lélia Gonzalez, a exposição foi batizada de “Abdias Nascimento: um artista panamefricano” – um neologismo formado pela junção de “pan-africanismo” e “amefricano”, conceito cunhado por Gonzalez.
A exposição foi a maior dedicada ao trabalho visual de Nascimento. Reuniu 61 pinturas realizadas entre os anos de 1968 e 1998. A exposição também reuniu textos que, junto das pinturas, se dividiam em sete núcleos: Teogonia afro-brasileira, Quilombismo, Deus vivos, Germinal, Sankofa, Axé da esperança e Axé de sangue.
Em 2018 o MASP recebeu a pintura Okê Oxóssi, doada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), no contexto da exposição Histórias Afro-Atlânticas – realizada no mesmo ano conjuntamente com o Instituto Tomie Ohtake. A obra serviu como o ponto de partida da exposição dedicada a Nascimento em 2022. Para o Ipeafro, fundado por Nascimento, a exposição realizada pelo MASP neste ano é mais do que uma exposição.
“Abdias do Nascimento: um artista panamefricano” integra o biênio 2021-2022 de programação do MASP, dedicado às Histórias brasileiras – nome homônimo da exposição que sucedeu a de Nascimento.
Amanda Carneiro, curadora assistente da exposição, comenta, em uma visita guiada em maio, que por muito tempo se deu grande atenção à produção acadêmica de Nascimento. Seus textos sobre a experiência negra, o quilombismo, o pan-africanismo etc. compõem parte de um referencial teórico consideravelmente estabelecido dentro dos estudos raciais no país. Para a curadora, apenas recentemente houve uma virada no país que trouxe mais atenção à produção plástica de Nascimento. Ainda é possível fazer uma visita guiada virtual da exposição do artista pelo perfil do MASP no Youtube.
Além do MASP, o Instituto Inhotim segue com a exibição de um programa que traz Nascimento em seu centro. Compondo o biênio 2021-2022, a mostra “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, exposição de quatro atos, ocupa, a cada seis meses, a Galeria Mata, primeira galeria do Inhotim.
Pela primeira vez em sua história, o Inhotim recebe um outro museu dentro de si: o Museu de Arte Negra/Ipeafro. O primeiro ato, “Abdias Nascimento, Tunga e o Museu de Arte Negra” ficou em cartaz até abril deste ano. Hoje segue em cartaz o segundo ato: “Dramas para negros e prólogo para brancos” – que traz destaque para o Teatro Experimental do Negro.
Talvez a virada comentada por Amanda Carneiro tenha se dado com a exposição de 2019 realizada pelo Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC). Assim parece concordar Elisa Larkin, ex-esposa e co-criadora do Ipeafro junto de Abdias. Larkin comenta que o MAC foi o primeiro museu a procurar o Ipeafro “com seriedade e com muito respeito”. Após a exposição em Niterói, o Museu de Arte Negra/Ipeafro apoiou a exposição “A Memória é uma invenção”, inaugurada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2021.
Iniciou sua carreira nas artes plásticas em 1968, aos 54 anos. Faleceu no Rio de Janeiro em 2011, aos 97 anos de idade. As instituições no Brasil e no mundo levaram décadas para apreciar o legado artístico de Abdias do Nascimento. A despeito disso, sua contribuição para o pensamento e para a produção de arte afro-brasileira é inegável. Suas visões e produções, ainda atuais, continuam a inspirar e mover a produção negra do país para os centros do imaginário coletivo.
Matheus Paiva é produtor cultural e internacionalista, formado pela Universidade de São Paulo.
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Parabéns pela excelente matéria, um legado memorável, e ancestralizado por todos nós eternamente 👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿👏🏿😍😍😍🥰🥰🥰