Em 1907, às vésperas da Revolução Mexicana (1910-17), nasce nas proximidades da Cidade Do México, Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, uma das mais relevantes artistas do século XX e celebrada internacionalmente como ícone da cultura mexicana.
Filha de pai alemão, um artista e fotógrafo que migrou para o México e uma mãe hispano-indígena que professava a religião católica. Imersa na hibridez cultural típica latino-americana, Frida Kahlo se conectou ativamente com seu país de origem, sendo uma de suas características marcantes o uso de vestimenta tradicional mexicana, mais especificamente o traje tehuana.
Não só a obra de Frida desperta interesse mas sua vida pessoal também, por sua autenticidade e pela sequência de fatos trágicos que a acometeram. Aos seis anos teve sua mobilidade das pernas afetada pela poliomielite; aos 18, sofreu um grave acidente de ônibus que a fez conviver com sequelas e com a dor até o fim da vida; teve de passar por inúmeros procedimentos cirúrgicos; sua perna teve de ser amputada em 1953 e morreu precocemente no ano seguinte aos 47 anos.
Foi enquanto tentava se recuperar do acidente, imobilizada entre as cirurgias em sua coluna, que Kahlo começou a pintar.
Neste período pinta A coluna partida (1944). Na tela, a coluna vertebral é substituída por uma coluna arquitetônica, que também tem como função fundamental a sustentação, contudo, ela está fragmentada, conectando-se desse modo com o estado físico da artista.
Em primeiro plano, a artista aparece sozinha, atrás, em segundo plano, uma paisagem árida, também fragmentada. O que a sustenta em pé no centro do quadro é um colete, de uso imprescindível mas que a machucava e dificultava sua mobilidade.
A dor persistente que ela sentia aparece nos pregos que perfuram seu corpo e que seguem pela perna direita, a mais afetada pela poliomielite. A dor também se percebe pelas lágrimas em seu rosto mas que são imediatamente contrastadas com o semblante resistente e olhar desafiador. É assim que geralmente a encontramos em seus autorretratos, destemida apesar de toda a dor.
Citar a revolução mexicana quando falamos em Frida Kahlo não é uma coincidência meramente cronológica, o momento de revolução social pelo qual passava o país promoveu mudanças nacionais estruturais e de pensamento. A artista foi profundamente influenciada pelo clima crítico político e intelectual da era pós-revolucionária.
Durante sua vida posicionou-se ativamente contra o fascismo na Segunda Guerra Mundial e contra o imperialismo no período da Guerra Fria. Começou seu envolvimento em políticas aos 13 anos, ao se tornar líder do grupo anarquista Los Cachuchas quando estudante da Escola Preparatória, 1923. Cinco anos depois conheceu a fotógrafa e ativista política Tina Modotti e se filiou ao Partido Comunista Mexicano.
Em 1929, casou-se com o renomado muralista mexicano Diego Rivera com quem compartilhou um caótico, tumultuoso e nada convencional relacionamento. Morou com ele em Nova York e Paris e retornaram ao México em 1939 quando passou a viver na residência de sua família em sua cidade natal, Coyoacán.
O lar de sua família ficou internacionalmente conhecido como A Casa Azul pela chamativa cor de seus muros e paredes, que passaram por diversas mudanças e eventos históricos, inclusive ao receber o intelectual marxista Leon Trotski e sua esposa Natalia Sedova que sofriam perseguição do regime de Stalin.
“Eu pinto flores para que elas não morram”
Frida Kahlo
A Casa Azul é, desde 1958, o Museu Frida Kahlo, quem visita a casa entra em contato com interessantes aspectos da artista, como o colecionismo e o cultivo de plantas. Frida e Diego guardavam obsessivamente objetos dos mais diversos, enquanto ela em particular nutria um interesse e conexão com o mundo natural, projetando e cuidando de um rebuscado jardim em sua casa.
O diálogo entre o cultivo de plantas e a presença marcante de flora em suas obras é tão sólido que virou exposição. Frida Kahlo: arte, jardim, vida (2015) organizada pelo jardim botânico de Nova York, revela que mais que decoração em sua casa, essa paixão de Frida é integrante de suas coloridas telas que frequentemente apresentam atraentes flores, folhagens e frutas.
Principalmente durante a década de 1930, seu trabalho foi marcado pelos arranjos simbólicos com fauna e flora, exemplo é Pitaias, tela de 1938. Pitaia é uma fruta amplamente ofertada nos mercados mexicanos por ser nativa da América Central. Nesta tela, ela dispôs 5 dessas frutas maduras que possuem uma cor rosa marcante em contraste com seu sabor sutil, frente ao que poderia associar-se a um céu tempestuoso.
A natureza morta ganha uma proporção simbólica quando nos atentamos a figura esquelética na parte superior direita, que com uma foice em punhos alude à alegoria do anjo da morte, objetivamente podemos estabelecer um diálogo a respeito da transitoriedade e finitude da vida, uma vez que as frutas são elementos que ilustram com preciosismo os processos inevitáveis do ciclo da vida.
Nas duas telas aqui apresentadas, podemos encontrar algumas características de Kahlo como a atenção aos detalhes que acompanha uma pincelada fina e uma superfície lisa, além da articulação equilibrada entre percepção e representação.
“Pensavam que eu era surrealista, mas não era. Nunca pintei sonhos. Eu pintava minha própria realidade.”
Frida Kahlo
A pintura de Kahlo impressionava os europeus. André Breton, poeta e autor do Manifesto Surrealista (1924), e outros artistas do movimento se encantaram com a obra da mexicana e desde então passou-se a convencionar sua produção aos moldes surrealistas.
O movimento artístico do surrealismo é uma das vanguardas europeias da primeira metade do século XX. Influenciados pela psicanálise de Freud, os artistas surrealistas acreditavam que a imaginação e o inconsciente eram a poética para enfrentar a realidade.
O interesse do surrealismo pela experiência latino-americana se concentrou no México. Assim como Frida, muito admirada por Breton, o fotógrafo Manuel Alvarez Bravo também não se considerava surrealista mas era assim concebido pelo movimento na época e o é até hoje. Inclusive, tiveram lugar proeminente na Exposición Internacional del Surrealismo (1940) na Galería de Arte Mexicano.
O exótico da fauna, da flora e das cores em seus quadros, que refletia a cultura mexicana, foi lido pelos europeus como expressão do desconhecido, parte fundamental da teoria surrealista.
Suas obras em geral possuem mensagens claras, ao contrário da mensagem surrealista, assim sendo, enquadrar Frida Kahlo apenas como surrealista foge à expansão e autenticidade de suas obras.
Autorretrato na fronteira entre o México e os Estados Unidos, 1932. Imagem: Google Arts & Culture.
Autorretrato na fronteira entre o México e os Estados Unidos (1932) é um dos quadros em que é possível identificar componentes da estética surrealista, como os inúmeros elementos da tela e suas representações, a construção plana da pintura a torna similar a uma colagem, contudo, o ponto dissonante com a vanguarda europeia é que não é o inconsciente nem o desejo que move a pintura.
A tela é um claro comentário sobre identidade, o México retratado à esquerda, ocupando a maior área, apresenta vida vegetal, iconografias astecas e indígenas. Já à direita está o industrializado Estados Unidos, onde estava com seu marido na ocasião. Ela se retrata ao centro, provocativa, tendo abraçado as tradições indígenas e folclóricas de seu país, ao mesmo tempo que era profundamente cosmopolita.
“Eu pinto autorretratos porque muitas vezes estou sozinha, porque sou a pessoa que melhor conheço.”
Frida Kahlo
Os autorretratos compõem o recorte mais conhecido do trabalho de Frida, mesmo que não seja a maioria, são envolventes na mesma medida em que são desafiadores.
É possível classificá-los como síntese de sua obra por conter elementos de toda sua produção: visão singular do mundo, apresentação de temas identitários assim como elementos da natureza e da cultura mexicana. Por mais que associe-se que seu tema fosse ela mesma, a investigação de si refletia em uma investigação cultural, social e política.
Neste autorretrato Frida Kahlo nos encara. Ela está a frente de uma densa vegetação, como se estivesse prestes a ser envolvida pela folhagem. Kahlo se coloca como parte integrante deste ambiente natural, a dor é reincidente em seus autorretratos e aqui aparece no seu colar de espinhos que faz sangrar o seu pescoço. Nele, há um beija-flor morto como pingente – na tradição mexicana, o beija-flor morto como talismã traria de volta o amor perdido – que nos remete ao divórcio entre Frida e Diego Rivera no ano anterior.
Pensar no mercado de arte é fundamental pois o reflexo econômico é uma das estratégias de silenciamento estrutural que alicerça a desigualdade entre os gêneros. Historicamente foram poucas as mulheres que conquistaram prestígio financeiro com seu trabalho artístico.
Frida Kahlo foi uma das exceções e foi reconhecida em vida embora seu crescimento exponencial tenha acontecido a partir dos anos 1980. O seu resultado mais antigo registrado em leilão foi em 1985, na Sotheby’s e, desde então, vendeu 33 lotes, configurando uma das artistas do gênero feminino mais rara e desejada do mercado.
É, atualmente, a artista latino-americana mais cara vendida em um leilão, com a venda de Diego y Yo (1949) por US$ 34,8 milhões em 2021, ano em que aparece na 65° posição dentre os 500 artistas elencados pela ArtPrice como de maior sucesso em leilão. Nos 100 primeiros da lista, apenas 7 são mulheres.
A popularização da imagem
A imagem da Frida Kahlo, especialmente seu penteado tradicional mexicano ornamentado com flores e as sobrancelhas unidas ao centro são amplamente conhecidas no mundo contemporâneo. Parte importante de como isso se deu é a apropriação que a luta feminista fez de sua imagem como símbolo de resistência e luta contra o patriarcado.
Kahlo se contrapôs as noções de sexo passivo e não se resignou aos padrões esperado de feminilidade, se posicionando enquanto mulher bissexual, usando roupas que performariam masculinidade e perseverando na produção de obras provocativas em que a mulher não era objeto de desejo. É esse aspecto marcante da sua vida e obra que a tornaram ícone da emancipação feminina.
Sua imagem é facilmente circulada pois há uma companhia, a Frida Kahlo Corporation, que possui os direitos de usá-la como marca, buscando expandir sua imagem e legado. Frida hoje estampa capinhas de celulares, rótulos de vinhos e há até fantasias com suas roupas típicas. Recentemente, em parceria com a marca Puma, lançou uma coleção de calçados.
É quase inevitável que Frida Kahlo fosse lembrada pela história, sua obra é instigante na mesma medida que foi sua vida: audaciosa, desafiadora, autoconfiante e revolucionária. Esperamos que sua imagem permaneça no imaginário cultural das próximas gerações de um ocidente que precisa de referências de mulheres fortes e combativas.
Giovanna Gregório é graduanda em Arte: História, Critica e Curadoria pela PUC-SP. Pesquisadora e crítica independente.
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