Cindy Sherman (Glen Ridge, EUA, 1954) é uma artista e fotógrafa americana que ganhou destaque no mundo da arte contemporânea no final dos anos 1970 e é mais conhecida por fotografias que desafiam padrões e exploram questões relacionadas à identidade.
Ela é associada à chamada geração Pictures, um grupo de artistas que utilizava a apropriação de fotografias e imagens de mídias de massa como ponto de partida conceitual em suas criações artísticas. O grupo combinava cultura pop e arte contemporânea, tensionando barreiras entre “baixa” e “alta” cultura.
Ao utilizar a fotografia como meio principal para explorar o imaginário da cultura popular americana, Sherman questiona qual é o papel da cópia ou da reprodução no campo da arte contemporânea. Cindy Sherman se vale da ideia de que o cinema, a publicidade e as mídias de massa são dotados de uma natureza opressiva e procura capturar os efeitos tanto individuais quanto coletivos desse mecanismo através de suas obras. Sherman também pode ser considerada como uma artista que trabalha com apropriação, uma vez que muitos de seus trabalhos partem de releituras de imagens tanto históricas quanto da cultura popular, alterando-as para abordar temas como a construção da identidade de gênero.
A maior parte da obra de Cindy Sherman é caracterizada pela própria artista incorporando diferentes personagens, sendo ela mesma fotógrafa e modelo. Ela afirmou em entrevista que tentou trabalhar com modelos, mas que nunca funcionou bem, forçando-a a ter que refazer as fotos ela mesma. Sherman acredita que o motivo desse insucesso ao trabalhar com modelos é o fato de ela não saber realmente o que quer ou como articular seus desejos até ver a imagem.
Ao longo de sua carreira, ela já posou como todo tipo de estereótipo presente no imaginário do cinema e da mídia, desde estrela da Hollywood dos anos 1950 até monstro de filmes de terror. A questão central do trabalho de Sherman é justamente o tema da identidade, tanto individual quanto coletiva e o quanto as fronteiras entre estas são borradas na contemporaneidade. Uma das leituras possíveis da obra de Cindy Sherman é a de que a artista sugere que identidade, nada mais é do que a alternância contínua entre diferentes estereótipos. Outros leem seu trabalho como a expressão e exploração da própria personalidade da artista. Há ainda a leitura de que Sherman, em seu trabalho, está examinando a noção de identidade na sociedade contemporânea por uma perspectiva mais ampla.
Existe uma camada performática em seu trabalho. Sherman lembra de se fantasiar desde a infância, mas não como as típicas princesas e bailarinas. Ela explorava baús da família com roupas velhas e se vestia como idosas ou monstros, se transformando em personagens que tendiam ao lado mais perverso da fantasia, como a artista relata no documentário Nobody is here but me (Ninguém está aqui além de mim), de 1994.
“Eu gostaria de poder tratar todos os dias como Halloween, e me fantasiar e sair para o mundo como um personagem excêntrico.” Cindy Sherman
Fato é que a artista tem uma postura reticente ao falar sobre seu trabalho e dar entrevistas, preferindo que o público tire suas próprias conclusões. Essa indefinição discursiva abre espaço para especulação acerca de sua obra e suas intenções e cria uma certa mística sobre seu trabalho e sua pessoa.
Do ponto de vista do movimento feminista, grande parte da obra de Cindy Sherman parece se tratar de um comentário sobre a ideia de que ser mulher é uma performance socialmente construída a partir do olhar masculino – especialmente no cinema, na publicidade e na mídia, como comentado anteriormente. Por essa perspectiva, entende-se que as mulheres sejam socializadas para performar uma feminilidade em todos os espaços de sua vida. E são exatamente essas diferentes performances que a artista explora em suas obras.
Tal leitura faz com que o trabalho de Sherman seja fortemente associado com os movimentos feministas que explodiram nos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970 e se desenvolvem até hoje. No entanto, a artista não se considera uma pessoa particularmente politizada, apesar de admitir que seu trabalho pode ser associado a temas políticos.
Uma das obras mais conhecidas e aclamadas de Sherman é Untitled Film Stills (Frames de filmes sem título, em tradução livre), série que lançou Cindy Sherman no meio artístico, no final dos anos 1970. Trata-se de uma série de 69 fotografias feitas em filme analógico preto e branco ao longo de três anos, na qual a artista personifica diferentes estereótipos femininos.
A inspiração da série vem da influência dos filmes europeus e dos filmes noir americanos dos anos 1940, 1950 e 1960. Estes gêneros cinematográficos frequentemente colocavam as personagens femininas como objetos sexuais ou ingênuas vítimas que precisavam ser salvas. Era comum na época que a divulgação dos filmes fosse feita através da distribuição de frames de cenas marcantes. Cindy Sherman se apropria dessa estética para a criação de Untitled Film Still, intencionalmente alterando ou potencializando os estereótipos femininos retratados ao ponto de causar um certo desconforto.
A imagem mais discutida desta série é Untitled Film Still #21, na qual Sherman aparece com uma jovem inocente do interior se aventurando na cidade grande para ganhar a vida. A imagem traduz em seu plano e ângulo a linguagem cinematográfica. No entanto, o faz de tal forma que provoca a sensação de que a jovem está sendo observada ou julgada e que ela se arma de uma persona para se defender desse olhar exterior. Coincidentemente ou não, esta era a realidade de Sherman na época em que produziu a série. Ela havia saído da cidade onde nasceu e se mudado para Nova Iorque, onde encontrou uma realidade hostil de criminalidade nas ruas. No documentário Nobody is here but me (Ninguém está aqui além de mim), Sherman afirma que sentia, na época, a necessidade de adaptar sua postura nas ruas para poder sobreviver naquele ambiente.
Entre 1988 e 1990, Sherman realizou uma série intitulada History Portraits (Retratos da História, em tradução livre). Nesta série, a artista recria obras clássicas renascentistas, alterando a narrativa ao exagerar os aspectos artificiais que compõem a encenação. Cindy Sherman vivia em Roma na época, seria de se esperar que o ponto de partida para a criação desta série fosse visitas aos numerosos museus com obras dos grandes mestres renascentistas espalhados pela cidade. Porém, para criar a série, Sherman se manteve comprometida com a cultura da reprodução e apropriação de imagens impressas, pois utilizou como referência apenas imagens encontradas em livros.
Faz parte desta série a obra Untitled #228, na qual Sherman recria o clássico tema bíblico de Judite decapitando Holofernes. Nesta obra, como em tantas outras releituras do tema, Sherman apresenta o assunto em um estilo clássico. No entanto, ao examinar a obra com mais atenção, alguns detalhes se mostram estranhos e desproporcionais. Parecem revelar o que tentam esconder: tudo não passa de encenação, criação de uma imagem artificial, um trompe l’oeil.
Neste tema familiar para feministas e historiadores, Judite salva o povo israelita do tirano general assírio ao usar seu charme feminino para seduzi-lo e o decapita quando Holofernes cai no sono.
A imagem de Sherman é carregada de ambiguidade, o que causa um certo desconforto no espectador. Nela, Judite pode ser vista tanto como uma heroína quanto como um símbolo sexual, uma vez que o sucesso de sua tarefa dependia de seu charme feminino. Na versão de Caravaggio, inclusive, Judite seria originalmente retratada com os seios nus. Imagens recentes de raio X mostraram que o véu que cobre os seios da personagem foi uma decisão posterior no processo do artista.
Cindy Sherman produz incessantemente desde os anos 1970. Além das séries fotográficas aqui citadas, muitas outras obras da artista podem ser exploradas, cada uma em suas particularidades. No entanto, o fio condutor de seu trabalho se mantém o mesmo ao longo das décadas: identidades que se constroem e se desconstroem, apropriações e personagens estereotipados em imagens minuciosamente construídas.
O trabalho de Sherman já foi objeto de infinitas especulações. A própria artista não se sente particularmente inclinada a analisar seu trabalho muito profundamente e não dá muita importância àqueles que o fazem. A artista já afirmou em entrevistas que prefere que o público seja capaz de se relacionar com o seu trabalho sem precisar ler sobre ele. No entanto, ela não nega as implicações políticas e sociais de sua obra. Ela é, afinal de contas, considerada uma das principais fotógrafas da crítica social na contemporaneidade.
Luísa Prestes, formada em artes visuais pela UFRGS, é artista, pesquisadora e arte-educadora. Participou de residências, ações, performances e exposições no Brasil e no exterior.
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