A cena artística brasileira vem expandindo suas margens de visibilidade em instituições culturais de prestígio mundo afora. Em 2025, três exposições internacionais se destacam não apenas por colocarem artistas brasileiros em posições de evidência, mas por abordarem, cada uma a seu modo, a complexidade da identidade brasileira, sua produção visual e suas camadas históricas. O que une Beatriz Milhazes no Guggenheim de Nova York, Lucas Arruda no Musée d’Orsay, e as coletivas Le Brésil illustré na Maison de l’Amérique Latine, em Paris, é a afirmação de uma arte que não apenas resiste, mas reverbera.
É simbólico que a primeira exposição individual de um artista brasileiro no Musée d’Orsay — um museu que concentra algumas das obras mais emblemáticas do impressionismo francês — seja dedicada a Lucas Arruda. A mostra Qu’importe le paysage (Que importa a paisagem?) insere o artista paulista num espaço historicamente moldado por nomes como Monet, Corot e Courbet, mas faz isso subvertendo expectativas. Em vez da paisagem como reprodução da realidade observada, temos a paisagem como reverberação da memória.
Arruda se debruça há mais de quinze anos sobre a série Deserto-Modelo, que dá nome ao seu corpo de trabalho mais conhecido. As telas de pequeno formato, sempre elaboradas no ateliê, são visões que não partem de referência direta, mas de uma experiência subjetiva da paisagem — são evocadas, mais do que observadas. Ele mesmo descreve sua pintura como mediada pela luz, elemento que orienta cada gesto sobre a tela.
O contraste entre claro e escuro é um tema constante — seja na presença simbólica de horizontes noturnos, seja nas questões ontológicas que suas obras parecem levantar. Arruda cria uma linguagem silenciosa, mas que ressoa com força, evocando, sem nomear, paisagens interiores que tocam a universalidade. A inserção de suas obras em diálogo com a coleção impressionista do Orsay não é meramente comparativa: é conceitual. Coloca a memória brasileira — sua natureza, espiritualidade e subjetividade — como parte integrante da história da pintura ocidental.
Além disso, a simultaneidade com a retrospectiva no Carré d’Art, em Nîmes, indica que seu reconhecimento está longe de ser pontual. Trata-se de uma inserção sólida e institucional no circuito europeu, o que reforça ainda mais o alcance de sua obra e o momento de internacionalização da arte brasileira contemporânea.
Se a contenção e o silêncio marcam a pintura de Arruda, o trabalho de Beatriz Milhazes opera pelo oposto: exuberância, cor e movimento. Mas isso não significa desordem. A exposição Rigor and Beauty, em cartaz no Solomon R. Guggenheim Museum, em Nova York, é prova de que por trás do ornamento há método, por trás da festa, precisão. A mostra é a primeira dedicada exclusivamente à artista no museu nova-iorquino — o que, por si só, já representa um marco na carreira de Milhazes e na projeção da arte brasileira no exterior.
Milhazes desenvolveu ao longo das últimas quatro décadas um vocabulário visual que articula tradição e invenção. Sua técnica de monotransfer, desenvolvida em 1989, consiste em pintar sobre folhas de plástico transparente e, depois, transferir as películas à tela, revelando as formas em espelhamento. O processo é demorado, meticuloso e permite à artista manipular camadas, sobreposições e texturas com um grau de controle incomum na abstração. Ainda assim, as obras mantêm uma aparência leve, quase musical.
Carnaval, barroco colonial, Tropicália, bossa nova — todos esses elementos permeiam sua pintura, não apenas como referências temáticas, mas como formas de estruturar visualmente o trabalho. As formas circulares, os arabescos e os florais remetem tanto à estética popular quanto ao modernismo brasileiro, em especial ao legado de Tarsila do Amaral. A artista consegue, de maneira singular, conectar esses imaginários com influências da tradição europeia — Matisse e Mondrian — e do design gráfico contemporâneo.
As obras apresentadas na exposição traçam um percurso desde suas primeiras telas nos anos 1990 até seus trabalhos mais recentes. Um destaque é Mistura Sagrada (2022), onde se nota uma inflexão mais contemplativa. Nesse trabalho, a natureza adquire contornos espirituais — talvez ecoando os efeitos da pandemia, talvez reafirmando a necessidade de buscar, na arte, novas formas de religação com o mundo natural.
Com essa exposição, Milhazes reafirma sua posição como uma das vozes mais consistentes da arte latino-americana contemporânea. O fato de sua mostra integrar a série Collection in Focus, dedicada a obras do acervo do Guggenheim, é um indicativo claro do lugar que ela ocupa na narrativa institucional do museu: não como exceção, mas como referência.
Enquanto Arruda e Milhazes operam na chave da pintura individual, a mostra coletiva Le Brésil illustré propõe outra abordagem: uma revisão histórica. A exposição, sediada na Maison de l’Amérique Latine, em Paris, reúne obras de 15 artistas brasileiros contemporâneos que confrontam, ressignificam e desviam a iconografia do pintor francês Jean-Baptiste Debret — autor da célebre Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
Com curadoria de Jacques Leenhardt e Gabriela Longman, a exposição propõe um mergulho crítico sobre como a imagem do Brasil foi construída a partir de um olhar europeu. E mais: mostra como artistas indígenas, negros e mestiços brasileiros vêm hoje subvertendo esse imaginário, criando novas narrativas para os corpos antes silenciados ou exotizados por Debret.
Entre os participantes estão nomes como Denilson Baniwa, Gê Viana, Jaime Lauriano, Livia Melzi e Anna Bella Geiger. Utilizando linguagens diversas — fotografia, vídeo, escultura, instalação —, suas obras não apenas comentam Debret, mas inserem-se como resposta direta ao projeto colonial que ele, ainda que involuntariamente, ajudou a consolidar. A proposta não é destruir o passado, mas criar novos significados a partir dele — muitas vezes com humor, ironia e potência simbólica.
A mostra integra a programação do Ano do Brasil na França e deve chegar ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, no segundo semestre deste ano. Mas o mais importante é o que ela revela: uma geração que não aceita ser apenas retratada. Uma geração que reivindica o direito de imagem — e que faz disso um gesto político.
O que essas três exposições têm em comum — apesar das diferenças de linguagem, técnica e geração — é que todas projetam uma visão complexa, crítica e sensível da arte brasileira. Não se trata apenas de exaltar nossa diversidade, mas de propor novas formas de presença no mundo. Presença como ocupação institucional. Como afirmação estética. Como enfrentamento simbólico.
A arte brasileira, como se vê nesses exemplos, já não precisa se explicar ou se justificar. Ela propõe. Ela interpela. Ela convida o público — em Paris, em Nova York ou em São Paulo — a refletir sobre temas universais a partir de um ponto de vista que é nosso, mas que se comunica com todos.
Não se trata de folclore. Nem de exotismo. Trata-se de produção crítica. De inserção institucional. De maturidade artística. Seja pela introspecção transcendental de Lucas Arruda, pela exuberância formal de Beatriz Milhazes ou pelo confronto histórico operado por coletivos pós-coloniais, o que se vê é uma arte brasileira em plena expansão — e em permanente reinvenção.
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